Adriana Calcanhotto. “Parte da esquerda brasileira tem ranço em relação a Portugal como colonizador”

Lá no Brasil, antes de vir para cá, dizia que não ia estar fora mas dentro. Veio para passar seis meses, dar aulas como quem faz vento, e logo em Coimbra, tão precisada de correntes de ar. Na Universidade, tem um auditório com lugar para 500 pessoas que acaba por parecer pequeno. Entretanto, lançou em Portugal uma antologia…

Portugal tem uma notável centralidade no mapa-mundo que Adriana Calcanhotto desenha para si. Está cá a convite da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e entre algumas aulas sobre “matérias que não se ensinam”, aproveitou o tempo para ir mais longe na sua atracção pelas marcas que a Antiga Roma deixou entre nós, envolvendo-se nas escavações arqueológicas de Idanha-a-Velha. Se o grande público a conhece das canções, a sua é uma natureza inquieta, e a arte que pratica tem raízes e parabólicas: absorve na terra o minério das tradições e, ao mesmo tempo, capta frequências, brilhos e poeira estelar dos céus.

“É Agora Como Nunca”, a sua “antologia incompleta da poesia brasileira contemporânea” chega a Portugal, com o selo da Cotovia, pouco tempo depois de ter saído no Brasil. Nesta como noutras propostas, ela foge do consenso, do mesmo modo que, como diz na canção, sempre fugiu do bom gosto, dos bons modos… Para falar dela é preciso mandar às urtigas a objectividade. Adriana integra esse bando à parte das figuras cujo encanto é uma criação de si mesmas. Rejeitam a etiqueta, viram-na de cabeça para baixo. Sem cerimónia, fica perto, fixa o olhar, e, ao invés de um curso de cultura geral, falar com ela é como ter notícias de lugares que mudam de lugar, debaixo de um perpétuo crepúsculo. Ela mesma é um ser híbrido, intenso e suave. Chega de um lado onde as metamorfoses são constantes, onde uma pessoa em vez de entrincheirar-se, fincar uma bandeira e defendê-la até à morte, prefere vesti-la, dançar nela, alterar a percepção das suas cores no contraste com as demais.

Num momento em que a poesia contemporânea já não assume um laço tão estreito com a música popular brasileira, e consequentemente os novos poetas estão muitas vezes condenados a uma zona de sombra, esta sua antologia é uma tentativa de estender a sua visibilidade a estes poetas?

Sim, é um pouco isso. A verdade é que, ao mesmo tempo que, com a internet, as pessoas passaram a escrever sem precisar de uma editora que aceite publicá-las, e numa altura em que há muita coisa a ser produzida, e os novos poetas até nem pensam em ser poetas, mas começam ali, nos sites e nos blogues, a divulgar o que escrevem, por outro lado, continua a ser difícil atravessar esse excesso e encontrar um público. Apercebi-me de que gosto de fazer antologias. Não deixa de ser uma forma de fazer alinhamentos, repertórios de álbuns – é mais ou menos a mesma coisa: são escolhas. Sendo mais conhecida a partir da música, espero que um certo público, que talvez não se desse ao trabalho de conferir tudo o que aparece nas livrarias, tenha curiosidade em ler esta antologia, que é apenas um recorte.

E a iniciativa foi sua ou foi desafiada por alguém?

Fui motivada em grande parte pelo que aconteceu há dois anos, quando a Academia Brasileira de Letras não deu o prémio de poesia. Foi muito polémico, mas eles disseram: Não vamos dar o prémio apenas porque o temos para dar, é preciso qualificarem-se para a sua atribuição. Houve alguma contestação, sobretudo da parte de poetas mais jovens que disseram que eles não sabem ler a nova poesia. Foi isso que me intrigou e levou a querer saber o que é que tem a nova poesia que pode levar essas autoridades máximas, esses monstros sagrados [o poeta Ferreira Gullar, que morreria pouco depois, a ensaísta Cleonice Berardinelli, que celebrou em 2016 o seu centésimo aniversário, e o poeta e ensaísta Alberto da Costa e Silva, que fará dentro de dias 86 anos], que leram toda a poesia ocidental… não é possível que não saibam ler, pensei, podem é não gostar.  Acho que esse gesto do júri foi bom no sentido em que é preciso em algum momento dizer: vamos exigir excelência. Achei bom, causou discussão, causou polémica, gerou a minha antologia, que gerou também muita polémica.

Quais foram os pontos de discórdia?

Quando você se dispõe a fazer uma antologia, dispõe-se a fazer inimigos. Essa é a primeira coisa. Muitos poetas não estão na minha antologia porque não me identifiquei com a poesia deles, mas muitos mais não estão porque não conheço ainda o seu trabalho. A antologia já adianta que é incompleta, não só porque assim acontece com todas, mas para afirmar que a minha ideia não é esgotar o assunto. Continuo lendo, descobrindo novos poemas. Também porque, enquanto fazia a antologia, brotavam novos poetas, aqueles que já estavam seleccionados escreviam outros poemas. Em alguns casos eu gostava mais do poema novo que saiu, porque já se inscrevia noutra etapa… enfim, mais amadurecida, a voz mais definida. Foi por isso que me dei um prazo para terminar, de outro modo não terminaria nunca. É poesia contemporânea, está na palavra – ficaria o resto da minha vida fazendo a antologia. Dei-me um prazo também porque sei que se tivesse entregado um dia antes ou um dia depois a antologia já não seria exactamente essa. Ela é um polaróide, um instantâneo da hora em que eu disse: pronto, não aguento mais. Marquei um dia e entreguei à editora.

Haverá continuação?

As pessoas perguntam muito se haverá mais volumes. Depende do que vai acontecer. Não depende de mim, mas dos poetas, dos poemas.

Quais são os traços que identificam estes poetas?

Na grande maioria estes nomes parecem reflectir uma grande cultura poética. Eles citam muitas coisas, de tempos diferentes, e citam-se muito uns aos outros, o que é também interessante, até porque não dá nunca a sensação de que eles integram um movimento. Ao contrário, acho que são até poéticas introspectivas, talvez porque estejam precisamente a inventar as suas vozes. Quase todos escrevem no verso livre, mas estão preocupados com a língua, com a linguagem, com as influências, com os esmagamentos…

Qual foi o critério que orientou a selecção?

Aqui foi mais pelos poemas que os poetas, para não me ver perante a obrigação de ter de incluir este poeta ou aquele. Muitas pessoas falaram: ah, mas tem menos negros, tem menos mulheres… A minha resposta é que não tentei fazer uma antologia de machos alfa brancos. Isso talvez seja um retrato do que acontece no Brasil. Não encontrei poetas indígenas. De qualquer forma isto é autoral, é um retrato pessoal. Deu-me muito prazer fazê-lo, no sentido em que é o que gosto de fazer: seleccionar, juntar, depois fazer o equilíbrio do todo. É um trabalho, é longo, demora, mas adoro fazê-lo. Se não for útil para as pessoas, quanto mais não seja serviu para eu me divertir.

Ao falar das reacções, tocou numa fraqueza que tem sido identificada com boa parte da esquerda, que parece ter esquecido que a sua prioridade é denunciar a grande divisão social, que continua a ser a fronteira entre pobres e ricos, entre os que têm e os despossuídos, para hoje se colocar numa hipersensibilidade que a leva a policiar as questões de representação ao nível da identidade: cor, género, orientação sexual… Isso leva, neste caso, a que as pessoas mostrem menos interesse pela poesia do que em tentar formar um united colors da identidade. Acompanha essa preocupação?

Sim. Estou preocupada aqui é com a poesia. Não há aqui poemas que não me tenham dito nada e que tenham sido escolhidos apenas para compor o ramalhete. Não é uma antologia académica, por isso não tem consideração por mais nada. Eu gosto ou não gosto do poema. Se o poeta é de direita, se é rico, coxinha ou se é petralha… Não estou preocupada com isso, mas fui criticada por isso mesmo.  Fazer uma antologia é pedir para ser criticada, portanto, isso não me importa. O que me importa mesmo aqui é a poesia. Não deixaria de incluir um poema que eu acho bonito, bem feito, importante, porque o que o poeta diz pode ser considerado de direita. Não vou desconsiderar algumas ideias que me parecem interessantes do Heidegger porque ele simpatizava com ideias que eu recuso. Não desconsidero essas preocupações, mas se, nesse caso, levar a que a poesia passe para segundo plano… Não fiz uma antologia tentando observar quotas, isso a mim não me interessa. Quando disse no Brasil que não me importava a orientação política ou sexual, de género ou religiosa, mereci críticas de algumas pessoas.

Acha que isso se deve ao actual momento que o país atravessa?

Os ânimos estão muito exaltados, e é compreensível. Somos um estado laico e sempre parecemos tolerantes, mas isso é uma superfície e é bastante ténue. Estão a passar-se coisas que nunca imaginei que pudessem acontecer no Brasil. Mas o meu interesse nesta antologia é a poesia. As outras questões deixo para as pessoas que estão mais interessadas se preocuparem com elas.  Disse isto numa conversa ao Eucanaã Ferraz: o facto de ter menos mulheres negras na antologia não é algo que acontece só na antologia. Mulheres negras escrevendo poesia são em menor número, ponto. Não posso querer corrigir a realidade. Não pensei nesses termos: quem é que é mulher, quem é homem, quem é travesti. Ele lembrou uma coisa: se você for defender a quota da poesia indígena, depois nessa quota alguém vai reclamar – “ah, mas não tem pataxó”. Onde fica a poesia nisto? Em terceiro plano?

No Brasil surgiu uma discussão interessante representada pela dicotomia entre João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes, que eram amigos, admiravam-se mutuamente. João Cabral achava que o Vinicius tinha o dom para se tornar o grande génio da literatura brasileira, mas tinha aquele problema de se ter metido com a música…

Meteu-se com a vida.

Parece que essa separação não apenas persiste como se agravou, ao ponto de os novos poetas brasileiros não conseguirem num gigante como o Brasil ter tiragens superiores àquelas que se fazem em Portugal, que andando por volta dos 300 dão à poesia contemporânea uma expressão miserável.

É evidente que a ligação da poesia à música ajuda. Quando o Bob Dylan ganha o Nobel da literatura isso prova que ele tem livros inteiros de poesia numa expressão que não é a do livro impresso. O Francisco Bosco, num depoimento sobre António Cícero, disse que os leitores de poesia são 1254 em todos os tempos. Não passa disso. Quando se pode veicular a poesia de outras maneiras, e através da música, isso é óptimo. Aquela ideia de forçar as pessoas a lerem poesia na escola, é o que já disse o Eucanaã na entrevista que você lhe fez: a escola atrapalha. Há um momento depois em que é preciso corrigir essa deformação. No Brasil há este fenómeno de se ouvir poesia de altíssima qualidade na rádio popular. Não é em todos os países que isso acontece. Em compensação, em Portugal as pessoas têm uma outra ligação à poesia, aqui há uma maior noção de quem são os grandes poetas de cada tempo. O dia de Portugal é o dia de Camões, não é o dia de um militar, de um navegador.

E quanto à dicotomia traçada entre a poesia mais popular ou erudita?

Acho que ninguém perde e ninguém ganha. O João Cabral fez uma coisa pela poesia e pela linguagem… fez a revolução dele. Mas é como a gente diz no Brasil, você tem de saber onde amarrou a mula. O Vinicius era um grande poeta e sofreu muito desprestígio por ter ido para a música. Era um homem desprendido e por isso foi. Agora, foi expulso do Itamaraty [Ministério das Relações Externas]. Ele não estava nem aí, mas talvez outra pessoa não resistisse àquele tipo de pressão. O João Cabral disse-lhe: “Você escolheu a vida”… Como se fosse uma má escolha. À pergunta que me fez eu não sei a resposta, a coisa boa é a pergunta, é pensar sobre isso.

Ao reunir estes poetas tem a sensação de que eles estão com o ouvido encostado à terra e que sentem abalos que escapam à poesia que chega às pessoas através de outras expressões artísticas?

Como são novos, estão-se inventando, estão à procura de alguma coisa, o que já não é pouco. Para mim a curiosidade é que continuam a publicar-se livros de poesia. Com todos os blogues, sites, saraus, concursos de slam poetry, você vai na livraria e tem livros de poesia que continuam a publicar-se todos os dias no Brasil. Aqueles livros que reuniram a poesia completa do Waly Salomão, Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski, esses livros que a Companhia das Letras lançou, foram fenómenos de vendas que ninguém imaginava. Existe um público de poesia. Pensa-se que ele está hoje todo do lado da música, mas não. Aqui fiz questão de não misturar os poetas que estão a escrever músicas, aqui escolhi os que estão publicando livros. São os poetas da página, do verso. Não fui pelos caminhos dos que prosseguiram a poesia não acreditando no verso, ou experimentando o verso de outras formas. Acho interessante que as pessoas continuem a escrever poesia sendo difícil, sendo que não se vive de poesia, sendo que o público é pouco, e, com tudo isso, existe uma poesia que é rica, viva, efervescente. Isso é bom, porque sempre persiste também aquela turma, aquelas pessoas que cumprem mesmo esse papel em todos os tempos, que é dizer: Não se escreve mais poesia como antigamente; não se compõe mais canções como dantes… Isso sempre vai ter.

Conhece a antologia da poesia brasileira contemporânea de Francisco José Viegas publicada cá pouco antes da sua?

Sim. Temos em comum oito poetas. Os outros 10 eu não conheço. Isso significa que há ainda muito para descobrir. Se isso vai originar outra antologia é o que menos interessa. Mas ainda tenho poetas, tenho poemas para ler, e estes continuam a publicar coisas.

Um aspecto curioso na antologia de Viegas é que ele deu-lhe o título “Naquela Língua”. Como se fosse uma língua que assumiu uma outra vida e que nos chega hoje com uma certa estranheza. A sensação que temos é que a poesia portuguesa contemporânea e a brasileira são dois mundos à parte. Tem alguma ideia a este respeito?

Não estou assim tão inteirada. Há dois anos, antes de fazer esta antologia, estava a ler a poesia portuguesa contemporânea. Cheguei até a falar com o André Jorge [fundador da Cotovia, que morreu no ano passado] sobre uma possível antologia portuguesa. Mas acho interessante essa questão aflorada no título “Naquela Língua” e tenho pensado muito sobre isso na residência que estou a fazer em Coimbra: somos duas línguas, somos uma… Não podemos dizer que somos duas porque nós empobrecemos a língua portuguesa. Nós falamos um português arcaico. Um dia destes uma professora em Coimbra disse-me uma coisa engraçada… Em geral os portugueses acham bonito o brasileiro – como vocês dizem. Nós não temos a menor noção de que falamos brasileiro – dizemos que falamos português. Mas essa ideia de que nós puxamos as vogais, de que falamos de um jeito mais sensual, mais aberto, tudo isso… Essa professora disse-me: Vocês falam de uma forma que parece português arcaico, parecem as canções de D. Dinis. Eu não tinha pensado dessa forma. É engraçado, porque nós mantemos palavras do português arcaico que vocês já não usam.

Parece-lhe que os dois países dividem entre si irmãmente um mesmo legado e o destino da língua portuguesa?

O que os dois países estão vivendo, não sei porquê, e já conversei isso com o Eduardo Lourenço, não entendo porque é que a gente não emparelha. Quando o Brasil está mal Portugal está bem e vice-versa. Nunca somos nós, se um está bem o outro está mal. Há sempre um contra-fluxo. Acho que isso influencia muito a poesia que se vai escrevendo a cada momento. Acho que esta exacerbação política, esta coisa dogmática, as quotas… Por exemplo, esta esquerda brasileira que tem um ranço em relação a Portugal como colonizador revela um modo antigo de ver as coisas, e que vai deixando as coisas principais em segundo lugar. E isto acontece tanto na poesia como na própria política. E isso é um fenómeno que se vê no resto do mundo. Viu-se agora na França. A direita é extremamente pragmática, não fica discutindo essas coisas. A direita quer o poder, ao passo que a esquerda fica-se repartindo, fica rachando com estas questões, deixando sempre a coisa essencial para segundo plano. Estou a falar de uma maneira muito genérica, mas acho que o contexto político evidentemente vai afectar a poesia de cada momento. Há dois anos atrás, quando estava a ler a poesia portuguesa contemporânea portuguesa, era uma coisa, agora que vou pegar de lá para cá… Em dois anos Portugal teve uma mudança acentuada. Tal como o Brasil, só que em direcções diferentes.

Na sua relação com a poesia e a música, de que maneira é que a poesia lhe indicou o que é que lhe importava na música, e de que forma é que a música a informa sobre o que é a poesia?

Às vezes a música ajuda. Leio um poema pela primeira vez e ele às vezes já está musicado. Sempre que ponho música num poema tenho consciência de que estou extraindo uma das possibilidades musicais que aquele poema tem, e que vem da minha formação vocabular, da minha limitação, isto e aquilo… Nunca será a mesma que outra pessoa irá extrair. Mas muitas vezes não tem relação com a música. O poema atinge-me de uma maneira que nada tem a ver com música. Agora, quando a música entra para mim, como eu acho que entra para a maioria dos brasileiros, que é através da própria música, ouve-se poesia na rádio sem nem se dar conta, mas quando eu comecei a dar-me conta, apercebi-me de que havia alguma coisa ali… tinha uma diferença. Porque é que quando era o Vinicius de Moraes não era a mesma coisa que se passa com, vamos supor, com o “Devolva-me” [canção da Adriana]. Tinha qualquer coisa, que era o poema se apresentando por si. É muito difícil falar sobre isso, é muito subjectivo. Muitas vezes tenho necessidade de voltar ao poema, como se volta a um quadro ou mesmo a um romance… Na verdade, eu não leio mais prosa, não tenho mais vergonha de o dizer.

Não tem vergonha de o dizer? Mas sentiu um corte? Porque é que deixou de lhe interessar?

Para ser muito sincera, quando abro um romance dá-me a sensação de… ai Deus… Os livros de poesia estão ali, eu podia estar a lê-los…

Sente que há mais urgência na poesia?

É. Desculpem-me os romancistas mas eu acho que sim. É uma coisa pessoal, mas tenho tantos poemas para ler. Sei que vou morrer e não vou ler todos os poemas que gostaria de ler. Então estou aqui a ler um romance quando gostaria de ler poesia… É isso o que eu sinto, então o melhor é não disfarçar, é assumir.

Isso parece óbvio no poema, essa urgência, até porque ele vai caminhando e ao mesmo tempo vai-se desfigurando na página para encontrar a autonomia daquele momento e da sua expressão, mas, por outro lado, no actual mercado da especulação literária, o romance parece ter sido eleito como príncipe entre todos os géneros literários o que, sobretudo para quem lê entre géneros, é incompreensível. Porque lhe parece que existe esta tão violenta contraposição?

Porque o romance é ficção, narrativa, a poesia não quer nada disso, não quer nada com nada. Isto seria uma frase típica do Waly Salomão. Acho a poesia mais bruta, mais violenta. O romance é mais acolchoado, talvez. Mas é difícil para mim falar do romance porque não leio romances. Li alguns, mas não li sequer tudo da prosa obrigatória, os grandes clássicos do Brasil, mas não adianta. O romance não me transporta para esse lugar, não me põe em xeque como a poesia.

Heloísa Buarque de Hollanda, na antologia que fez da poesia marginal brasileira dos anos 70, “26 Poetas Hoje”, parece ter conseguido fazer um raio-X do que se estava a passar de mais instigante naquela geração, tendo dado destaque então a poetas que atingiram já a consagração, mas que na altura eram desconhecidos. Poetas como Wali Salomão, Roberto Piva, Torquato Neto, Ana Cristina Cesar… É uma antologia fabulosa, e aliás não há em Portugal, nas últimas décadas, nada que se pareça, com uma antologiadora capaz de perceber a força de algo que estava a acontecer…

Mas no Brasil também não há. A antologia dela foi realmente uma coisa única. Porque a Heloísa tem essa capacidade, tem uma antena incrível. E isso num tempo pré-internet, em que ela precisava pesquisar as coisas de outro jeito. Mas ela também vivia num universo de poetas, e ela é, diferente do que se passa no meu caso, uma autoridade, uma professora daquilo. Eu sou só uma fã, uma leitora. Aquilo foi muito importante, e a seguinte, “Esses Poetas – Uma antologia dos anos 90”, também tem essa importância. Algumas pessoas brincaram comigo quando eu fiz esta antologia e disseram: Você fez a antologia que a Heloísa estaria para fazer. Mas é outro ponto de vista. Ela tem um olhar capaz de ver no tempo, o que vem à frente. Tem toda uma bagagem de leituras que eu não tenho. Eu não estou com vontade de ver à frente, estou bem dentro disto aqui, se calhar sem nenhum distanciamento. Não tenho como ter distanciamento, mesmo sendo mais velha do que os poetas aqui representados.

Teve colaborações com alguns dos poetas daquela geração de 70, não é?

E também aqui com o Omar Salomão, há um poema dele aqui que eu musiquei.

O Omar é alguma coisa ao Waly?

É o segundo filho, o mais novo. Tem aqui um poema dele que eu já tinha musicado e inicialmente achei que era melhor não o incluir por isso. Mas depois pensei qual era o motivo dessa inibição. Se o musiquei é porque gosto dele.

Não sente que, num certo sentido, mesmo esta geração, quatro décadas depois, ainda tem uma dívida demasiado grande para com aquela geração de 70? Não lhe parece que foi uma geração de tal modo diversa e marcante que os poetas de hoje ainda estão a tentar recuperar da ressaca que eles causaram?

Sim. Foram tão originais, foi uma coisa tão forte… É por isso que eu acho tão corajoso escrever poesia hoje no Brasil. Tanto quanto foi para esses poetas escreverem depois dos modernistas. Depois do João Cabral… poetas que engessam. Isso é que acho fascinante. Vejo a Alice Sant’Ana, a Ana Martins Marques escrevendo depois da Ana Cristina Cesar assim como vejo as pessoas a escreverem aqui em Portugal depois da Adília Lopes… Não é fácil. É mais ou menos como ser dramaturgo na Inglaterra. Eles têm consciência de tudo o que têm atrás, de todo o poder, do esmagamento, digamos assim, mas não lhes falta coragem. Lembro-me do Sylvio Fraga, que está aqui agora, ter contado uma conversa com o Eucanaã em que lhe disse certa vez que estava lendo o João Cabral e que sentia que tinha sido amordaçado por ele. O Eucanaã disse-lhe que ele tinha de ler, assimilar e matar ou você não vai escrever nem uma linha, nunca mais. Esse exercício eles têm todos que fazer.

A Adriana está em Portugal convidada para uma residência pela Universidade de Coimbra? E está a dar aulas sobre o quê?

Na verdade estou a dar aulas sobre coisas que não se ensinam. (risos)

Mas está ligado à sua carreira musical?

A primeira, a pedido deles, foi sobre a minha trajectória, para que as pessoas que vão seguir as aulas possam conhecer o meu percurso. Assim fiquei preparando a aula com episódios que eu passei a vida a tentar esquecer. Não é do meu temperamento ficar olhando para trás. Mas era um pedido e eu fiz. A segunda aula já era para falar de letra e música, sobre essa questão de que a poesia existe antes da escrita. Daí por diante, a Grécia, os trovadores, Bob Dylan, as musas. Depois dei uma aula – que eu ofereci, porque é um assunto que me interessa muito – sobre o parangolé Pamplona, que é uma obra específica do Hélio Oiticica, que eu acho que é um grande passo na trajectória dele, no horizonte que ele buscava, mas que é um passo dado um pouco por acaso. Ele teorizava tanto a obra dele que acho que foi libertador para ele resolver aquilo porque estava doente, impedido de comparecer na mostra de Pamplona, para onde tinha sido convidado. Como ele não podia ir, inventou um parangolé que a pessoa que vai usar é quem faz. Com isso ele elimina todas as questões sobre as quais ele estava teorizando. Eliminou o artesanato do artista, o museu, a restauração… Ele dá um passo gigante escrevendo quatro linhas, com indicações que qualquer pessoa pode seguir para criar o parangolé, e com isso ele dá um passo que, no meu entender, resolve os seus problemas. Ele quis se livrar de aspectos no seu trabalho que considerava ainda demasiado burgueses. Enquanto houver mundo, você vai numa casa de tecidos e faz o seu parangolé. O motor da obra, é você dançando. Você é o espectador e o fruidor da obra ao mesmo tempo.

As pessoas aqui em Portugal conhecem bem o seu trabalho. Não é uma estrangeira entre nós.

No Brasil perguntaram-me isso: Como vai ser passar seis meses lá fora? E eu: Não, vou estar seis meses lá dentro. (Risos). Não é o exterior é o interior.

Quais são os interesses por este país que queria explorar melhor agora que veio para ficar mais tempo?

Estou interessada em duas coisas agora que as aulas estão a terminar e está tudo quase pronto para as duas últimas aulas, que serão sobre os trovadores antigos e contemporâneos… Também vou dar aulas na Bulgária, uma oportunidade que apareceu no meio disto tudo, e talvez vá fazer alguma coisa na Sorbonne, porque se assinala este ano o centenário da língua portuguesa como uma das matérias da Faculdade de Letras. Mas estou interessada no Portugal romano e na poesia contemporânea portuguesa. Estou com uma para cada lado, no tempo. E Coimbra é uma cidade muito interessante, porque tem algo que me parece que vem da tradição romana que é a convivência com as diferentes culturas e religiões. Elas estão ali, conviveram, tocaram-se, passaram… Não é necessário destruir tudo o que tinha, negar e construir uma outra coisa. As coisas vão-se sobrepondo. Coimbra é muito pequena e tem proporções humanas, e conta com aquela parte árabe das ruas estreitas, mas ao mesmo tempo é uma cidade que tem uma verticalidade de tempo e antiguidade que é fascinante. Estou deslumbrada com isso.

Qual foi a canção que cresceu consigo ao longo da sua vida e a foi marcando de formas diferentes?

“O Nome da Cidade”, do Caetano. Uma canção que ele fez de encomenda para a Maria Bethânia, num espectáculo que falava d’“A Hora da Estrela”, da Clarice Lispector. É sobre um escritor escrevendo sobre uma personagem, e o choque dessa personagem chegando no Rio de Janeiro, vinda do Nordeste, sentindo os contrastes… Eu não vim do Nordeste, vim do Sul, mas tenho uma identificação grande com aquilo. E à medida que o tempo vai passando e que eu também me vou aprofundando na obra da Clarice, e que a Bethânia vai largando mais coisas, o Caetano compondo mais canções, essa canção vai significando mais. Acho que ela marca a minha chegada no Rio, que foi uma coisa que mudou a minha vida para sempre.

Na chegada ao Rio vinda de Porto Alegre já sabia de que é que ia à procura?

Fui fazer um concerto. Mas sempre tive desde pequena a ideia de sair de casa e ir para o mundo. Ir para uma cidade grande, aquela ideia cosmopolita. Para mim o Rio de Janeiro não representava isso. Apesar de todos aqueles contrastes, descobrir a beleza proveniente desses contrastes – e não se trata só da beleza física, porque não dá para dizer que aquela cidade não é linda –, mas o jeito libertário dos cariocas está muito relacionado com a beleza física da cidade. Você não pode estar muito angustiado, sair para a rua e ver uma pedra daquele tamanho literalmente no meio do caminho e não se modificar. Aquela coisa de uma natureza tão bruta e tão linda faz as pessoas levarem a vida daquele jeito. Com o tempo fui aprendendo, mas no início parecia-me chocante, vinda do Rio Grande do Sul, do modo conservador como fui criada… Mas descobri-a aos poucos, não foi aquela chegada que te deixa siderado. Já tinha visitado o Rio umas duas vezes, sabia que era lindo, mas fui descobrindo mais.

Quanto a essa ideia da cidade grande, contaram-me que o Tom Jobim disse certa vez que quando visitou Nova Iorque lhe perguntaram o que achou da cidade, e ele disse que Nova Iorque é maravilhosa mas não presta, ao passo que o Rio não presta mas é maravilhoso. Revê-se nesta noção hoje que viajou pelo mundo inteiro e visitou as grandes cidades? O Rio ensinou-lhe alguma coisa sobre o que é a verdadeira grandeza de uma cidade?

Como o próprio Tom Jobim dizia, o Brasil não é para amadores. É uma coisa bastante mais complexa do que parece. Mas falando do Tom Jobim, ele adorava esse tipo de contradição fluente. Ele dizia que a música brasileira é alegre e é triste e é alegre e é triste… Mas quando imaginava o mundo, ganhar a grande cidade, vinha-me à cabeça, do que eu conhecia, era São Paulo. Uma cidade cheia de prédios, uma grande cidade era Tóquio. São Paulo, do ponto de vista urbano, é que era grande. Não via o Rio como uma grande cidade. Via o Rio como uma cidade que tem uma praia, em que as pessoas usam de um tempo diferente. O Rio era um balneário… Eu vinha com muita ignorância sobre o Rio, preconceito até. Mas quando vi esses contrastes todos, o espírito libertário, essa coisa tão democrática, em que todo o mundo convive, os resquícios da corte que resistem até hoje, você vê que teve ali uma coisa muito civilizada, tudo isso fui achando fascinante, fui entendendo que era uma grande cidade. Fui conhecendo pessoas incríveis, os poetas, e para mim ela vai ficando maior à medida que o tempo passa.

E mundo fora, houve outra cidade que foi marcante para si?

Tóquio é uma cidade de que gosto muito. Achei que não ia gostar, pensei que ia ficar um pouco deprimida por causa das dimensões, julguei que me ia sentir muito pequena, meio perdida, mas aquela coisa da forma como eles prezam o silêncio, respeitam o espaço do outro, como existe o outro… À medida que os dias iam passando eu ia-me sentindo em paz. As pessoas pensam no silêncio do outro! Para quem vive no Rio de Janeiro isso é chocante. (Risos) Mas cada cidade tem a sua cara, o bacana é conhecer cidades novas.

Neste momento em que o Brasil passou de ser apontado como um milagre, acabou a euforia, qual é o seu sentimento pessoal em relação à crise que o país enfrenta agora?

Penso que o que estamos a passar neste momento específico são dores de transição para algo muito melhor. Nada disto que está vindo à tona veio antes. E isto são anos e anos de uma coisa viciada dentro da política… As pessoas têm esse desejo de serem ricas porque no Brasil se pagam altos impostos mas os serviços são muito maus, então para se viver uma vida minimamente razoável você precisa sonhar com ser rico. É um absurdo o nível da desigualdade. Mas o que vejo é isso: claro que está conturbado, mas é melhor estar conturbado do que acomodado. Acho que é bom sinal, embora, enfim, tenha coisas absurdas acontecendo. Só que elas já se passavam. Agora temos de continuar a mostrar coragem para levar as coisas em frente.

Interessa-lhe assumir um papel político como têm feito outros artistas, parece-lhe importante não apenas observar mas denunciar… Por exemplo, o golpe no caso deste governo, ou parece-lhe que as coisas são mais complexas do que isso, e prefere não ter uma posição tão marcada?

Já tive mais empenhamento político. Mas desiludi-me com essa discussão excessivamente partidária, focada nos cargos, nos nomes… Não há política no Brasil no sentido de uma discussão mais profunda dos problemas. Desiludi-me muito. Quando era jovem tinha mais forças para isso. Mas acho que publicar poemas e fazer canções é um acto político. Prefiro manifestar-me politicamente dessa forma. Acho que há pouco debate, está tudo muito à flor da pele. As pessoas não querem debater. É compreensível, não fico interessada nesse tipo de divisão. Se eu não concordo com você tiro você da minha vida, tiro você das minhas redes sociais, as pessoas não estão interessadas no confronto com a diferença, e eu acho isso muito primário. Embora entenda, não tenho o menor tipo de paciência para esse tipo de coisas porque acho que a discussão em si não avança. Então prefiro ler poesia.

Lembro-me de um poeta ter dito certa vez que preferia  ler poesia para saber como ia o mundo do que ler jornais. Isto porque se o jornal só contava o que se tinha passado a poesia sentia, tentava transformar o acontecimento, o facto em algo ao mesmo tempo mais desligado e mais ligado da circunstância que o originou.

Concordo com isso. Acho que ler as notícias significa ler coisas tendenciosas e, consequentemente, poluir a visão e o pensamento com muita publicidade. Tenho-me afastado mais e mais das notícias, pensando: as notícias não precisam de mim, e eu preciso de poesia. Então vamos arranjar isto de uma forma melhor.

Há uma aversão à poesia que começa pela escola, pela forma como é impingida e muitas vezes é vista como um discurso afectado. Há também aquela frase que foi citada no filme “A Queda de Wall Street” – “Truth is like poetry, and people fucking hate poetry”… Quando fala sobre poesia e tenta divulgar os poetas contemporâneos, o que é que lhe parece que a poesia introduz na relação com o seu quotidiano?

Acho que a poesia relativiza tudo o que nos sufoca. Por não querer nada, por não ter compromisso com coisa nenhuma, por ser, como dizia o Waly, “a mais desocupada das ocupações”. É a coisa mais livre de todas. A poesia é como o gato, não aceita um dono. E essa coisa do discurso afectado, é um ranço da esquerda antiga. A ideia de que você tem de ler coisas engajadas e tal. Eu fui de esquerda no século passado. Continua a ser de esquerda, mas a esquerda avança muito lentamente. São ciclos na verdade. Levámos agora este susto com a França. Estava em pânico no domingo. Falei: O que mais pode acontecer depois do Trump ser presidente?

Mas preocupava-a mais do que a eleição de Trump?

Não. Na eleição do Trump eu não consigo acreditar até hoje. Continuo achando que estou num pesadelo e que a qualquer hora alguém vai acordar-me e dizer: Não, era brincadeira. Enfim, não entendo nada de política e quero entender cada vez menos. Acho que os actos são políticos, inclusivamente ficar assim desinteressado. Se eu não tenho em quem votar, não voto. Não gosto do voto útil. Mas o problema de lhe dizer isso nesta conversa é que depois vou ter de ficar respondendo sobre isso. Dando justificações. Esse é o problema de falar sobre política. As coisas estão tão alteradas que em vez de ficar respondendo sobre o que me interessa, sobre o que acho da poesia contemporânea, vou ter de ficar defendo-me. Isso é uma coisa que não ajuda a ninguém. Não acrescenta nada à política, não acrescenta à minha vida, é uma coisa vazia. Fica só a reacção.

Tem acompanhado o aparecimento dos novos poetas, mas para lá do que vai aparecendo, quais são aqueles poetas de toda a sua vida, os que são uma eterna descoberta?

Há muitos assim. Começa por Shakespeare. Aquilo não acaba nunca. Há uma peça específica, o Ricardo III, que é importa até pelo que a peça fez na História, na nossa visão de Ricardo III. O quanto ela produziu reacções históricas, políticas, sendo que aquilo é uma personagem, numa tragédia. Mas foi colocada ao lado das matérias históricas. Aquele passou a ser o Ricardo III da História. Isso é um emaranhado de coisas que para mim não acaba nunca. E quando em 2012 descobriram as ossadas dele no parque de estacionamento de um centro comercial em Leicester… (Risos). Cada vez estamos mais longe do fim. Isso para mim é tão vivo como um livro que acaba de ser publicado. Mas há uma poeta viva que é uma esfinge, a Adília Lopes. Para mim a poesia dela é uma coisa seríssima. E como ela produz muito, quando penso que estou-me aproximando de compreender alguma coisa, ela lança outro livro e deixa-me com mais um osso para roer.

Estes últimos livros dela têm-na marcado como a obra inicial?

É engraçado isso. Há um professor em Coimbra que me dizia: As pessoas não gostavam da Adília no começo porque não a entendiam, aquilo era muito chocante para um certo tipo de leitor de poesia. Agora, que ela já tem uma trajectória, e cada livro é um livro, e nenhum se parece com o outro, as pessoas dizem: Ah, mas a Adília boa era a do começo. (Risos). Eu não entendo a Adília por livros, entendo como um projecto inteiro, uma escrita originalíssima, e, não sei como é com os outros, mas para mim o tempo de assimilação é constante. De vez em quando lembro-me de umas coisas e dou-me conta de que as aprendi com a Adília. É uma coisa que fica ali se movendo, não é um poema que você decora. É o contrário: um poema que você não consegue apreender. E isso tudo acontece em relação à obra inteira dela. Consegui musicar um poema dela. Não sei o que ela vai achar disso, mas de certa forma é uma maneira de eu me aproximar. Foi o mesmo que acontece com a Fiama Hasse Pais Brandão, que era para mim intransponível. Tentava e não conseguia, ia e voltava, até ao momento em que abri um poema e o musiquei na hora. Ele veio com a música. Então, ela ficou mais perto de mim. Com a Adília não é que eu não tenha conseguido de início – ela me fascinou sempre –, mas é uma esfinge.

Lembro-me de um verso da música brasileira, penso que do Nelson Cavaquinho, que diz: Tire o seu sorriso do caminho…

Que eu quero passar com a minha dor…

Lembro-me que ao ouvir este verso ele teve uma força inigualável. É uma verso simples, de uma canção popular, mas é de uma força impressionante. Tem algum verso que tenha sido para si uma descoberta tão impactante?

Há um verso do Vinicius que parece japonês de tão simples e tão profundo: “É melhor ser alegre do que ser triste”. Quer dizer, você tem escolha. Ou quando o [António] Cícero diz: Quem sabe o fim não seja nada e a estrada seja tudo”.

Quando era miúdo havia uma canção sua que eu tinha combinado com uma namorada que seria o nosso S.O.S. se as coisas ficassem pesadas demais e tivéssemos de fugir. Era a canção “Vambora”. Gostava de saber como é a sensação de ver uma canção sua ir tão longe da sua origem e significar coisas tão diferentes para tanta gente? O Bob Dylan, para se escapar, diz “I’m not there”. Eu já não estou lá. E a Adriana o que diz?

Ouço histórias maravilhosas, mas tenho um certo distanciamento porque na hora em que eu acabo uma canção eu sei que ela é do mundo. Sempre foi assim. Você nunca sabe se vai fazer outra, se aquilo vai acontecer outra vez. Mas no momento em que ela é feita, em que acontece aquela epifania, aí sim ela é sua, depois deixa de ser. Nunca mais será. Você não sabe que rumo vai tomar, se as pessoas vão detestar, se vai virar um grande sucesso… A graça está em não saber. Mas depois passam vários anos e vêm pessoas contar histórias incríveis. Casais com filhos, que se conheceram e que a música deles era uma música de um disco meu, depois tiveram filhos e eles ouviam Partimpim e tararara… Estar assim na vida das pessoas faz-me muito feliz porque sei o que é a influência das pessoas que eu ouvi e li e que me transformaram. Fico humildemente ouvindo essas histórias e achando-as comoventes, achando inacreditável que uma canção minha possa ter gerado o que as canções que eu ouvi e que me encorajaram, me levaram a me aventurar pela música. 

E sentiu algum perigo, na medida em que, na sua vida pessoal, tem de ajudar as pessoas a largarem da figura pública, desse poder que vem de, mesmo sem nunca ter tido uma conversa, ter se dirigido a uma pessoa, tê-la já tocado de uma maneira ou de outra? Teve já essa dificuldade de ter de mediar entre a imagem da Adriana Calcanhotto e aquela pessoa que vive um dia-a-dia como o resto do mundo?

Não tenho essa sensação quando chego perto das pessoas. Sinto que elas me vêem como eu sou na vida. Como eu sou de pijama em casa, tocando violão na sala. Nos concertos há um pouco mais esse deslumbramento, porque um concerto tem uma série de elementos encantadores, e depois, quando as pessoas chegam no camarim, e eu não estou iluminada, e sou mais tímida do que no palco… Mas a abordagem das pessoas em geral é: Oi, Adriana… Gosto disso. Não tenho visto grandes idealizações.