Geração i. Eles continuam à rasca

Os salários dos que conseguem emprego não fazem jus às competências e formação que adquiriram. Sonhos adiados, trabalhos precários, estágios infinitos, recibos verdes a toda a hora. Eis a vida no trabalho dos millenials portugueses.

“Ganhámos o Euro, ganhámos a Eurovisão, ganhámos um Óscar, ganhámos no festival de Cannes, ganhámos no turismo, ganhámos terços gigantes e visitas papais, ganhámos a ONU, ganhámos um governo decente… Só é pena continuarmos a ganhar 500 euros de salário mínimo e a pagar 600 de renda. Muito orgulho do meu país, que eu amo, mas desejo que um dia, além de amar pelos dois, possamos ganhar todos, por todos” escreveu Peter Castro, millennial e artista natural do Porto, na rede social Facebook. O feedback à publicação, no passado domingo, deixa claro o descontentamento da Geração i com os desafios que enfrenta diariamente em termos financeiros, dos salários baixos ao custo de vida a subir.

“We’re Making Life Too Hard for Millennials”, escreveu em 2015 o especialista em economia e finanças Steven Rattner, cronista no “New York Times”, sobre aqueles que pertencem à geração mais instruída da história mas que está “a caminho de se tornar a menos próspera, pelo menos financeiramente”, comparando com as que a antecederam.

O emprego é encarado com uma das maiores dificuldades desta geração, a dos que nasceram entre 1985 e 1995, a quem chamamos Geração i. Confrontados com uma economia lenta, altos números de desemprego e salários estagnados, estes são os jovens que restringem as suas capacidades “tanto para manter um estilo de vida razoável como para economizar para o futuro”, escreve Rattner.

Os norte-americanos entre os 18 e 34 anos de idade estão a ganhar menos hoje (após o ajuste da inflação) do que as mesmas faixas etárias no passado. Os mais velhos têm-se saído consideravelmente melhor. Os salários de todos os trabalhadores americanos a tempo inteiro mantiveram-se praticamente estáveis entre 2000 e 2011, mas o caso muda de figura quando se fala nos jovens de hoje.

Para Steven Rattner, “uma das principais razões é a recessão”. Aqueles que estudam em tempos económicos mais fracos geralmente ganham menos do que aqueles que entram na força de trabalho durante períodos mais promissores. E “começar atrás muitas vezes significa nunca recuperar o atraso”, avisa.

E emprego, não há?

Segundo os dados do Eurostat, na União Europeia, os contratos temporários assinados por jovens têm estado a aumentar desde 2005, ainda que com pequenas oscilações. O recorde português foi atingido no ano de 2015, com 67,5% dos jovens a registar contratos temporários, enquanto, nos restantes países da UE, o valor ficou pelos 43,3%. Nesse mesmo ano, a taxa de desemprego nos jovens entre os 15 e os 24 anos, em Portugal, era de 32%, um valor ainda superior aos 20,3% da média da União Europeia. Piores do que Portugal estavam a Grécia, Espanha, Croácia, Itália e Chipre. No ano de 2016, em Portugal, a tendência decrescente dos últimos anos manteve-se, com o valor a chegar aos 28%. No início de 2016, a taxa de desemprego jovem na zona euro continuava elevada, com 19,4% dos jovens desempregados (era de 21,6% em 2015). Os piores países neste domínio são Grécia (45,2% dos jovens desempregados), Espanha (41,5%) e Itália (35,2%).

Em setembro de 2016, o Eurostat estimou que a taxa de desemprego jovem (inferior a 25 anos) registada em Portugal foi de 26,5%. Em novembro de 2016, os números apontavam para 20,3% de jovens desempregados, sendo a taxa dos 28 países da União Europeia de 18,2%.

Geração à Rasca

Os números têm melhorado, mas ilustram as dificuldades que muitos jovens europeus enfrentam na procura de empregos que correspondam às suas aspirações e educação. A desmotivação e a frustração são uma constante na vida de muitos dos jovens portugueses.

A “Geração à Rasca” – a alcunha que surgiu nos anos 90 para descrever a geração que protestava, naquela altura, contras medidas governamentais, e renovada nos anos da troika – tornou a trazer à rua, em 2011, cerca de 500 mil pessoas.

Paula Gil, uma das fundadoras deste movimento, lembrou ao i que o protesto surgiu da conversa entre amigos que estudaram juntos e que, de repente, se encontravam em Lisboa, nos mais variadíssimos trabalhos e áreas distintas, com vínculos laborais precários. A jovem politóloga conta que tudo começou numa conversa de café, na altura em que surge a música dos Deolinda “Parva que Sou”. Falava “acerca dos nossos vínculos laborais – na altura, respetivamente, estágio profissional, bolseiro de investigação, estágio curricular e trabalho a falsos recibos verdes – e da forma como essa instabilidade laboral tem influência não só na nossa própria planificação do futuro, nas escolhas que fazemos, como na vida de quem nos é mais próximo: a incapacidade de criar uma independência financeira, pessoal e de vida da nossa família”.

Para Paula Gil, não é só esta geração de millennials que está à rasca: “Todas as gerações estão à rasca. A precariedade põe em causa a sustentabilidade do Estado social, mas põe também em causa a confiança nesse mesmo Estado social, retirando-lhe não só a base de sustentação económica e financeira como a base de sustentação de expectativas. Um Estado existe para proteger a sua população, para ser um ‘guarda-chuva’ para proteger os seus direitos civis, sociais, políticos, económicos e laborais. Quando este Estado põe em causa o seu contrato social, esse vínculo de expectativas, abre caminho a afirmações como ‘os políticos são todos iguais’, que desvalorizam o papel de responsabilidade que as instituições têm sobre a qualidade de vida e sobre as políticas de proteção de quem vive numa determinada área territorial”, explica. Mas isso é só o princípio de uma bola de neve. “Desvaloriza a intervenção na democracia, na participação. Ensina a cada cidadão que a sua pertença no âmbito de uma decisão política é irrelevante. Isso destrói a democracia, a participação, a cidadania e, sobretudo, o interesse político de cada um de nós, deixando as grandes decisões entregues ao lóbi e a grandes grupos económicos e financeiros que controlam o Estado. Institui–se uma ‘ditadura da gestão e da burocracia’”, remata a politóloga.

Uma geração desiludida

Na prática, vive-se o desalento. Bruno, jovem brasileiro a viver em Portugal, descreve um cenário que diz não ser bonito: “Os salários parecem não cobrir sequer o investimento feito em educação ao longo da vida. Escola privada, escola de línguas, viagens, intercâmbios, universidade, crédito estudantil, noites mal dormidas, saudade da família.”

Para Bruno, “tudo parece jogar contra. É um momento em que o sonho e realidade parecem peças de quebra-cabeças diferentes que alguém, por maldade, misturou, e a gente só descobre quando já chegou no meio. Então o pensamento que aprendeu a se organizar procura, de uma maneira racional, uma saída. Fugir é uma saída, ainda mais nos tempos de hoje, que é relativamente fácil se deslocar. Mas parece que a História se repete e a gente vai mudando de endereço, de língua, mas o ciclo continua o mesmo”.

Ganhem Vergonha

Ao longos dos tempos foram surgindo várias formas de denunciar a precariedade laboral em Portugal. Uma das plataformas mais famosas e ativas na luta pela melhoria do panorama laboral é a “Ganhem Vergonha”, criada por Francisco Fernandes Ferreira. A Ganhem Vergonha surgiu já em 2013, em resposta ao panorama laboral de então, com objetivo de denunciar abusos cometidos sobre trabalhadores e candidatos a um emprego.

Ao i, o criador deste projeto diz que continuam a receber denúncias todas as semanas, quase diariamente, com diferentes tipos de casos. “Temos divulgado muito poucos nos últimos meses porque estamos focados no livro, que está mesmo, mesmo a ser concluído. Contam-se ofertas de estágios não regulamentados, falsos recibos verdes, falso voluntariado, casos de trabalho especulativo, propostas com salários inferiores ao mínimo definido por lei ou até situações de falta de pagamento.”

Francisco Fernandes, gestor da plataforma online, acredita que as pessoas vão estando mais atentas. “Notamos, por vezes, que a comunidade online está mais atenta a algum tipo de ofertas que a plataforma (e outros organismos) considera serem abusivas. Nota-se mais gente a criticar online. Mas os empregadores continuam, e continuarão sempre, no sistema económico que temos, a tentar recrutar com a menor despesa possível. E a tentar formas de ocultar que o estão a fazer. O fundamental para nós é, além do combate político, melhorar os meios da Autoridade para as Condições do Trabalho, para aumentar a fiscalização. Todos sabemos que os casos encontrados são uma parte muito, muito pequena.”

Como a internet permite maior vigilância, muitas empresas melhoram a sua comunicação online, tornando-se mais rigorosas nas suas ofertas de emprego. No entanto, Francisco alerta: “Isso não reflete, por si só, as suas políticas de recrutamento. Continua a abusar-se no recurso a estagiários (nas suas múltiplas variantes, dentro e fora da lei) e a trabalhadores falsamente independentes. Basta perder 15 minutos nos portais de emprego para o comprovar. E perceber que o mundo das ofertas de emprego continua a ser um setor desregulado onde vale tudo.”

O i foi conhecer a história de alguns millennials portugueses, pertencentes a esta geração impagável – a que tem dificuldade em encontrar emprego apesar de ser altamente qualificada, a que se sujeita a situações de precariedade laboral, a que faz estágios durante tempos indefinidos. A que assina contratos de trabalho temporário, a que recebe dinheiro debaixo da mesa, a mesma que já sabe preencher recibos verdes de olhos fechados. Nas últimas edições falámos de uma geração “imparável”, “irrequieta”, “inebriante”, mas que é “instável” do ponto de vista psicológico. E muitos desses receios e ansiedades vêm, também, deste mundo do trabalho.