Fátima Marques Pereira: ‘Acordo e adormeço a pensar no Arquipélago’

Fátima Marques Pereira dirige o “Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas” desde o primeiro dia. Ao início, reconhece, ficou assustada com o tamanho do conjunto. Mas aceitou o desafio porque queria pôr em prática aquilo que tinha ensinado ao longo de mais de 20 anos.

Está no Arquipélago desde a fundação?

Estou. Chegámos a 1 de fevereiro de 2015 e inaugurámos passados dois meses, a 29 de março.

Acompanhou o processo de construção do edifício ou quando chegou já estava feito?

Já estava feito. Mas tivemos de montar tudo desde o início, em particular a equipa, que eu não conhecia.

Já tinha estado antes em S. Miguel?

Em 2013 tinha sido convidada para vir dar uma formação na área da Gestão Cultural. Estive aqui três ou quatro dias. Quando me fizeram o convite para dirigir o Arquipélago, também vim antes para conhecer o espaço, ao longo de uma semana, e trabalhar com o diretor regional da Cultura.

Teve dúvidas em aceitar o convite?

Eu sabia da existência do Centro de Artes Contemporâneas, não sabia é que tinha esta dimensão. Quando cheguei foi uma enorme surpresa e achei que era um espaço absolutamente extraordinário. Por outro lado, era um centro de artes contemporâneas, não era um museu, e isso interessou-me muito. Se me perguntar se me assustou, assustou-me, porque é grande, e uma pessoa tem sempre dúvidas. Mas achei que era um enorme desafio, nomeadamente porque fui professora e ensinava todas estas áreas – fotografia, artes visuais, cinema, multimédia, arquitetura – e aqui podia pôr em prática tudo aquilo que fui ensinando ao longo de 20 e tal anos.

Como foi a sua adaptação aos Açores?

Sempre gostei muito de ilhas, mas ia sempre só de visita – nunca pensei que viesse parar a uma ilha. O arquipélago é lindíssimo e há uma coisa que me fascina: as nuvens. As nuvens aqui são absolutamente extraordinárias. A linha do horizonte também me fascina, mas começo a olhar e de repente percebo que estou rodeada de mar. E como não tenho a família aqui, às vezes posso ficar um bocadinho aflita, até porque de repente pode haver uma tempestade e não tenho hipótese de ir ver o Lourenço (o meu filho), a família ou os meus amigos.

Para quem vem do continente, pode ser claustrofóbico viver numa ilha?

Esta paisagem é tão bonita que pode provocar alguma nostalgia. E isso eu evito. Mas há uma coisa bestial. A água do mar aqui é quentinha e faz muito bem. E sempre que vejo que posso estar a sentir uma grande saudade pego no telefone e peço para virem cá ou vou eu [ao continente]. Agora, a questão da insularidade é verdade, a questão da solidão é verdade. Temos é de contrariar isso. Eu contrario com o meu trabalho: acordo a pensar no Arquipélago, adormeço a pensar no Arquipélago, estou sempre preocupada com o Arquipélago. E sinto-me privilegiada por ter esta equipa. Sabem que estou sozinha e se estou triste eles percebem e vêm falar comigo. No fundo são a minha segunda família. São bestiais.

Também criou outras defesas?

O primeiro ano passou muito rápido. O segundo ano foi mais difícil. Chego a casa e, se não tenho visitas, estou sozinha. Por isso senti que tinha de ter as minhas coisas, sabia que se as tivesse ia aliviar qualquer saudade que viesse muito de repente, porque tinha as minhas fotografias, os meus livros…

A mobília, também?

Também. Trouxe tudo num contentor. Também procurei uma casa com jardim, onde me sentisse bem. 

O Arquipélago não só está no espaço periférico que são as ilhas como não se encontra sequer na capital de S. Miguel. Como se consegue atrair público para aqui?

Na entrada do Arquipélago há uns degraus e os miúdos brincavam imenso ali com os skates. Mas não entravam, então eu dizia-lhes: ‘Porque é que ficam aí e nunca entram? Têm de entrar’. E eles respondiam-me: ‘Não temos obstáculos, não temos uma rampa’. Então prometi-lhes que ia convidar alguém para construir uma rampa e ficaram todos contentes. Um dia tivemos aqui uma inauguração e veio um artista que conheço muito bem, o André Laranjinha. Ele começou a andar de skate com os miúdos e eu fiz-lhe o desafio. Ele trabalhou com os miúdos do skate de cá e desenharam esta rampa. Os miúdos começaram a vir e a trazer os obstáculos deles.

Já estão a apropriar-se?

Exatamente. Depois falamos com eles, tentamos cativá-los: ‘Não querem ir à biblioteca? Não querem ir ver a exposição?’. Conseguimos criar uma relação e eles já vêm sistematicamente à biblioteca. O Serviço Educativo também trabalha muito com as escolas e ainda tentamos que o Arquipélago faça atividades fora de portas, até porque há pessoas que não têm oportunidade de vir aqui.

Pode dar um exemplo?

O primeiro trabalho que fizemos a esse nível foi no ano passado com o Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada. Levei a equipa, falámos com o diretor da prisão, fomos apresentar o Arquipélago e perguntámos aos reclusos o que queriam fazer connosco. Depois propusemos um documentário que se chama 3 Horas para Amar, que é sobre a visita íntima dos reclusos. Eles adoraram. 

Encher 9 mil metros quadrados com programação não deve ser fácil. E também não deve ser barato…

É verdade, mas isso já estava tudo previsto. Temos o orçamento do governo [regional], mas não podemos viver meramente do orçamento. Estamos sempre a concorrer a apoios, além de eu tentar arranjar sponsors.

Havendo aqui uma população carenciada, as pessoas da região não veem o centro como um luxo de que não precisavam? 

Acho que o governo dos Açores foi visionário ao criar um centro de Artes Contemporâneas num lugar como esta ilha de S. Miguel. Cada vez mais há uma necessidade de descentralização e a cultura e as artes são fundamentais não só para o conhecimento de toda a população como para o crescimento económico. Inaugurámos no mesmo dia em que as low cost passaram a voar para aqui e percebemos que o aumento do turismo foi enorme. Mas há um caminho para se fazer. Temos a preocupação de trabalhar os artistas locais sempre com o foco na internacionalização. Quando fazemos o convite à Carolina Grau para trabalhar estas duas coleções de vídeo, uma portuguesa e uma espanhola, dissemos-lhe: «Também queremos um projeto de um artista açoriano». Para quê? Para o internacionalizar, para o mostrar aqui e levá-lo para fora. Se não trabalharmos em rede não há hipótese, não podemos estar virados para o nosso umbigo. Hoje não penso no lugar, penso no mundo e tenho essa preocupação, que muitas vezes poderá ser criticada.

E não corre o risco de negligenciar a população local?

Não, a comunidade está sempre presente.

Mas, em vez desta exposição de vídeo, que se calhar é mais difícil, não haveria vantagem em fazer algo que estivesse mais ao alcance de pessoas com pouca formação na área da arte contemporânea?

Já fizemos. Começámos com a nossa coleção, tivemos a coleção do António Cachola e depois tivemos o José Nuno da Câmara Pereira, que é um artista açoriano. Isto é um percurso. Mas eu não posso pensar que o vídeo não está ao alcance desta comunidade. A única coisa que temos é desconstruir, mostrar, dar a conhecer, ensinar a olhar. É uma preocupação que sempre tive: ensinar a olhar, ensinar a observar, ensinar a pensar. Nunca se me colocou a questão de as pessoas não perceberem.

Nunca notou desconfiança?

Comigo não. Quando vim para cá não vivia aqui na Ribeira Grande. Neste momento vivo na Ribeira Grande. Vou à mercearia e as pessoas sabem que trabalho no Arquipélago. «Já vi que tem muitas atividades». Há este contacto muito próximo com as pessoas. Estamos agora a entrar no terceiro ano, que vai ser decisivo, e claro que é difícil. Roma e Pavia não se fizeram num dia. Há todo um trabalho que está por trás, e que as pessoas não veem, mas para chegar aqui é preciso lutar muito.

Quem são estas pessoas que estão nesta inauguração? São daqui, vêm de fora?

Há um público açoriano que é assíduo nas nossas inaugurações. Eu vi só de relance, mas reparei que havia pessoas da Ribeira Grande, pessoas de Ponta Delgada, pessoas de Lagoa, de Vila Franca. Também vi pessoas do Porto, de Lisboa, de Coimbra. Há uma grande variedade.