Jem Cohen. “A indústria serviu para me ensinar tudo o que eu não queria fazer”

“Colo”, de Teresa Villaverde, abre esta noite a 14.ª edição do IndieLisboa, que tem Jem Cohen como um dos seus heróis independentes

“Fiz os filmes que me foi possível fazer”, diz-nos Jem Cohen, prolífico cineasta eleito como um dos heróis independentes da edição deste ano do IndieLisboa, que arranca esta noite com “Colo”, o mais recente filme de Teresa Villaverde. E independente será pouco para um artista multifacetado que, entre curtas e longas por territórios mais documentais ou mais aproximados da ficção, conta já mais de 70 filmes numa carreira de pouco mais de 30 anos. Seguidor do espírito DIY absorvido para a vida da cultura punk que o ajudou a fazer-se na Washington que saía da década de 1970 para a de 80, não há de negar também que não será isto uma questão de “pequeno ou grande”, de “certo ou errado” – porque de errado não haverá nada num filme de Tarkovski ou de John Ford. Errado estará esse grande denominador comum do mainstream, “a ideia de agradar ao maior número de pessoas para conseguir tirar o máximo de dinheiro possível”, estarão governos que se sucedem para que nunca nada mude, ou que mude para pior. E por isso será preciso resistir, sempre. Com um filme, com um poema ou com uma canção punk. “Estamos sempre à espera de que chegue um tempo em que isso não seja tão necessário, mas depois acordamos e temos Donald Trump como presidente.” E, afinal, não era só sobre cinema este Skype para Nova Iorque com Jem Cohen, que já há de andar por aí.

Em “Lost Book Found”, um dos seus primeiros filmes se tivermos em conta que já são dezenas, diz que foi quando se tornou invisível que foi capaz de ver o que até aí era invisível para si [ “As I became invisible, I started to see things that had once been invisible to me”]. Isto é também sobre o seu trabalho e a forma como começou a fazer filmes?

Sim, acho que é. Já tinha feito alguns filmes quando fiz “Lost Book Found” mas, em parte, esse filme é um reflexo do meu primeiro trabalho em Nova Iorque, quando era vendedor ambulante. Na rua, percebi que quando trabalhamos em certas posições, as pessoas ignoram-nos, tratam-nos como uma peça de mobília ou algo do género. E se por um lado isso é insultuoso, é também uma grande oportunidade para observarmos e podermos estudar o ambiente urbano de uma forma que não seria possível noutras circunstâncias. Somos uma espécie de prisioneiros atrás do carrinho e estamos sós com o nosso pensamento. Ainda não filmava quando tive esse trabalho, que não durou muito tempo, mas acho que aprendi muito sobre observação com esse trabalho. Não tinha uma câmara, mas de certa forma transformei-me numa.

E como é que esse filme apareceu depois?

Foi anos depois, quando estava a recolher material nas ruas, sobretudo em Super 8, e a tentar encontrar uma forma de organizar esses registos – e também à procura de uma forma de compreender a cidade. O filme veio como uma espécie de investigação sobre a vida na cidade e o capitalismo, mas também sobre a minha própria experiência. Então decidi incluir este trabalho que tinha tido, que acabou por se tornar determinante para a forma como olho para as coisas.

Falou nas Super 8, com que filmou muito, além dos 16 mm e de tudo o que sejam pequenas câmaras. É uma opção relacionada com a ligação que podemos ver entre o seu trabalho e a fotografia de rua?

É a melhor forma de não ser intrusivo, de ser de alguma forma invisível, ao contrário do que aconteceria se andasse com uma equipa e um equipamento melhor. Ao perceberem o que estamos a fazer, as pessoas alteram o seu comportamento, acham que é um filme. Aquilo em que estou interessado é outra coisa, algo que tem muito mais a ver com a realidade e não tanto fazer filmes. Mas também tem a ver com ter começado há mais de 30 anos, numa altura em que não havia as possibilidades que há hoje, com as câmaras digitais mais pequenas. As câmaras de filmar estavam a começar a aparecer e a tornar-se acessíveis, mas continuavam a não ser assim tão pequenas. As Super 8 eram uma coisa que se podia pôr no bolso e tinham uma imagem de que eu gostava. Depois comecei a filmar em 16 mm, mas continuei sempre a preferir os equipamentos pequenos e equipas muito reduzidas – ou nenhuma equipa.

Consegue imaginar-se a fazer outro tipo de filmes, algo mais convencional, dentro da indústria? Porque, segundo sei, chegou a trabalhar como técnico em grandes produções para realizadores como Martin Scorsese, por exemplo. 

Sim, trabalhei, mas tudo o que isso me deu foi dinheiro para pagar as contas e fazer os filmes que queria fazer, além de me ter ensinado tudo o que eu não queria fazer. Trabalhei durante anos em cinema para me sustentar, trabalhei muito em grandes filmes, com equipas de centenas de pessoas, e era um mundo muito deprimente. A maior parte das pessoas não estavam realmente interessadas em fazer cinema, estavam interessadas nas celebridades e no dinheiro, o dinheiro por um tipo de entretenimento que não me interessava. Houve muito poucas exceções. Essa parte da minha vida só serviu para me trazer até aqui, ao mostrar- -me o caminho que eu não queria.

Pegando nisso que acaba de dizer, o que há de político no tipo de filmes que faz, no seu processo e na opção por este registo do DIY (do it yourself)?

Acho que o meu foco esteve sempre de algum modo na realidade do dia-a-dia, na forma como a experienciamos, o que é muito diferente de fantasia e das coisas que nunca farão parte da nossa experiência. E isso em si é uma ideia política, apesar de os meus filmes nem sempre serem necessariamente políticos. Às vezes são, mas não gosto da ideia de fazer filmes dogmáticos. Não gosto de dizer às pessoas o que devem pensar, gosto de lhes oferecer experiências numa sala de cinema que podem aproximar-se das suas próprias experiências e daquilo que veem, ou mesmo de quem são. Mas não sou avesso à ideia de fazer filmes maiores. No “Museum Hours” gostei de poder ter uma equipa, de ter alguém a fazer o som, de ter um tipo diferente de acesso. Não é tanto uma questão de certo ou errado, pequeno ou grande. Aprecio muito a forma como o Kurosawa, o Tarkovski ou o John Ford fizeram os seus filmes. Não quero fazer de mim uma espécie de frente de defesa do oposto disso. Fiz os filmes que me foi possível fazer. Muitas vezes, isso implicou trabalhar com muito pouco dinheiro e tive de aprender a filmar, a editar e a produzir, e celebro o facto de poder ter estado sempre a produzir.

Tem sido uma luta trabalhar dessa forma há tantos anos, sem nunca parar de produzir?

É, de facto, uma luta que não se tornou mais fácil. A verdade é que, num certo sentido, até se tornou mais difícil. Há cada vez menos apoios às artes nos Estados Unidos, já quase não existem, e a maior parte tende ser atribuída a projetos muito específicos, mais engajados, que procuram, por exemplo, denunciar uma realidade específica nalguma parte do mundo. É esse o tipo de coisa para que se consegue financiamento. Para o tipo de filmes que faço, não há muita hipótese de conseguir. Sei que Portugal não é propriamente fácil nesse aspeto, mas na América não é sequer possível imaginar trabalhar com o tipo de apoios oficiais que há na Europa. 

Vários dos seus filmes levaram muitos anos a ser feitos. O “Instrument”, por exemplo, sobre os Fugazi, foi um processo de dez anos. Isso tem a ver com alguma decisão de deixar que sejam os filmes a ir aparecendo num tempo que tem de ser o deles?

Sim, é muito isso. Fiz o “Instrument” com e sobre amigos, alguns dos quais conhecia desde os tempos do liceu, e o que aconteceu foi que andei a filmar durante quatro ou cinco anos sem sequer saber que ia fazer um filme com aquilo. E depois, quando em conjunto começámos a perceber que se calhar queríamos fazê-lo, quisemos que fosse um processo orgânico muito sobre a experiência da música, fácil de mostrar mas difícil de compreender de uma forma mais profunda. Foi um prazer para mim poder fazê-lo com estas pessoas que respeito e poder acompanhar a forma como trabalham de uma forma tão próxima. Por outro lado, torna-se muito frustrante. No “Benjamin Smoke” também foi um processo de dez anos, o “Lost Book Found”, de seis ou sete… e às vezes, se tivesse mais dinheiro ou mais ajuda, gostava de poder terminá-los mais rápido, apesar de por vezes também ser bom para o filme que se vá desenrolando ao longo de um grande arco. Porque aí não estamos a ver apenas um assunto, estamos a ver mudança. E tempo.

Esses dois não são os únicos dos seus filmes em que descobrimos a sua ligação à música, sobretudo ao emergir da cena punk nos Estados Unidos, que acompanhou de perto durante a adolescência. Há ainda o “Long For The City (Patti Smith in New York)”, por exemplo. Esta sua abordagem ao cinema também vem um pouco do que absorveu dessa cultura?

A minha experiência com o punk vem do final da década de 1970, na passagem para os anos 80. A cena punk em [Washington] D.C. era interessante porque era muito pequena mas, ao mesmo tempo, muito aberta, muito livre. Não havia grande interesse na forma de vestir ou na violência, tinha mais a ver com um lugar onde as pessoas que fugiam à norma podiam criar coisas juntas, sem preocupações com interesses comerciais ou com a indústria. A indústria da música estava em Nova Iorque e em Los Angeles, lugares como D.C. eram completamente ignorados, daí que houvesse tanta liberdade. Foi muito inspirador para mim porque os meus amigos formaram bandas e editoras, e fizeram-no sem restrições. Quando comecei a fazer filmes e tive a experiência de trabalhar nessa indústria, e vi que aquilo não tinha nada a ver com os filmes que queria ver ou que queria fazer, percebi que tinha um bom modelo no mundo do punk. Não em termos de estilo, de forma de vestir ou de um tipo de música, mas pela sua abertura e como uma forma de reação que me parece necessária contra o main-stream e contra a autoridade.

Ainda mais necessária agora?

Porque as forças orientadoras do main-stream tendem a servir um denominador comum, que é a ideia de agradar ao maior número de pessoas possível para conseguir tirar o máximo de dinheiro do máximo de pessoas, o que não me parece um princípio interessante para se fazer literatura, música ou cinema. Também porque tenho assistido a políticas terríveis serem implementadas por vários governos. Quando era criança, eram os tempos de Richard Nixon, depois veio Ronald Reagan, os Bush, militarismo sem fim, e agora temos o rei idiota. É uma situação completamente chocante e embaraçosa. Claro que nada disto será tão mau como viver numa ditadura, e é irónico estar a falar sobre isto com alguém que vem de Portugal, onde as pessoas estão familiarizadas com uma realidade muito pior. Ainda assim, vivo num país que sempre teve governos que apoiaram ditadores. É repugnante. E quer as pessoas que se opõem a isso o façam através da literatura ou de canções relativamente simples de punk rock, isso continua a ser necessário. É uma coisa que sempre achei importante e inspiradora. Estamos sempre à espera de que chegue um tempo em que isso não seja tão necessário, mas depois acordamos e temos Donald Trump como presidente. E aí percebo que é muito mais importante agora do que alguma vez foi em toda a minha vida encontrar uma resistência. E Donald Trump foi um fenómeno da cultura mainstream no seu pior: reality TV, game shows, uma estupidificação. Imagino que seja uma pessoa que não lê um livro, e saberá Deus que filmes é que ele vê. 

Um fenómeno que foi chegando com muitos de nós a recusarmo-nos a vê-lo ou a reconhecê-lo. Olhando para o conjunto da sua obra, muito específica mas diversa ao mesmo tempo, o que temos aqui é um apelo para que, como dizia sobre si no “Lost Book Found”, paremos então para ver o que temos deixado que seja invisível?

Os meus filmes são sobretudo sobre olhar e ouvir, sobre as pequenas mas cruciais experiências de alienação desse tipo de assalto da cultura de massas. Mas não os faço como alguma forma de propaganda. Se o que as pessoas tiram deles for serem capazes de ver as coisas de uma forma que não seja o espetáculo, já me chega. Não tem de haver uma mensagem política clara e direta. Não me lanço a um projeto com a determinação de fazer este ou aquele tipo de filme, faço–o com curiosidade, à procura de coisas que para mim sejam bonitas, poderosas ou interessantes. Já fiz mais de 70 filmes e espero que não sejam todos o mesmo, mas claro que por ser quem sou há uma base comum a todos. Mas quando dou por mim a falar sobre o que faço, às vezes tenho de parar porque não sei exatamente o que faço. Sempre que faço um novo filme, vou à procura. 

Talvez essa base comum possa ser todo o espaço e a oportunidade que nos dão para pensar sobre o lugar onde estamos. Como pessoas e como sociedade.

Basta-me que olhem e que ouçam. Se isso for feito com cuidado, vai levar à criação de pensamento. Acho que criar espaço para uma forma de contemplação dá prazer e calma, mas o que esse prazer será cabe a cada indivíduo, não sou eu que vou dizer. Para mim, o mais importante no cinema é não ter de obrigar as pessoas a certas experiências ou a ter as mesmas emoções. É ser possível criar uma combinação de imagem e som por onde a mente de cada um possa vaguear. E isso é livre.