Diego Velázquez: diplomata fleumático, príncipe dos pintores

A descoberta no salão de um aristocrata madrileno de uma pintura atribuída ao mestre seiscentista causou sensação. A obra, um ‘Retrato de Criança’, foi vendida por oito milhões de euros e serve-nos de ponto de partida a uma incursão na vida e obra do pintor.

Diego Velázquez: diplomata fleumático, príncipe dos pintores

Diego Velázquez goza de uma particularidade muito rara, se não única, entre os pintores: por um lado, agrada ao amante de arte mais ligeiro ou superficial – o realismo dos seus temas, sempre tratados com bom gosto e técnica superior, são facilmente apelativos; por outro lado, intriga e maravilha os verdadeiros cognoscentes – estes, bem sabedores da dificuldade da arte, quedam boquiabertos perante uma facilidade de Apeles que desafia o entendimento, posta aristocraticamente ao serviço do Belo e perfeitamente liberta de qualquer servilismo para com a realidade representada. Assim, o mais despreocupado visitante do Museu do Prado facilmente acompanhará o esteta mais refinado, ou o filósofo – recorde-se o longo poema de Unamuno inspirado pelo Cristo de San Plácido, bem como os perspicazes ensaios velazquenhos de Ortega Y Gasset –, nas loas àquele a quem o título de príncipe dos pintores não ressalta empolado.

Não surpreende, assim, o recente frisson causado pelo súbito arrolamento pelo Ministério da Cultura espanhol de um desconhecido ‘Retrato de criança’ ou da ‘Imaculada Jovem’, vindo diretamente do salão madrileno de um aristocrata octogenário para a casa de leilões Abalarte. A pintura, que a ser autógrafa provirá do início da atividade do célebre pintor, foi declarada «bem inexportável por ser uma obra atribuível a Velázquez». No passado dia 25 de abril, a pintura foi vendida a um desconhecido pela base de licitação de oito milhões de euros, tendo o Estado espanhol prescindido do seu direito de opção. Tem-se a esperança de que estejamos em compasso de espera para que a tela, após perícias exaustivas, se reúna eventualmente à incomparável coleção velazquenha do Museu do Prado. Em todo ocaso, eis uma boa ocasião para evocar o grande pintor.

 

Período sevilhano e visitas a Itália

Diego Rodríguez de Silva y Velázquez nasceu em Sevilha em 1599, quando aquela cidade andaluza, a porta da Europa para as Américas, era a mais rica de Espanha. A sua família paterna provinha do Porto e possuiria alguns pergaminhos, tal como a de sua mãe, que era sevilhana. Diego fez a sua aprendizagem de pintor desde os seus onze anos com Francisco Pacheco, artista confinado no seu talento ao academismo, mas erudito e teórico da Estética. Assim, de forma propícia, Velázquez desenvolveria os seus extraordinários dotes na casa de um mestre benévolo que estava destinado, no ano imediato aos seis de aprendizagem (1618), a ser o seu sogro e que recebia com liberalidade figuras de renome da vida cultural sevilhana. Esta rede de conhecimentos andaluza de Pacheco viria a ser importante para o lançamento futuro da carreira de seu genro.

O período sevilhano – no qual se inserirá o recém-descoberto Retrato de criança – terminaria com a instalação de Velázquez em Madrid, após ter sido nomeado pintor régio de Filipe IV (1623). Instrumental para esta ascensão foi o chamamento de Velázquez à corte pelo valido do rei, o Conde-duque de Olivares, um membro dos Guzmán, a mais poderosa família andaluza.

Seguir-se-ão quase quatro décadas de dedicação à Casa dos Áustrias até à morte do pintor (1660), dedicação bem correspondida pelo próprio rei, que não desdenhava visitar frequentemente Velázquez no seu estúdio do Alcázar tendo aí reservado assento próprio (o antigo edifício, totalmente destruído pelo fogo em 1734, foi substituído no mesmo local pelo Palácio Real que hoje conhecemos). Esta estima, facilitada pelo convívio continuado, nunca seria desmentida ao longo dos anos. Pelo contrário, a sucessão de cargos palatinos de importância crescente, culminou na nomeação para Aposentador do Palácio (1652) e na concessão da Ordem de Santiago ao pintor (1658). Mais de um ano teria de correr até à investidura de Velázquez na Ordem, ano necessário à investigação genealógica aturada da sua família para lhe poder ser reconhecida a ‘pureza de sangue’ (isentando-a da ‘contaminação’ de sangue judaico ou mouro) e o afastamento de ‘tarefas vis’ (trabalho manual ou comércio, entenda-se). Só a linha paterna do Silvas passou o exame e assim, uma dispensa papal revelou-se necessária. É a insígnia daquela Ordem que vemos pintada no peito do pintor, quando se autorretratou exercendo a sua arte em As Meninas (1656) – tradição antiga refere que a cruz de Santiago foi postumamente acrescentada à pintura por vontade expressa de Filipe IV.

O longo período madrileno seria entrecortado por duas visitas a Itália (agosto de 1639 – janeiro de 1641; novembro de 1648 – junho de 1651); note-se como elas perfazem um total de quase quatro anos. O rei impacienta-se com o prolongamento da segunda ausência do pintor e pressiona o seu embaixador em Roma com a seguinte missiva: «Uma vez que conheceis a sua natureza fleumática, evitai que ele [Velázquez] se sirva dela para fazer durar a sua permanência nessa corte». Não surpreendentemente, uma terceira viagem italiana ser-lhe-ia recusada em 1657.

Rubens, que saltara com a facilidade de verdadeiro grand seigneur do seu atelier para a cena diplomática, recomendara vivamente, logo em 1628, a peregrinação italiana a Velázquez. A Itália era então palco da rivalidade entre Espanha e França e Roma fervilhava de intriga: seria Velázquez um agente não só artístico de Filipe IV? Em todo o caso, muitas das glórias italianas do Museu do Prado, herdadas das coleções reais, devem-se ao gosto seguro de Velázquez que, a mando do seu senhor, sobrecarregou o já delapidado erário da Coroa espanhola com a liberalidade das suas compras artísticas nas duas campanhas italianas. Curiosamente, muitas das pinturas que Velázquez executou na sua segunda estadia em Roma são-nos desconhecidas. No entanto, e sem qualquer dúvida, seriam infalivelmente obras de estonteante virtuosidade: confirma-o o célebre Inocêncio X, ponto alto da arte do retrato e de toda a pintura europeia.

 

O ocaso do Século de Ouro

Apartando os dois longos e bem apreciados voos de liberdade italiana – há menção de um filho ilegítimo gerado durante a segunda estadia – a vida de Velázquez decorreu na gaiola dourada da corte madrilena dos Habsburgo, corte sumptuosa mas de opressiva etiqueta. A fleuma do pintor parece tê-lo defendido neste espaço confinado, onde as bicadas da inveja e da maledicência não são fáceis de evitar, assegurando-lhe um percurso serenamente ascendente.

Ao longo da década de 1630, as festas e os divertimentos cortesãos orquestrados por Olivares mal disfarçavam os perigos que ameaçavam as extensas possessões espanholas um pouco por toda a Europa. O Salón Grande ou de Reinos do recém-inaugurado palácio do Buen Retiro ostentava os escudos heráldicos dos reinos que compunham a Coroa espanhola, nada menos do que vinte e quatro. A célebre Rendição de Breda (c. 1635), entre outras pinturas de Velázquez, destinava-se a decorar as paredes daquele salão de aparato. Concorrentemente, Calderón encenava as suas peças nesses mesmos espaços de pompa e lazer. A mais famosa de entre elas levava título apropriado: La Vida es Sueño.

Mas a realidade acaba sempre por impor-se e o duro despertar chegaria com uma calamitosa sucessão de derrotas militares e políticas: desastre naval de Downs (1639); revolta da Catalunha e de Portugal (1640); esmagamento dos tercios em Rocroi (1643). A desesperada tentativa de Olivares de sustentar a reputación espanhola chegava ao fim. Que a posição de Velázquez na corte tenha sobrevivido à desgraça política do Conde-duque (1643) é um indicativo suplementar do apreço em que era tido pelo rei, tanto mais que a rainha consorte, Isabel de Bourbon, figura instrumental na queda do valido, teria alguma frieza, ou mesmo hostilidade, para com o pintor. Logo no ano seguinte, Velázquez acompanha o rei na campanha em Aragão, ocasião em que o retrata empunhando o bastão de comando militar: o magnífico Filipe de Fraga (Coleção Frick, Nova Iorque).

A morte de Baltasar Carlos (1646), o promissor herdeiro do trono várias vezes retratado por Velázquez, levou Filipe IV, entretanto enviuvado, a novo casamento. Escolheu como consorte a sua sobrinha, Mariana de Áustria, num abuso final de endogamia, praticada por demasiado tempo na família dos Habsburgo. A filha mais velha do matrimónio, a infanta Margarida Teresa, nascida em 1651, seria repetida e maravilhosamente retratada por Velázquez ao longo da última década de vida do pintor. É ela que figura, rodeada das suas damas-de-honor, no centro de As Meninas (1656). O destino poupou ao pincel realista de Velázquez a ingrata tarefa de retratar a efígie – onde as deficiências genéticas eram por demais aparentes – do novo herdeiro, o futuro Carlos II, nascido (1661) no ano posterior à morte do pintor.

Ironia suprema, coubera a Velázquez , no seu papel de Aposentador do Palácio, coreografar a cerimónia que mal disfarçara a derrota espanhola na disputa com a França da supremacia no continente europeu: a entrega por Filipe IV da filha do seu primeiro matrimónio, a infanta Maria Teresa, ao seu noivo Luís XIV, ocorrida na Ilha dos Faisões, no rio Bidassoa (junho de 1660). Quando Velázquez regressa a Madrid, exausto mas recompensado pelo sucesso da sua missão, restava-lhe pouco mais de um mês de vida. Que melhor símbolo se poderia encontrar para um Século de Ouro que chegava melancolicamente ao seu ocaso?

Jorge Filipe de Almeida