Era uma vez no Porto

Não conheço pessoalmente Rui Moreira, mas tenho boa impressão dele.   Tivemos  um fugaz desaguisado nas páginas dos jornais quando escrevi no Record um texto que ele entendeu ser ofensivo para os adeptos  do FC Porto. Mas isso não altera nada.

Na semana passada, Rui Moreira subiu mais um degrau na consideração do país ao dar uma violenta canelada no Partido Socialista. 

A história conta-se rapidamente: Ana Catarina Mendes, secretária-geral do PS em exercício, fez declarações dizendo que a vitória de Rui Moreira seria «uma vitória do PS», que os votos em Rui Moreira seriam votos no PS, e que o apoio do PS a Rui Moreira supunha uma «representação forte» de socialistas nas suas listas.

E Manuel dos Santos, eurodeputado do PS, acrescentou que haveria um acordo entre o seu partido e Rui Moreira – e que este deixaria o mandato a meio, indo para o Parlamento Europeu, entregando a presidência da Câmara aos socialistas.

Criou-se, assim, uma suspeição à volta de Rui Moreira, que ele poderia ter resolvido de duas maneiras: ou deitava água na fervura, dizendo que não havia qualquer negociação com nenhum partido e que ele tinha ‘muito orgulho’ no apoio do PS (como fez Sampaio da Nóvoa, por exemplo, nas últimas presidenciais), ou reagia com veemência e mesmo com brutalidade.

E Rui Moreira reagiu com brutalidade.

Disse que não estava refém de nenhum partido, que a sua candidatura era rigorosamente independente e que nunca deixaria de o ser – e foi mais longe, garantindo que o número dois da sua lista não seria um socialista mas sim um independente.

E aqui a bola ficou do lado do PS: ou mandava Rui Moreira à fava e arranjava um candidato próprio, ou recuava e engolia tudo o que tinha dito.

Como se sabe, o PS retirou o apoio a Moreira e apresentou Manuel Pizarro como seu candidato à Câmara.

Julgo que foi um duplo erro.Há alturas em que é preciso manter a cabeça fria – e escolher entre dois males.

Ora, no ponto em que se estava, seria mil vezes preferível para o PS manter o apoio a Moreira e desvalorizar o episódio.

Os danos seriam menores do que os que vai ter em consequência da rutura.

Como vai o PS justificar os ataques a um homem que apoiava uns meses atrás?

Vai dizer que o faz por ele não lhe dar os lugares que queria?

Por outro lado, a escolha de Pizarro foi uma opção desastrosa.

Como irá Pizarro fazer campanha contra uma política camarária da qual foi, nos últimos quatro anos, um dos rostos mais visíveis?

O que vai dizer de Rui Moreira, do qual foi um dos principais colaboradores?
Tudo irá, pois, soar a falso: ninguém perceberá os ataques do Partido Socialista a um candidato que começou por apoiar – e não serão bem vistas as críticas de Manuel Pizarro a um gabinete a que pertenceu.
Só os socialistas mais militantes irão mesmo votar nas listas do PS nas próximas autárquicas no Porto.

Quanto a Rui Moreira, tem-se dito que ele aproveitou um pretexto para se ver livre de um apoio que o incomodava. 
Não vejo a questão assim.

Não é qualquer pessoa que desdenha tão categoricamente o apoio do partido do Governo, sabendo que passará daí em diante a ter de contar com a sua hostilidade (e a de toda a esquerda).

É a primeira vez, que me recorde, que um candidato rejeita um apoio partidário de peso. 

Mário Soares, em 1986, depois de Cunhal ter dito que os militantes do PCP deviam votar nele tapando-lhe a cara, declarou-se honrado com o apoio dos comunistas.

Não teve coragem para referir, sequer, a indelicadeza da situação.
E Soares, note-se, era um político corajoso.

Claro que o gesto de Rui Moreira também não terá sido totalmente ingénuo.
Por todo o mundo ocidental as pessoas contestam os partidos tradicionais.Procuram outras coisas.

E esta atitude vai nesse sentido: ao recusar a identificação com um partido do sistema, Moreira poderá estar a ganhar votos junto dos que desconfiam dos partidos.
A cumplicidade com o PS – ainda por cima depois de Catarina Mendes ter sugerido uma ‘negociata’ de lugares – poderia ser muito negativa para ele.
Rui Moreira, além de tomar uma decisão corajosa, tomou a decisão certa do ponto de vista do seu futuro.
Deu um passo importante para amanhã se apresentar ao país como um político de mãos livres, que recusa arranjinhos mesmo com o partido do poder. 
Macron, de outra maneira, fez o mesmo em França – e hoje é Presidente da República. 

P.S. – António Costa tem uma arte única para se pôr fora do que não lhe convém (e dentro do que lhe convém). Os problemas da CGD nunca o salpicaram, apesar de se terem arrastado por mais de um ano. E agora esta história do Porto também não o afetou, atingindo apenas a secretária-geral adjunta. Imagine-se o que se diria se isto acontecesse com Passos Coelho. Que ele não tinha mão no partido, que o PSD estava em roda-livre, que cometia erros infantis, etc. É claro que, para esta ‘impunidade’, António Costa também tem contado com a cumplicidade da comunicação social. De outro modo não escaparia às críticas.