A tolerância… ponto

Nestes três meses, quase metade dos dias são inúteis. O que vale é que a seguir chegam as férias 

Rezava a tradição que por ocasião de visita papal ao país, o Estado, a Assembleia da República, fazia sair lei geral e abstrata de amnistia de contravenções e crimes menores e perdões parciais, simbólicos ou nem isso para crimes mais graves. Uma espécie de ato clemente e cristão, que desonerava tribunais de milhares de irrelevantes processos (dando embora algum trabalho acrescido aos de execução de penas), fazia justiça a prevaricadores sem dolo e aliviava as penas, ainda que simbolicamente, a alguns dos demais – muitas vezes enquadrando-os, como o indulto natalício, em razões humanitárias ou outras especialmente atendíveis.

A visita do Papa Francisco a Fátima, coincidindo até com a canonização dos Pastorinhos, não deu sequer direito a debate. Porque ninguém, nem um deputado, ousou lembrar-se de propor amnistia alguma. Cair-lhe-iam todos em cima.

Perdões ou amnistias, nas décadas mais recentes e de crise – económica e financeira, mas também de valores -, só se justifica(ra)m para casos mais ou menos específicos, embora sempre arvorando-se de caráter geral e abstrato, com destinatários/beneficiários perfeitamente identificáveis e quase sempre resultando num encaixe extraordinário para o Estado.

É o que temos.

Se a amnésia foi geral em relação a qualquer proposta de lei de perdão sem nomes ou de amnistia, já o Governo se apressou a revelar a sua consciência cristã e católica ao conceder tolerância de ponto na sexta-feira, para que os funcionários públicos pudessem deslocar-se a Fátima e acompanhar a visita do Papa.

Dá-se o caso que 25 de Abril foi uma terça-feira, de inevitável ‘ponte’, dias depois da Sexta-feira Santa  e imediatamente antes de mais um feriado, o 1.º de Maio, que calhou a uma segunda-feira.

A mais esta tolerância de ponto a meio de maio, junta-se, em junho, ainda outro feriado nacional, Dia do Corpo de Deus, 15, que calha a uma quinta-feira – mesmo a pedir mais uma ‘pontezinha’ na sexta.

Para lisboetas e não só, que têm em Santo António o padroeiro, essa será uma verdadeira ‘semana santa’ – já que dia 13 é uma terça-feira e, assim como assim, dá para fazer mais uma ‘ponte’ (que se junta à seguinte e fica maior que a Vasco da Gama).

Ou seja, mesmo descontando o facto de o Dia (10) de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas calhar desta feita a um sábado, em menos de três meses quase metade dos dias são de descanso do pessoal (entre fins de semana, feriados, ‘pontes’ e outras ‘tolerâncias’, como esta, de ponto, que o Governo decidiu dar em nome da peregrinação a Fátima).

Curiosamente, a iniciativa foi do próprio Governo e sem prévia consulta a ninguém. Porque ninguém a reclamou e, inclusivamente e pelos vistos, era perfeitamente dispensável.

«Esse problema nem sequer se punha, uma vez que o dia 12 era uma sexta-feira e muita gente vai à noite participar na Procissão das Velas, e que o dia 13 é sábado e a maioria da gente não trabalha», declarou o bispo de Leiria-Fátima à TSF.

D. António Marto tem toda a razão, menos para António Costa, para quem seria de uma «enorme insensibilidade» não conceder tolerância de ponto a quem quer participar nas cerimónias de sexta-feira do Centenário das Aparições de Fátima e ver o Papa.

Com uma justificação adicional: evitar congestionamentos. A ver vamos se terá razão.

Confesso ter tanta insensibilidade para este assunto da tolerância de ponto como D. António Marto.

Especialmente depois de feitas as contas aos dias inúteis que antecedem os meses de julho e de agosto, em que a esmagadora maioria dos trabalhadores portugueses goza as suas legítimas férias – como usa fazer, para recuperar forças para mais um ano de intenso e produtivo trabalho, neste país em franca prosperidade e sem necessidade de produzir coisa nenhuma.

Trabalhar para quê? O país está a caminho de sair do défice excessivo, o Presidente e o primeiro-ministro lá voltaram a aparecer a sorrir a bandeiras despregadas, o ambiente é de descrispação e de harmonia.

A esmagadora maioria dos portugueses está sem dinheiro, é um facto – até porque o Estado (e o mercado) paga(m) (muito) mal a quem (mais e melhor) trabalha -, mas, qual povo abençoado, farta-se de descansar. 

E de rezar por melhores dias.

Deus queira que sim.

Diz a anedota que uma senhora já com alguma idade ia todos os dias à igreja pedir a Deus que lhe fizesse o milagre de ganhar o euromilhões. E lá estava ao final de todas as manhãs a renovar o pedido. Até que certo dia, já à saída, sentiu uma palmada no pescoço – um ‘calduço’ vindo sabe-se lá de onde – enquanto ecoava na igreja sem mais vivalma uma voz do Além: «Ao menos joga».

P.S.: A crise da imprensa escrita é um fenómeno universal, traduzido na diminuição de vendas e de receitas publicitárias. Perante isto, os jornais dependem cada vez mais dos seus leitores para se manterem. E é assim que o SOL se vê forçado a aumentar o preço para 3,00 euros, a partir da próxima edição. Esperamos que os leitores compreendam – porque é por eles que existimos e é para eles que trabalhamos. Até para a semana!