Depois de uma semana de greve no SNS, talvez relatar oito horas de espera na urgência de um hospital de Lisboa seja só lançar lenha para a fogueira. Mas não é por isso que escrevo: vi coisas que me fizeram confusão mas, no fim, senti-me agradecida. A humanidade, que tantos vão vaticinando estar em vias de extinção na saúde, assoberbada de burocracia e condenada pela falta de meios, passou por mim várias vezes. Por fim, “apareceu-me” (para usar a linguagem mariana destes dias) na forma de um médico que me falou com uma serenidade que, quem visse, dificilmente acreditaria que passava das 5 da manhã.
Aconteceu no passado domingo. Liguei para a Saúde 24 e mandaram-me para o hospital. Cheguei às 21h28. Nem estava muita gente. A coisa agora está tão moderna que não temos de nos ficar pelas impressões. Uns ecrãs mostram quanto tempo temos de espera. Eram meia dúzia de verdes – a pulseira que me calhou – e previa-se hora e pouco.
A primeira distração é a internet. Quando chegamos ao fim da ronda pelas apps, começamos de novo. Levantei os olhos quando o telemóvel começou a aquecer e dei conta dos rumores: parece que havia “verdes”, como eu, ali à espera há cinco horas. Olhei de novo e o ecrã já dava mais de três horas de espera. Fui à admissão saber o que se passava. A funcionária também não sabia, mas o provável era estarem a chegar mais amarelos e laranjas.
Decidida a esperar, volto ao meu posto. Um segurança, vendo o meu desalento, dá-me umas palavras de incentivo: há de chegar a minha vez. E começamos a conversar. Fala-me das histórias mirabolantes das urgências. Uma vez só não levou uma navalhada porque um bombeiro topou a ameaça a tempo. Outra vez foi perguntar a uma senhora se se estava a sentir bem e o instinto revelou-se providencial: a mulher foi direta para reanimação. Não é preciso eles contarem o que veem por ali todos os dias, basta a olhar à volta para ver o nervoso a instalar-se nas caras: ninguém gosta de se sentir mal e não saber porquê, mesmo quando não se joga a vida ou a morte. Os adolescentes deitam a cabeça no ombro das mães. Os namorados dão as mãos. Volta e meia, relações violentas que não conseguimos imaginar onde é que vão parar, como dois que se sentam ao meu lado a trocar insultos e acabam por ir embora.
Vou à “retriagem” e continuo “verde” (pergunto-me se, passadas quase três horas e sendo madrugada, não faria sentido haver forma de agendarem uma consulta no centro de saúde para o dia seguinte). Decidida a esperar, regresso à sala de espera. O segurança (também para ocupação dele, certamente) lá me vai distraindo, a mim e a outro verde numa situação ainda mais caricata (tinha ido à urgência básica e o médico mandou-o para o hospital com uma carta para cirurgia, mas estava à espera da consulta há três horas).
Fico a par das piadas futebolísticas e aprendo a ver televisão no telemóvel sem pagar. E nisto vão chegando mais pessoas. Um rapaz de pijama numa maca, direto para a reanimação. Outro de camisola rasgada, curativos nos braços. E um bombeiro a empurrá-lo na cadeira de rodas, com uma postura solene perante o estado miserável dele – pomo-nos a imaginar se seria o bom ou o mau da fita e percebe-se que, para o socorrista, isso pouco importa.
Passam cinco horas e volto ao guiché. A senhora sugere-me que vá lá dentro. Meio a medo, dirijo-me ao primeiro gabinete sem doentes e a médica olha-me, compreensiva: tem estado a dar uma mão nos laranjas, mas já me chama. Assim foi. Depois da observação, pede análises para que não fiquem dúvidas (nem a ela nem a mim).
Tenho de esperar hora e meia pelos resultados e regresso à espera. Junta-se a nós um velhote. Tinha ido deitar-se, mas a certa altura teve de vir. Não percebi o que tinha, mas queria conversar. Muitos que ali chegam é também para isso. E ele, aproveitando a companhia, falou das voltas da vida até ser chamado e voltar de receita na mão. “Já aqui levo os meus tremoços”, atirou ao despedir-se.
Passava pouco das 5h quando fui chamada de novo e lá estava o tal médico: a colega já tinha saído, mas tinha-lhe deixado recado. Atenciosos. Explicou-me com calma o que podia ser, deu-me os conselhos que tinha a dar e mandou-me mais tranquila para casa, como se o meu caso “verde” tivesse a mesma importância que tudo o resto. Para mim tinha e ele percebeu.
Como doente, claro que quero um SNS mais rápido, mais inteligente, mas quero sobretudo um SNS assim: que me trate com o cuidado daquele médico. Como o segurança que percebe a chatice mas, se der, mais vale rir. Como a senhora do guiché, que está habituada às queixas, mas ajuda como pode. Não quero um SNS como aquele em que eu tinha uma médica de família, ela reforma-se e sou corrida da Unidade de Saúde Familiar para o buraco sem fundo do centro de saúde, onde entretanto fui marcar uma consulta por sugestão do médico do hospital. A primeira vaga é daqui a um mês.
Jornalista. Escreve à sexta