Ditadura versus Democracia: as aparências podem iludir

TOMEMOS como exemplos de ‘portugueses extraordinários’ José Saramago, Aníbal Cavaco Silva e Belmiro de Azevedo (ficando desde já claro que isto nada tem a ver com algum possível concurso sobre os ‘maiores’ ou os ‘melhores’ portugueses).

Do que se sabe publicamente, trata-se de três notabilidades muitíssimo diferentes entre si em quase tudo. Não fora a circunstância de todos haverem ultrapassado a ‘idade da reforma’ – e pertencerem, ou terem pertencido, ao pequeno grupo dos portugueses que se tornaram famosos pelas boas razões –, poder-se-ia dizer que havia sobretudo traços, percursos e razões para separar estes homens. Algo existiu, no entanto, algo de basilar e essencial, que permite ‘metê-los num mesmo saco’. E que merece, julgo eu, ser sublinhado.

QUALQUER deles nasceu, cresceu e formou-se no seio de uma família pobre – e todos assumiram sem vergonha, antes com orgulho, essa origem.

Qualquer deles chegou onde chegou não pelos favores de alguém mas por mérito próprio – isto é, por ter em si uma carga genética especialmente dotada de potencialidades e que a família não coarctou. Mas também (e quiçá principalmente) graças à instrução e à educação que cada um deles recebeu e soube aproveitar, nas escolas (públicas) onde foi estudante.

Ora isto, por mais que tantos o queiram ignorar, silenciar ou negar, diz muito sobre as virtualidades do sistema de ensino público que existia em Portugal antes do 25 de Abril, sobre a efectiva acessibilidade à Escola e à aprendizagem académica que havia no tempo do Estado Novo. E ainda sobre as reais (e não só teóricas) possibilidades de ascensão social que esse tão diabolizado regime facultava aos filhos dos pobres – quando comparadas com as que existem no actual, e tão mitificado, regime democrático.

FOI, ALIÁS, o próprio José Saramago – um dos portugueses mais insuspeitos de simpatia pelo regime deposto em 1974 – quem, com conhecimento de causa (e, naturalmente, a contra-gosto), melhor e mais desassombradamente terá resumido essa comparação. Disse ele que, nos tempos em que crescera, a generalidade das famílias portuguesas – qualquer que fosse o seu nível económico e cultural (a sua, por exemplo, era muito pobre e quase completamente analfabeta) – sabia educar e educava de facto os seus filhos, e a escola instruía-os e ajudava a educá-los; agora, porém, muitas das famílias deixaram de ser capazes de educar os próprios filhos, ao passo que as escolas, essas, em muitos casos, nem os educam nem lhes fornecem a instrução necessária (entrevista a Ana Sousa Dias na RTP-2, no programa Por outro lado).

TENDO EM ATENÇÃO que o actual regime apostou tudo nos aspectos quantitativos (isto é, nos indicadores estatísticos) relativos ao ansiado ‘desenvolvimento’, a conclusão de Saramago (em linha, aliás, com muitos outros dados do conhecimento público) não pode deixar de significar um assinalável fracasso em termos de educação – talvez o mais trágico de todos, a médio e longo prazo.

No entanto, nunca se viu um responsável político assumir os erros cometidos e, humilde e corajosamente, tentar corrigi-los.