Campeonato. Na hora de fazer contas com a dona da pensão da vida

Recebendo este sábado o Vitória de Guimarães, o Benfica pode atingir o seu 36.º título de campeão nacional – mais 9 do que o FC Porto, mais 18 do que o Sporting (o dobro). Uma clara demonstração de hegemonia em Portugal

Se, nas últimas semanas, os jogos de Benfica e FC Porto têm sido atentamente observados e profundamente escalpelizados, este sábado pode muito bem atirar para a escuridão do oblívio o confronto de domingo nas Antas. Facto incontornável: a Luz é, neste momento, o centro das atenções do futebol português. O Benfica tem, frente ao Vitória de Guimarães, a possibilidade invejável de fazer entornar os seus adeptos pela Avenida da Liberdade, pela Fontes Pereira de Melo e pela Braamcamp até ao Marquês, ou pelas ruas e praças das cidades onde se festejará até às tantas, espera-se que sem esbórnias exageradas, o tal tetra que ainda não faz parte da sua história tão antiga quanto brilhante. A águia tem tudo para pôr um ponto final nas dúvidas deste campeonato. É verdade, ninguém o esquece, que os minhotos são uma equipa chata como a potassa para os seus adversários, que caminham alegremente pela passadeira de uma bonita série de jogos sempre a ganhar, que têm feito, fora de casa, a vida negra a quem os recebe. Ainda assim, convenhamos, o favoritismo deverá ser posto totalmente do lado encarnado. Porque têm melhor equipa e melhores jogadores – afinal, 16 pontos os separam –, porque estarão perante mais de 60 mil almas sedentas de mais um título, porque têm, neste momento, um avanço tão claro sobre o segundo classificado que lhes permite respirar fundo e encarar com alguma segurança quaisquer contrariedades que possam surgir.

Não sou de apostas – nem singelo contra dobrado, como nos livros do Texas Jack – mas, se fosse, punha as fichas na equipa de Rui Vitória. Não que tenha enchido os olhos de quem gosta particularmente do jogo inventado pelos ingleses, e não o fez, mas revelou nos momentos decisivos uma capacidade rara de ser essencialmente prática. Na última jornada, em Vila do Conde, face a um Rio Ave capaz de criar embaraços seja a que adversário for, o Benfica mostrou-se compacto, dominador e assassino. O remate de Gonçalo Paciência ao poste, no ocaso da partida, podia ter-lhe negado os três pontos, mas foi bem mais fruto de uma fase de tudo ou nada do que propriamente de uma imposição ofensiva dos moços do Ave. Assim sendo, há que atribuir o mérito a quem é dele merecedor. Não é por acaso que Dona Águia voa altaneira no topo da classificação. Como não é por acaso que o Sr. Dragão empatou cinco dos seus sete últimos jogos. A quem imputar tão gritante desperdício? Aos erros de arbitragem, gritarão alguns mais fanáticos e com menor capacidade de análise fria perante a realidade que se ergue à sua frente. Não se entre por esse beco sem saída. Por muito conveniente que ele possa parecer, não esconde as espampanantes debilidades de um conjunto que dá ideia de não acreditar, muitas vezes, nas suas inequívocas virtudes.

Estofo

Foi José Maria Pedroto, uma espécie daquele extraordinário personagem de Goscinny e Uderzo chamado Tulius Detritus, especialista em estratagemas e capaz de, através de uma simples pergunta ou de um comentário avulso, espalhar a zizânia por entre as melhores famílias, que lançou a incendiária expressão “ter ou não ter estofo de campeão”. Dolorosa para os perdedores, como se um estilete lhes rasgasse a pele ali entre a terceira e a quarta costela. Vem agora a propósito. Ter ou não ter estofo de campeão! Assim mesmo, com ponto de exclamação. Aceitemos como inevitável que, no caso de vitória amanhã na Luz, o Benfica demonstrou tê-lo. Depois de saber do empate do FC Porto na Madeira, essa ilha dos horrores para os portistas, ganhou em Vila do Conde e cavou para cinco a vantagem pontual. Primeiro momento de estofo. Bater o Vitória de Guimarães sublinharia ainda mais o facto.

Mas o futebol traz consigo a verdade e a sua mentira. Decorre continuadamente entre o que é e o que não é. Vejamos: se o Benfica, contra todas as probabilidades que se alinham nos astros, tombasse lá do alto do sonho até ao rés-do–chão da desilusão e perdesse o campeonato nestas duas jornadas que sobram, que dizer do estofo do FC Porto?

Por isso, e ao virar da esquina do seu último jogo em casa esta época, os encarnados estão obrigados a cumprir o seu destino, sob risco de um fracasso incompreensível. Há meses e meses a fio no primeiro lugar, têm sido capazes de resistir a momentos maus e têm visto os portistas desperdiçarem oportunidades únicas para os desbancar de tal poleiro. Agora, como escrevia o enorme Pessoa, “É a hora!”. A hora de fazer contas com a dona da pensão da vida. Contas de um 36.o título que confirma o Benfica como indiscutível dominador da história dos campeonatos nacionais de futebol, mais nove do que o FC Porto, mais 18 do que o Sporting – precisamente o dobro!

Vivem os encarnados um momento único dos seus quase 117 anos. Um quarto título consecutivo exacerba a sua hegemonia, sobretudo se vencer também a Taça de Portugal. É tempo de percebermos até onde vai a ambição de quem o comanda.