Anabela Moreira: ‘Tinha uma ideia romântica do caminho de Fátima. Nunca imaginei que fosse aquilo’

Atriz é uma das protagonistas do novo filme de João Canijo, ‘Fátima’.

O que há é «pessoas a tentar, na imperfeição, fazer um caminho em nome de uma ideia perfeita». Como Céu, personagem que pôs Anabela Moreira a andar 430 quilómetros, de Bragança a Fátima, pagamento de promessa que nunca havemos de saber qual é, nem é isso que interessa. «Se te puser a ti numa peregrinação também não vais saber por que é que aquelas pessoas estão a ir a Fátima», e foi essa uma das suas maiores descobertas numa preparação que levou três anos até chegar a nós ‘Fátima’, o novo filme de João Canijo. Peregrinação de 11 mulheres – ou 11 atrizes, e onde começa uma coisa e acaba outra nem sempre se sabe – colocadas numa situação limite na nona longa-metragem de ficção a parecer documentário do realizador de ‘Sangue do Meu Sangue’. E mais do que um filme sobre histórias de fé e de promessas, será mais sobre o ser humano nas suas contradições este ‘Fátima’, que tem Anabela Moreira como uma das protagonistas.

Sobre o processo de preparação para este filme, disseste que foi das maiores loucuras que fizeste como atriz. Isso faz dele um dos mais marcantes no teu percurso?

Não necessariamente. Quando comecei a trabalhar com o João Canijo, assim que terminei o último dia de aulas na ACT [Escola de Atores] fui estagiar para uma casa de alterne. E claro que não estava preparada. Não conhecia o método do João nem a forma como ele trabalhava e isso teve um impacto enorme em mim. Depois dessa experiência, que de certa forma acabou por ser violenta, acho que percebi o que é que ele pretendia com os estágios e acabei por ser sempre eu a entusiasmar-me a mim própria para fazer estas loucuras – até porque como não sou uma pessoa muito saudosa e me sinto às vezes muito limitada à minha experiência como Anabela, estou sempre disponível para fazer estas coisas. Foi maravilhoso estar em Codeçoso, em Boticas, para o ‘Mal Nascida’. Emocionalmente difícil porque estava com uma família que me deixou marcas emocionais – daquelas coincidências de quando estamos a fazer filmes difíceis às vezes acabarmos por encontrar pessoas que vêm tirar de nós sentimentos de que não estávamos à espera. Depois tive coisas mais felizes, como quando estive com a Sónia nas Caxinas [em ‘É o Amor’]. Mas, de facto, este [‘Fátima’] foi violento. Não pelo estágio em si, quando fomos todas viver para Rio de Fornos [povoação do concelho de Vinhais, em Trás-os-Montes], mas o fazer uma peregrinação de dez dias, que acabaram por ser nove. Isso testou de facto todos os meus limites de resistência física e emocional e é nesse sentido que digo que foi a maior loucura.

É um sacrifício impossível de imaginar para quem nunca o fez?

Houve momentos em que já não conseguia mais, fisicamente, mas tinha-me proposto a fazer aquilo e a ideia desse processo era mesmo perceber o que é que faz com que apesar de todo o sofrimento tu continues a sofrer. Predispus-me a viver esse sofrimento como parte do processo e, seja qual for o resultado deste filme, sinto muito orgulho nele. Nós todas, com esses processos, conseguimos colocar nele uma realidade que é desconhecida à partida pelas pessoas que nunca fizeram peregrinações, sendo aquela a realidade específica daquelas 11 mulheres. [Antes da peregrinação], quando comecei a fazer perguntas sobre o caminho de Fátima, como estamos a falar de uma coisa que tem a ver com Deus e com Nossa Senhora, as pessoas não se abriam. Diziam que era maravilhoso, que iam a cantar, que faziam muitas amizades, que era muito bonito. Só depois de eu fazer a minha peregrinação e de falar às pessoas com propriedade de tudo o que aconteceu e que não tinha sido assim tão maravilhoso, é que as pessoas começaram a contar o lado mais negro.

Só depois.

Sim. Porque primeiro o João Canijo meteu-me uma câmara nas mãos e mandou-me fazer o percurso de carro e fui filmando tudo o que encontrei. Lembro-me perfeitamente de haver uma senhora, já não sei em que terra, que estava disposta a falar da experiência negativa que tinha tido mas pediu para eu largar a câmara de filmar– e longe, para ter a certeza que não estava sequer a gravar a voz. Existe um certo pudor em falar-se do que é esta experiência, porque — e para mim esta é a parte mais importante — são pessoas a tentar, na sua imperfeição, fazer um caminho em nome de uma ideia perfeita, que é a ideia de um pai e de uma mãe divinos. E naquele caminho não existem pessoas perfeitas, não existe nada a não ser pessoas com as suas imperfeições numa situação limite.

Ou para lá do limite.

Ou para lá do limite, e depois depende muito da personalidade das pessoas com que se vai. Bastava naquele conjunto uma ou outra personagem ser outra pessoa para a história daquela peregrinação já não ter sido assim. Este filme não tem intenções de falar nem de Deus nem de Nossa Senhora nem de se [a aparição] aconteceu ou não aconteceu, esse não é o propósito. O que interessava ao João Canijo era o porquê da necessidade de Deus.

Que marcas deixa numa atriz um processo destes?

Ainda estou a tentar recuperar fisicamente, porque engordei alguns quilos no processo, bastantes, e é como se ainda não tivesse conseguido sair desta peregrinação. Foi um processo de três anos e quando são processos muito longos é normal que não saiam tão rapidamente de ti. Entretanto já fiz outras coisas, já estive noutros processos, mas só agora é que este filme vai estrear e às vezes nas estreias há uma espécie de libertação. E claro que este é um assunto que vai mexer com muitas pessoas, que vão dizer que não é nada assim.

Com todo esse lado mais negro da experiência do caminho de Fátima, que este filme expõe de forma bastante crua, que reação esperam das pessoas a este filme, sobretudo tendo em conta que pelo tema poderá atrair um público mais alargado do que o habitual do João Canijo?

Tenho essa esperança, não só por causa do tema mas também porque estamos no centenário de Fátima e porque o filme tem um conjunto alargado de atrizes que provocam, por si só, alguma curiosidade. Há pouco tempo o João Canijo esteve num evento em que umas pessoas que estavam ligadas à Igreja lhe foram dizer que tinham gostado muito do filme. Que tinham ficado um bocadinho chocadas ao início por haver tantas asneiras, mas a verdade é que em Trás-os-Montes se fala assim. Havia esse paradoxo também, de estares a dizer asneiras daquelas…

Para cinco minutos depois se estar a rezar o terço.

Aquilo não tem significado nenhum e não era isso que estava em causa, era a humanidade exatamente como ela é. Há muitas pessoas que vão porque são as suas férias, porque gostam, e há um conjunto de pessoas que vão porque fizeram uma promessa. Daquilo que pude experienciar quando fiz a minha peregrinação verdadeira…

De Bragança?

O João Canijo dividiu as atrizes em pares e cada um fez um percurso. A Teresa Tavares e a Íris Macedo foram de Vila Flor, outras foram da Ericeira. Cada par partiu de pontos diferentes e eu acabei por fazer o percurso de Bragança, exatamente nas mesmas condições do filme, naquela carrinha. Há pessoas que vão de outra forma, organizam os hotéis e tudo isso, mas eu fiz mesmo assim, com o tio Francisco e ele dizia que aquela era a melhor forma de fazer a peregrinação porque podes parar onde quiseres. Claro que depois não acontece assim, tens aqueles dias para chegar e tens que chegar mesmo, porque há a missa das velas e uma pressão para chegares o mais rápido possível que se transforma rapidamente numa loucura. Nos dois primeiros dias fazem-se quase 60 quilómetros por dia, e eu percebo a lógica, que é enquanto estamos frescos andamos mais, mas eu pensava: «Depois como é que aguento outros oito?» Por isso é que o João escolheu esta peregrinação [para o filme], que é a mais longa do país. O cartaz fala em 400 mas são 430 quilómetros.

Um caminho ao longo do qual às vezes deixamos de perceber o que é real e o que é ficção.

Há ali uma altura em que estás no limiar da ficção com a realidade. Tens que saber muito bem o que estás a fazer como atriz, saber muito bem qual é a dramaturgia do filme e o que é essencial, para aquilo depois funcionar com os imprevistos e com as coisas que podiam ter acontecido no caminho. E para isso tudo ter sido possível claro que foi essencial o trabalho todo do João Canijo. Não sei se ele vai voltar a repetir uma coisa assim, porque ele quis chegar a esta coisa quase documental e só com o trabalho todo de uma equipa enorme, neste caso também das atrizes, é que conseguiu. Porque ele fez uma peregrinação, de Coimbra a Fátima, que foram só dois ou três dias, sofreu horrores com aquilo, mas só a experiência dele não chegava. Acho que isto é um ato de generosidade das atrizes para com o João Canijo. Para com o nosso trabalho também, mas acho que o João está reconhecido aqui. Foi de facto difícil.

E a Céu acaba por ser a que mais sofre no caminho.

Ela não consegue ser compreendida, não consegue expressar-se e não consegue sair daquele sítio da fragilização. E se calhar as outras pessoas que aparentemente estão a ser mais duras conseguem manter-se concentradas no caminho e não ir para os extremos para que ela foi. Claro que a ideia dela inicial não era destabilizar o grupo, mas começa a magoar-se com pequenas coisinhas que acontecem no caminho e guarda-as. Não consegue lidar com aquilo da forma que é suposto com esta ideia de Deus, se quiseres, de esquecer, de perdoar.

O que é interessante aqui é que as personagens são muito mais densas do que aquilo que o filme deixa ver, ao esconder quase tudo sobre o passado e as motivações de casa uma destas mulheres. Como é que se constrói uma personagem neste contexto?

Ao João Canijo não lhe interessa mostrar nada, ele faz todo um trabalho para trás mas não é para ser filmado. Todas nós sabíamos qual era a nossa história e todas nós trabalhámos isso, apesar de não se ver. O que acho muito engraçado no filme é que não precisas de saber por que é que aquelas mulheres estão a ir a Fátima.

 

Mas vamo-nos questionando.

Isso aconteceu também quando eu fui a Fátima, ninguém falava. Eu imaginava, porque todos temos uma ideia do que é uma peregrinação, uma coisa completamente diferente, nunca imaginei aquilo. E ia com uma missão que era gravar todos os dias diários com o iPhone para não me esquecer de nada do que tinha acontecido nem do que tinha sentido em todas as situações.

A Anabela ainda ou já a Céu?

A Anabela, na primeira peregrinação. O João Canijo não estava lá, éramos os olhos dele. A realidade nunca existe, o que estás sempre a ter é uma experiência subjetiva da realidade. O meu caminho foi feito com a Vera Barreto, por isso é que desenvolvemos aquela relação especial no filme, e quando chegámos à altura em que tivemos que debater o que tínhamos experienciado [percebemos que] cada uma tinha visto uma coisa diferente. Essa parte da experiência subjetiva interessou muito ao João. Mas estava a dizer que tinha uma ideia romântica do percurso de Fátima. Calculava que aquilo doía mas, pronto, era assim, há esta ideia do sacrifício, como se tivéssemos que sofrer para alcançar qualquer coisa. Sabia que havia sofrimento, mas achava que as pessoas falavam abertamente das promessas. A verdade é que existia um certo tabu para as pessoas com quem fui. Fui ganhando confiança com as pessoas porque me interessava saber o que era e algumas contaram-me, mas em privado. Mas eu estava na mesma. Elas não diziam por que é que estavam a ir a Fátima a pé, mas eu também não dizia, era justo.

E nunca perceberam?

Às tantas tornou-se inevitável porque íamos todos muito magoados e não havia medicamentos para nos tratarmos à séria. Tive muita sorte. Acho que tenho mesmo que acreditar que existe qualquer coisa porque sinto-me protegida. No meu ano, quando fui como Anabela, fomos com uma enfermeira, como no filme. Calhou, tinha feito uma promessa e foi. Então chegava o fim do dia e ela desinfectava-nos os pés. E, já muito perto de Fátima, quando fomos vistos, as pessoas ficaram chocadas por a gente já vir a andar há tantos dias com os pés [em tão bom estado]. Eu às tantas levava bolhas por cima de bolhas, mas sou assim.

Estavas a falar em ti ‘como Anabela’. Essa troca de papéis, o pôr e tirar máscaras pode tornar-se confuso, sobretudo em projetos como este?

Só te tens a ti própria para trabalhar. Existem vários métodos e vários objetivos quando se faz uma personagem, eu tenho trabalhado este que é aquele com o qual me identifico mais que é partires de ti. Se partes de uma máscara vai ser muito difícil conseguires alcançar qualquer tipo de verdade. Mesmo assim já é muito difícil porque, com propriedade, só conheces aquilo que tens dentro de ti. O que podes fazer é provocar-te, colocares-te em determinadas circunstâncias, situações, trabalhares o teu imaginário do se eu fosse mais assim, se eu tivesse trabalhado aqui ou vivido aqui. Porque se partir do cliché, imagina, eu agora sou da máfia e gosto de matar pessoas, como não sei o que isso é, iria fazer sempre um boneco. Quando pões as coisas para dentro de ti, começas a pensar que todas as pessoas são complexas. É isso que me interessa. E então acaba por haver esta confusão de seres tu que estás ali mas com determinadas coisas trabalhadas para seres aquele personagem. Não estás assim tão distante de ti. Há pessoas que dizem «ah, ele não é um grande ator porque é sempre ele próprio». Alguns dos grandes atores sabemos que os vamos ver e que eles serão sempre eles.

 

Como se fôssemos sempre vendo bocadinhos diferentes deles, que vão deixando aparecer.

Sim. Isto não quer dizer que não sejas tão plástica ou tão maleável que não consigas ser coisas diferentes. Às vezes é por isso que nos irritam tanto algumas coisas de que não gostamos, é porque tu podes ser aquilo também. Às vezes até as nossas repulsas…

Vêm de um medo qualquer de nós próprios?

É um trabalho giro porque parte sempre de ti. Tive a sorte de trabalhar com uma pessoa que me pede isso, apesar de no início ter corrido muito mal, porque eu não estava a perceber.

Tinhas que idade?

Já não sei… Mas já não era assim tão nova, comecei tudo muito tarde porque fui estudar psicologia.

O que faz um certo sentido, sobretudo quando falamos neste tipo de processos.

Faz. Às vezes não ajuda seres tão consciente, mas sempre foi uma caraterística minha. Há aquela história da centopeia que vai a andar toda contente com as patinhas todas, que são muitas, e aquilo dá tudo certo até ao dia em que alguém lhe pergunta como é que faz para não tropeçar nelas. Ela nunca tinha pensado naquilo e de repente não consegue. A psicologia é um conjunto de teorias, às vezes muitas teorias, sobre uma mesma coisa, e eu fiquei um bocadinho desiludida porque era tão ingénua que cheguei ao ISPA a achar que ia perceber finalmente o que era o ser humano. Aprendi muita coisa mas pensei:_«A humanidade anda há tanto tempo a tentar perceber isto e só chegou a estas conclusões, que ainda para mais são partes de conclusões?». Comecei a afastar-me, cheguei ao quarto ano e não acabei. Costumo dizer que, mesmo que nunca tivesse sido atriz, aquele curso da ACT foi a melhor coisa que fiz na vida. Foi lá que conheci o João Canijo e foi depois de ele ter visto uma peça de teatro que fizemos – em que eu tinha uma personagem que era uma espécie de Cleópatra que andava meia despida em palco – que me perguntou se queria fazer uma personagem pequenina [na ‘Noite Escura’]. Fiquei toda contente, claro, porque o meu sonho era fazer cinema – gosto muito de teatro mas o teatro assusta-me, gosto mais do cinema – e então dei por mim a acabar o último dia de aulas às seis da tarde e às oito da noite a dar entrada numa casa de alterne ali perto do Rato. Não estava de facto preparada.

Porquê?

Lembro-me perfeitamente de os homens lhes pagarem bebidas e de elas terem imensas técnicas para mandarem fora. Um dos meus objetivos era experimentar aquilo, mas tinha tanto medo que nunca fui capaz de os enganar. Lembro-me de no primeiro dia subir até à casa de banho e olhar para mim ao espelho tão bêbada e de ser tão estranho para mim estar a viver aquilo na vida real – de repetir o chamo-me Rute e saí de casa dos meus pais – que comecei a dizer ao espelho «o meu nome é Anabela». Um dia houve um senhor que me olhou de uma maneira estranha, estava mesmo interessado em perceber por que é que eu estava ali, e começou a dizer-me que lhe fazia lembrar a filha, que acho que já não era viva. Perguntou-me quanto é que eu queria para sair daquela vida e ir estudar. Eu disse «deixe estar», levantei-me, subi as escadas, não me despedi de ninguém, vesti a minha roupa e fui-me embora. Depois o João Canijo chamou-me muito preocupado e eu disse-lhe que estava tudo bem, mas não voltei lá. Aquilo mexeu muito comigo. Tinha estudado num colégio de freiras, os meus pais nasceram em aldeias e havia muito aquela ideia que se transmitia às meninas de que os homens eram maus. Aquilo foi a minha primeira grande lambada de que não era necessariamente assim. Depois não consegui transpôr aquilo nem para o filme nem para coisa nenhuma, e se calhar essa foi a grande lição sobre o método do João. O não ter conseguido fazer logo à primeira, essa experiência falhada. Porque foi duro passar por aquelas filmagens sem perceber em profundidade o que aquilo era. O que eu tinha que ter feito era pensar como seria a Anabela se tivesse sido educada de determinada maneira e usasse as pessoas daquela forma. Não parti de mim, lá está. Mas foi o sítio certo para falhar, porque era um papel pequeno.

O medo de falhar, ou de ficares a achar que devias ter feito de outra forma, persegue-te?

Se calhar sou um bocadinho exigente demais, e depois há pessoas que me vão reenviando isso, como o João Braz, o montador do ‘Fátima’, que me diz «pois, mas tu dizes sempre isto». Claro que quando estás a ver as tuas imagens, talvez como tu quando estás a ler um texto que escreveste, pensas que se calhar devias ter explorado mais isto ou aquilo.

O trabalho sempre inacabado, imperfeito.

Sim, e depois já és outra pessoa e já olhas para aquilo de outra forma. Não tenho por hábito ver as coisas. Vejo uma primeira vez porque acho que é importante para mim, mas depois não.

Nunca mais?

Olha, vi o ‘Mal Nascida’ uma vez, em Veneza, vi o ‘Sangue do Meu Sangue’ uma vez, antes da estreia. Quando vou às salas para falar sobre o filme veem-me no início e depois saio, calculo o tempo, e volto no fim. Um dia mais tarde, posso voltar a ver, mas…

Incomoda-te veres-te de fora?

No ‘Sangue do Meu Sangue’, aquela cena final com o Nuno Lopes é mais difícil de ver para mim, Anabela, do que de fazer. Porque tínhamos trabalhado tanto para chegar ali, a equipa toda estava tão comigo – era comovente mesmo – que aquilo custou-me no personagem, mas era ali. Fiz questão de, nessa cena, não saber como é que o João me estava a filmar. Então quando vi pela primeira vez foi ver o olhar dele sobre a cena. E isso acrescenta-te ali outra coisa qualquer que dói. Só vi uma vez. Como essa cena é muito perto do final do filme aconteceu-me estar cá fora, quase para entrar, e ver pessoas a sair. Uma vez uma senhora saiu e bateu em mim, olhou-me nos olhos, e quis fugir. Tinha sido demasiado. E esta parte é muito gira, porque aquilo é ficção, toda a gente sabe que é uma ficção, mas quando se alcança assim uma coisa que mexe com as pessoas… Não tenho feito muitos processos televisivos porque normalmente nas novelas é tudo muito condensado, muito explicado – se é amor, é amor, se é ódio, é ódio – para as pessoas estarem a cozinhar e perceberem rapidamente o que está a acontecer naquela cena. E eu gosto de fazer o trabalho quase inverso.

Como neste “Fátima”.

Não há necessidade nenhuma de explicarmos nada. Se te puser a ti numa peregrinação também não vais saber por que é que aquelas pessoas estão a ir a Fátima. Podes chegar ao pé delas, como eu fiz, e perguntar. Mas às vezes isso magoa. Houve uma história de uma pessoa que ia no meu grupo que me magoou. Uma senhora que ia de luto porque a irmã tinha morrido e que tinha feito uma promessa para que a operação da irmã corresse bem. A operação correu bem, mas a irmã morreu uma semana depois, de outras complicações. E, pronto, ali estava ela, a cumprir a promessa, pela irmã que tinha morrido. Aquilo magoou-me. Como é que alguém está a cumprir uma promessa a um Deus que, a existir, é… [pausa] É essa a realidade do ser humano perante Deus.