Memórias e telemóvel

Há cinquenta anos, com a simplicidade de um jovem de Viseu que descera sozinho a Lisboa, e a partir do honroso Colégio Militar, escrevia cartas aos saudosos senhores meus Pais onde não me podia alongar demasiado. Se escrevesse mais, o peso da carta aumentava e o selo era outro, mais caro.

As notícias na televisão – que era única e a preto e branco – tinham ‘hora certa’: sete e meia da tarde. Depois, salvo erro, passaram para as oito da noite.

Agora as nossas mensagens são quase como as cartas de ontem… mas sem a preocupação do preço dos selos. E com novas expressões como ‘bué’ a fazerem-nos recordar outras que o tempo nunca apagará.

Agora, com este desenvolvimento tecnológico, vejo o ‘noticiário da noite’ a cores e em múltiplos canais, às horas que quero.

Quase que decido o ‘alinhamento’! Com o comando que nos comanda e condiciona, recuamos os programas e vemos as notícias que abrem o Telejornal, saltamos para o Jornal da Noite e terminamos no Jornal das Oito. E está feita a síntese em português.

Saltamos depois, qual livro que é lido aos saltos e em diferentes soluços, para as diferentes televisões estrangeiras que o cabo, bem pago, nos proporciona – e vemos o duro debate presidencial francês, os momentos singulares de Trump, o andar firme de Putin, as paradas sedutoras da Coreia do Norte, e recordamos que o espaço Schengen nasceu em 1985, o programa Erasmus em 1987 e o euro ‘arrancou’ em 2002!

Se antes as notícias se esperavam à ‘hora certa’, agora as notícias ‘aparecem-nos’ a todo o instante.

Os telemóveis e as suas aplicações facultam-nos, em qualquer lugar, os fatos e os atos ‘ao minuto’. E até o meu querido amigo Joaquim, olhando para uma mesa em que todos ‘mexiam’ no telemóvel, nos deu uma lição de ‘vida’ ao perguntar: «Alguém tem um telemóvel que me empreste?».

A vergonha foi instantânea e em simultâneo. O convívio regressou em ‘força’! Mas com o telemóvel – e com tudo o resto que a tecnologia nos oferece – estamos sempre informados acerca dos acidentes e dos incidentes, dos sacrifícios e dos vícios, das maldades e das novidades, das derrotas e das vitórias, do vídeo-árbitro e da vergonha, das crenças e das doenças, da discussão e da recordação, da guerra e da fatalidade, do míssil e do suicídio, da fama e da pressa, do pudor e da dor, do pecado e da servidão, da oração e da reflexão, da religião e da perfeição, do sonho e do milagre, da caridade e da felicidade. E, ainda, do valor e do prazer.

Agora, neste mundo que julgamos quase à mão, a verdade parece não concorrer com a mentira – mas sim com a multiplicação pós-moderna de verdades que se consideram todas válidas.

E esta multiplicação pós-moderna da verdade – de verdades – reforçou-se claramente com a proliferação de dados e de verdades científicas em certos casos verdadeiramente contraditórias.

Mas antes que nasça, como alguém nos advertia, o ‘Ministério da Verdade’, é imperioso combater o pensamento único e, assim, denunciar as misérias da censura. E as gerações que a sentiram, e a viveram, são ainda aqui memória viva.

Como nos disse Jorge Luís Borges, «a memória é essencial». Tão essencial como o telemóvel!