Rachel Cusk. “Há uma crise de meia-idade no romance, e levei tempo a percebê-lo”

“A Contraluz” foi o romance com o qual esta escritora venceu três anos de silêncio depois de ser o alvo de uma tempestade mediática após usar a literatura para enfrentar os fantasmas do divórcio

Rachel Cusk sabe os riscos que corre por escrever o tipo de coisas que depois já não podem ser retiradas. Não envia a fantasia à frente para testar a tolerância dos leitores. Fica muito só quando escreve, e já aconteceu ficar ainda mais só quando publica. Os seus livros não se torcem para conseguir a cumplicidade do leitor. Prefere a inteligência à empatia. Ela guarda o seu canto e espera que o leitor faça o mesmo. No fosso de um lado ao outro vão caindo todos os artíficios e os jogos de manipulação a que muita da melhor ficção nos habituou.

Teve a sua estreia com “Saving Agnes”, que lhe valeu o prémio Whitbread para primeiro romance em 1993. Tinha tudo para uma carreira de prestígio nas margens sossegadas da ficção, mas deixou-se atrair pela corrente da vida, e, deixando-se de anzóis, usou as suas próprias experiências, acabando o isco da indignação ociosa dos tribunais populares. Um livro que escreveu sobre a experiência da maternidade, em 2001, fez dela um alvo dilecto das matilhas que guardam essa prova de santidade das mulheres. As mães competitivas que não apenas “dão à luz” como ainda se martirizam para criar o quê? O futuro, diriam alguns com um brilhozinho nos olhos.

Em 2009, um outro livro, no qual se debate com as circunstâncias do seu divórcio, voltou a colocá-la na carreira de tiro. Apanhou porrada (não literalmente mas, ainda assim) em todos os lugares onde mais dói. Saiu marcada. Disse, certa vez, que se arrependia de ter escrito aqueles livros. “A Contraluz” foi o seu regresso. Uma nova estratégia narrativa. Se inicialmente nos ilude e dá a sensação de que passou à defesa, o ataque fica para mais tarde. Não abdicou da vida, de um faro detetivesco. Pesa o que lhe é dito, e opera depois balanços muito reveladores. Se o narrador não deixa de se confundir com ela, torna-se uma mera testemunha. Já não oferece o pescoço, e, no entanto, a capacidade penetrante com que agora dá um passo atrás do próprio leitor, causa uma certa inquietação. Deixa-o ouvir o que ela ouve, observar quem vem e quem vai, as pessoas que lhe trazem o fio que têm tecido ao longo das suas vidas, atando as escolhas e os acasos, os amores, os desastres, a soma insegura do que admitem ou deixam escapar. É um livro de uma mordacidade espantosa. Invejamos-lhe a capacidade de ler. E continua a cutucar com a sua vara longa o estado das relações. A forma como nos damos com a verdade, e o momento em que o preço das ilusões é mais alto do que podemos pagar.

Que tal está a ser a sua estadia aqui em Portugal?

Há muitas respostas para essa pergunta. Uma é que enquanto cidadã britânica é bastante estranho, neste momento, viajar pelo resto da Europa depois do Brexit. A Europa parece uma excelente ideia da qual nós nos separámos. Parece que somos uma jangada que se destacou do restante continente e se lançou ao mar. Por isso, há uma certa tristeza em estar aqui. De um ponto de vista mais pessoal, para um escritor é sempre bom estar fora. É refrescante. Gosto de aperceber-me de como é a cultura literária noutro país, ter consciência de como respondem outras pessoas às coisas que fizeste, mas nunca tens tempo suficiente para realmente aprofundar a experiência de um país, percorrê-lo de forma anónima.

É a sua primeira vez cá?

Estive cá quando tinha vinte e tal anos. Foi há muito tempo.

Parece-lhe que o Brexit constituiu uma declaração política séria ou acha que é sobretudo uma reacção confusa aos desafios actuais?

É uma situação trágica. Nasce de uma completa farsa, mentiras que foram contadas às pessoas que tinham já sido defraudadas pelo sistema, que perderam o direito a uma boa educação, a igualdade de oportunidades… Porque é que alguém haveria de querer abandonar a União Europeia? Qual é a razão? Deve ser por causa de dinheiro. Tal como o Donald Trump nos EUA, há pessoas no Reino Unido que sabem que podem fazer muito dinheiro com estas jogadas. O mais triste é que foi uma ideia vendida precisamente às pessoas que vão sentir mais o impacto da saída. O nível da ignorância no Reino Unido é de tal ordem que no dia a seguir ao referendo a pesquisa que se tornou mais popular no Google foi precisamente “O que é a UE?” Portanto, as pessoas não faziam sequer ideia daquilo que estavam a abandonar. Muitas pessoas julgavam que a opção “sair” significava que os imigrantes seriam obrigados a deixar o país. Estamos a falar de décadas de um sistema educativo falhado, e isto em cima dos problemas económicos e de tudo o mais. As pessoas foram completamente manipuladas pelos tablóides, os políticos e homens de negócios. Por trás disto estão apenas interesses económicos. Neste momento, há um milionário que está a pagar às pessoas no sentido de influenciar o resultado das eleições legislativas que aí vêm. Está a pagar às pessoas para participarem em manifestações contra a UE. É corrupção, pura e simples. Basta ver o que Trump está a fazer. A pôr fim à regulamentação, para que os grupos financeiros possam fazer mais dinheiro sem ter de considerar prejuízos ambientais e outras condicionantes. A UE fez muito por nós nesse sentido. Ajudou a limpar as praias, a ajudar as comunidades mais empobrecidas. Sem isso, parece-me que as coisas só podem piorar e será uma tragédia para as pessoas que votaram pelo Brexit e que vão sofrer as repercussões.

Há a sensação de que fomos devolvidos a uma nova era da estupidez provocada pelo excesso de informação, ou desinformação. Na linha de escritores como Thomas Bernhard, a Rachel parece ser vista como um inimigo a abater, precisamente por denunciar o podre contentamento de uma sociedade que se recusa a fazer uma autocrítica.

Não me parece que haja nada de novo nesta condição de estupidez. Li recentemente o “Narciso e Goldmund”, de Hermann Hesse, e neste romance, que se passa supostamente numa mítica Idade Média, ele descreve o surto da peste negra, as personagens a viajarem pela Alemanha, por aldeias que estão cobertas de cadáveres, e Hesse usa esta situação para demonstrar o modo como as pessoas reagem quando estão assustadas, quando precisam de culpar alguém pela sua miséria. Ele narra o processo como há grupos que são culpadas pela peste – os judeus e as minorias, aqueles que, sempre que as coisas correm mal, servem como bode expiatório –, e como a comunidade se vira contra eles. Ler esse livro deixou para mim claro o paralelo com aquilo que estamos a viver actualmente. Se há algo pior que a estupidez, é a repetição estúpida da História. O facto de tão pouco se aprender com o passado, com as razões que nos levam a ter esses impulsos castigadores. E, no fundo, regressamos ao fracasso do nosso sistema de educação. Se as pessoas soubessem mais sobre ashistórias, pudessem compreender as formas como a perseguição é uma resposta ao medo, haveriam de aceitar as suas responsabilidades. Portanto, tudo isto deriva de falta de autocrítica. E é verdade que os escritores como Thomas Bernhardt, e eventualmente eu mesma, temos como projecto dizer a verdade. Sermos pessoalmente honestos, mostrar o que significa o processo de autocrítica. E isso deixa as pessoas loucas, odeiam-nos. Mas, no fim, trata-se de usar a literatura para alcançar coisa com impacto social. Neste momento, os valores da individualidade estão a ser severamente atacados, ao passo que os valores do grupo estão a ascender. É assustador.

Para si, as estórias que nos contamos são muitas vezes o que nos impede de lidar com a verdade. A sua desconfiança face à literatura de ficção prende-se com esse perigo das estórias se tornarem um meio de evasão?

Parte do que tento fazer em “Contraluz” é identificar exactamente esse ponto de convergência em que algo se revela a partir daquilo que já se sabe. O romance tornou-se um modelo especializado na combinação dos elementos que dão a uma estória uma aparência realista mas que, no fundo, não passa de uma projecção. O que procuro fazer neste livro é retomar o modelo da “Odisseia”, em que os factos são relatados pelas testemunhas, as pessoas que viram ou tomaram parte em certos acontecimentos e que os relatam. Não há um narrador omnisciente, trata-se de ir atrás desses testemunhos e escrevê-los. Estive nos EUA em Janeiro, na altura em que foi a tomada de posse de Trump, e dei-me conta não apenas da preocupação, mas da desolação das pessoas. Havia uma genuína preocupação em relação àquilo que deviam fazer para responder àquela catástrofe. Acho que há o perigo de se instalar uma espécie de pessimismo entre os liberais, que pode ser algo a um nível íntimo, pode acontecer que a própria psicologia do liberalismo internalize a ideia de que não pode esperar outra coisa senão a derrota. Há um elemento de auto-culpabilização, ao mesmo tempo que há cada vez mais pessoas a preferirem alhear-se da realidade. Eu não tenho essa recepção de que estejamos a viver uma época sem esperança. Acredito nas pessoas como indivíduos, e julgo que podem ser levadas a cometer actos terríveis se seguirem a mentalidade de grupo, mas acho que é isso que é preciso combater. Qualquer que seja a fantasia em que as pessoas queiram viver quando se juntam, todos os dias somos forçados a despertar sozinhos dessas ficções e a encarar o mundo a partir das nossas circunstâncias individuais.

Há momentos, no romance, em que passa de um registo passivo, ouvindo a história das pessoas que se vão confessando a si, para uma análise fria das coisas que lhe disseram, mostrando as falhas, interpretando certas omissões. De um momento para o outro estas pessoas tornam-se vulneráveis. Parece-lhe que é essa capacidade de análise mais profunda e adulta o que falta não só a muita literatura como às relações sociais que mantemos?

Penso que toda a gente sabe o que se passa. Acredito que a linguagem é o mais incrível sistema moral. É como a matemática, absolutamente precisa. Eu sou uma espécie de profissional da linguagem. Escrevi tantos livros… por esta altura, sou perfeitamente capaz de reconhecer quando as pessoas não me estão a dizer a verdade simplesmente pelo modo como constroem as frases. Consigo ler o primeiro parágrafo de um livro e perceber se me interessa lê-lo ou se não vale perder tempo com ele. E acredito que as pessoas sempre foram, e continuam a ser, leitoras extremamente sofisticadas da forma. Quando entramos num elevador juntos sabemos que existe ali uma convenção quanto ao discurso, se alguém a violar percebemos de imediato que a forma foi posta em causa. Há sempre um certo grau de “suspension of disbelief” [suspensão da descrença] quando se lê um romance, mas eu rejeito isso. Não estou interessada em que as pessoas suspendam as suas faculdades críticas em relação ao que é ou não real ou verdadeiro. Parece-me que as pessoas na sua vida usam estas faculdades. Uma definição de solidão é a de já não seres capaz de acreditar naquilo que te está a ser apresentado, o que te está a ser dito, encenado à tua frente. Mas, até esse momento de ruptura, toda a gente faz os possíveis para manter a conspiração a funcionar. Acho que as pessoas estão interessadas na verdade, mas talvez o tempo de vida das pessoas seja definido por esse movimento, o entrar e sair dessa relação com as coisas, e o desejo de evitar uma verdade dolorosa, às vezes é muito forte. Fui sempre atraída por áreas onde isto se torna bastante aparente. Os meus livros foram muitas vezes, e de forma bastante irritante, recebidos como obras autobiográficas. É evidente que não o são. As coisas que me são particulares nunca as revelaria num livro, porque me dizem respeito a mim, não afectam quem não me conhece. Mas sempre que desenhei um percurso através de fóruns sociais, como aconteceu ao ter escrito um livro sobre a maternidade, aí apercebi-me claramente do processo de hipocrisia e da forma como as pessoas a usam nos momentos em que a sua individualidade é uma questão problemática. Porque estão a sofrer, porque estão infelizes, farão tudo para impedir que esse sentimento tome conta delas.

Depois do último desses livros  de não-ficção em que lidava com a questão do divórcio – “Aftermath: On Marriage and Separation” (2012) – e que foi alvo de reacções bastante hostis, esteve três anos sem conseguir escrever. Como é que saiu desse silêncio?

Qualquer questão sobre a escrita com a qual me tenha deparado foi sempre também uma questão sobre estar na vida. Julgo que, a certa altura, me senti muito cansada de ver a separação entre autobiografia e romance. Será uma fronteira entre verdade e ficção? Nunca me pareceu que essa fronteira fizesse sentido. Já não conseguia dividir-me nessas linhas. Penso que se trata de um problema que muitos enfrentamos num determinado momento das nossas vidas. Talvez seja caracterizado como a crise de meia-idade, algo que é bastante familiar às pessoas, que chegam a um ponto em que sentem que toda a sua vida foi uma mentira, uma ficção. “Não consigo dizer a verdade, exprimir o que sinto!” Sentem a necessidade de se evadir dessas prisões da vida familiar… É uma experiência muito comum, a sensação de que essa artificialidade se torna insustentável, emergindo uma verdade íntima que não pode ser admitida. Esse é um problema que existe também nos modelos literários actuais. Há uma crise de meia-idade no romance, e levou-me bastante tempo para reconhecer isto. E, uma vez mais, foi um processo bastante técnico, no sentido de compreender o que se passa com a formulação das frases em cada um destes géneros. Porque a autobiografia hoje é tida como uma exploração bastante intimista, a ideia de que é a tua história e, portanto, é quem tu és. Julgo que aquilo que tive de questionar foi quem detém o conhecimento num texto, quem é que nos está a dizer aquilo que lemos. Assumir a responsabilidade de cada elemento que vem à superfície. Há apenas a minha cabeça e aquilo que vem à superfície. E na superfície está o ser eu a olhar para ti, a ouvir o que dizes e interpretá-lo, mas não posso substituir-me a ti. O romance moderno tem a pretensão de criar a interioridade de uma série de pessoas – a isso chama-se ponto de vista. No fundo, representa um divórcio, representa um mundo marcado por relações de divórcio. Foi isso o que sucedeu ao modelo do romance do século XIX, que tinha uma perspectiva unitária, em que o narrador assumia a posição de um deus omnisciente. Essa ideia do ponto de vista que se lhe seguiu pareceu-me ser uma mentira, uma farsa que não fazia qualquer sentido nas nossas vidas. Talvez seja a noção mais falsa que se possa ter na vida: a ideia de que nos podemos colocar na perspectiva de outra pessoa. Quando me dei conta disto, apercebi-me de que o meu próximo livro não podia saber nada, tudo tinha de ser posto na boca de outra pessoa, tinham de ser elas a representar-se a si mesmas.

Parece haver neste momento uma crise que está a ser desencadeada por uma série de autores que, como a Rachel, assumem uma grande desconfiança na forma como o romance constrói simulacros da realidade. Até os leitores parecem hoje tender crescentemente para autores como Karl Ove Knausgård, com quem, de resto, já foi comparada algumas vezes.

Sim, mas ele consegue safar-se, ser elogiado, e faz muito mais dinheiro do que eu. (Risos) Há um problema nisto que se prende com a feminilidade nesta questão.

As mulheres têm ainda de dar um passo mais rebelde na literatura? Nas críticas aos seus livros, apesar da de asua inteligência ser sempre reconhecida, as suas opções são postas em causa, coisa que se fosse feita a um homem faria o crítico cair de imediato no ridículo.

É como ser parada para nos revistarem nos aeroportos. Vemos certas pessoas que são sempre paradas e questionadas.

Sente que terá forças para repelir de forma violenta esse tipo de juízos feitos a partir dos seus romances?

Não me parece que os meus impulsos sejam violentos, mas aquilo que faço tem um efeito violento. É curioso porque nunca me apercebo de antemão que as coisas que escrevo vão produzir esse efeito. Trata-se do poder de um estilo particular de honestidade. Por não perder tempo a manipular o leitor, a fazê-lo sentir-se confortável com aquilo que está a ler. A feminilidade, de qualquer modo, é ainda uma proposta radical. Ainda está a fazer o seu caminho. Qualquer mulher que se sente e escreva algo assume uma posição radical. E ou ela se esconde ou se assume. Para mim, um dos exemplos mais relevantes disto é o caso da Elena Ferrante, de como o seu anonimato lhe permitiu dizer aquilo que quisesse quer. Porque ela não assume uma identidade pública. Para mim, isso foi uma coisa incrível de testemunhar. Se ela tivesse uma identidade, e todos soubessem quem ela é, julgo que teria sido atacada como eu sou. Saúdo-a por essa decisão, parece-me que foi bastante avisada.

Como foi para si ser alvo dessa hostilidade, tendo em conta que se limita a escrever aquilo que lhe parece natural, aquilo que foi sentindo ao viver certos momentos críticos na sua vida?

Não sei o que significa essa hostilidade. Não sou a primeira escritora a ser tratada assim. Essa é a minha única grande consolação, saber que amiúde, quando um artista faz qualquer coisa de novo, ou tenta abrir novos caminhos, acaba por ser absolutamente repudiado pela cultura do seu tempo. Muitas vezes as contas acabam por ser acertadas em vida do autor. Sempre que Ibsen escrevia uma peça nova, deixava toda a gente irritada, diziam-se as piores coisas sobre ele, mas não era preciso que passassem mais do que alguns anos para que o seu génio fosse aceite. Houve outros, como D.H. Lawrence, que nunca foram perdoados. Ele morreu sem que qualquer justiça lhe fosse feita. É uma ideia assustadora, a hipótese de nunca veres o dia em que a justiça é reposta. De qualquer modo, julgo ter encontrado uma forma de me esquivar às balas. Sinto que continuo a fazer o que fazia mas de uma forma que causa menos fricção. O que se passa quando deixas as pessoas irritadas é que elas se tornam menos racionais, é mais difícil chegar a elas. Portanto, qual é o interesse de produzir a ira dos outros? Não nos serve de nada.

Estamos habituados a ver os escritores como proscritos. Esperamos que eles não se rejam pelas noções que servem ao comum dos mortais. Esperamos pensadores radicais, que causem estranheza e desconforto. Mas as escritoras não parecem gozar deste mesmo privilégio. De algum modo parece mais ameaçador se for uma mulher a pôr em causa a sociedade, como se a mulher fosse uma porta-estandarte de uma certa moral, podendo os seus ataques ser mais ameaçadores para as estruturas conservadoras.

E as mulheres a quem é atribuído o estatuto de intelectuais, escritoras como Iris Murdoch, por exemplo, não são tidas como mulheres no sentido completo do termo. Não são domésticas, não são mães de família, não são figuras de desejo. Basta pensar em Sylvia Plath. Ela era mãe, era bonita, estava casada, era uma mulher no sentido mais abrangente do termo, e depois matou-se. Chego quase a admitir que é isso o que tens de fazer para proteger o teu trabalho. Acho que se trata de proteger o nosso trabalho de um modo que não possa ser profanado. As pessoas querem que o faças. Elas adoram a morte de Sylvia Plath, porque significa que o trabalho dela não pode ser minado pelas noções pré-concebidas, pela sociedade com o seu quadro mental sobre o papel das mulheres, e um que nem sequer reconhece que tenta forçar a todos nós. 

E o meio literário perpetua estes equívocos?

Penso que a persona do escritor, no actual contexto literário, se tornou uma marca. Quase já não nos interessa aquilo que a figura pública do escritor pode trazer ao debate. Os escritores de sucesso são tão mimados pela sociedade. Toda a indústria editorial, o modo como os livros são promovidos, como tens de te sujeitar a ser fotografado e falar em público, dar entrevistas… Como outras coisas no mundo em que vivemos, pode ser que este modelo esteja prestes a colapsar, e talvez daqui a uns anos já não seja assim, e os escritores não tenham de se expor desta maneira, mas sejam forçados a buscar uma outra identidade. De qualquer modo, eu nunca gostei de fazer este papel, por isso não me preocupa.

Numa entrevista disse que preferia ler os clássicos a ler aquilo que está a ser publicado hoje em dia.

Gosto que passe um tempo, quero que passem uns anos antes de me pôr a ler um livro.

Receia ser manipulada pela confusão promocional e celebridade que é oferecida hoje aos escritores?

Acho que há um nível em que a literatura funciona como uma expressão do “agora”. Da mesma forma que quando sai um filme, existe um fórum, uma componente social e depois essas mesmas coisas que causaram furor são esquecidas para não mais serem lembradas. Obviamente as coisas chegam até mim, e não deixam de me despertar interesse, mas em termos do caminho que escolho prosseguir na escrita de um livro, enquanto evento marcante na minha vida, aqueles livros que, se os encontras no momento certo, provocam viragens na tua vida, esses são outro tipo de livros. Existe um mercado e os livros não se livram dele, mas eu tenho um percurso bastante exíguo através desse mercado. Não sou muito competente no que toca a fazer-me notada a esse nível. Se os meus livros resistirem ao teste do tempo, talvez as coisas melhorem quando eu estiver morta.

Nesta sua recente viragem, houve obras que tenham sido decisivas para esclarecê-la sobre o que precisava de fazer a seguir?

A narrativa de “A Contraluz” é, de certa forma, uma indagação sobre o que poderão ser os relacionamentos daqui em diante. Já não são propriamente amizades, são quase trocas anónimas que reflectem sobre o mistério de estarmos vivos. O ponto fulcral nesta triologia que estou agora a acabar é que não se pode saber nada, não temos conhecimento do que se passou antes nem do que irá acontecer a seguir, por isso tentar descobrir textos que me informassem sobre esta questão foi difícil. Tenho lido muita coisa, mas tenho tido difuldade em encontrar guias, marcos ao longo do caminho.

Aquilo que acontece à narradora aconteceu-lhe? Também foi para Atenas dar um curso de escrita?

Parece-me que isso seria como revelar um segredo profissional. (Risos) Todo o material que uso é o que está à mão, vem da minha vida. Estive várias vezes em Atenas.

Está habituada a que as pessoas metam conversa consigo e, às tantas, se exponham e lhe revelem as suas vidas?

Acredito que há um certo modo de estar em que te podes manter removido e ao mesmo tempo disponível. É o conselho que se costuma dar às pessoas quando entram em ambientes sociais desconhecidos em que precisam fazer boa figura.  Se estás numa festa e não sabes o que hás-de dizer é um instinto básico de autodefesa limitares-te a lançar algumas perguntas abertas. Em vez de se ficar preso a uma conversa tipo jogo de ténis, deixar que seja a outra pessoa a expor-se. É uma estratégia. De algum modo as pessoas que sabem ouvir, sabem defender-se. Como disse, tenho bastante fé nos indivíduos e na sua compreensão das questões de forma. Embora nos nossos dias esse discernimento pareça estar escondido, acho que as pessoas costumam ter uma boa noção de si mesmas enquanto uma história, uma narrativa que se vai desenvolvendo ao longo da vida para intrigar os outros.

E quando ouve alguém falar autoriza-se a seguir a pessoa mesmo que ela entre em terrenos perigosos.  Por exemplo seria capaz de ouvir as justificações de um mostro?

Não. Não, porque julgo que isso seria pornografia. Acredito que há uma relação de matéria e anti-matéria na linguagem. Por isso é que dizer uma coisa tem importância.  A versão do mal não me interessa. O motivo porque a linguagem funciona tão bem como um sistema moral é porque se torna muito evidente quando se tornou pornografia. Não pode ser maligna, ou denuncia-se a sai mesma. Toda a gente sabe quando está a ser pervertida.Acredito que há alguns escritores – Kafka, Thomas Bernhardt, Dostoiévski – que foram bastante longe. Eles levam a linguagem até lugares escuros, e torna-se bastante desconfortável…

Disse, em tempos, que a  autobiografia era, nos nossos dias, a grande obra de arte.

Bom, já me afastei bastante desse juízo. Mas era definitivamente, de entre as escolhas, entre a autobiografia e a ficção, parece-me melhor do que mentir ou fantasiar.

O que lhe parece que faz ainda o prestígio da ficção? Aqui em Portugal, por exemplo, um escritor só prova o seu génio se escrever uma obra que se permita um certo grau de fantasia.

Sim, absolutamente. Pessoas que subitamente ganham estranhos poderes ou conseguem viajar no tempo.

Parece-me que fomos bastante afectados pela difusão do realismo mágico sul-americano. Ou, pelo menos, a ficção tem que nos obrigar a esse efeito de suspensão da descrença.

Sim, mas isso tem a ver com fenómenos de popularidade, e se o objectivo de um escritor é tornar-se popular então não sei como avaliar os motivos porque cai nas boas graças do público ou não. É como falar de fast food, ou sobre os filmes de Hollywood, não sei até que ponto nos fazem mal ou não. Mas isso entra na categoria das coisas para as pessoas consumirem, para passarem o tempo entretidas, não tem a ver com uma direcção que te abre um caminho na viagem que estás a fazer na vida, que é a razão pela qual leio livros. São duas coisas muito diferentes e eu tento não as confundir.  

Para si, a distância mais curta que tem de haver na escrita é com a própria vida?

Sim. Tenho de passar muito tempo com pessoas que são diferentes de mim para que o mundo que está na escrita possa ganhar dimensão. As pessoas que ganhama vida a escrever livros como produtos de consumo e a promoverem-se, tudo isso é muito bonito: tem tudo a ver com aprovação, sucesso, vender muitos livros. Mas isso não é o meu mundo. Eu só quero lidar com uma pessoa de cada vez. É isso o que um livro é. Escrito por mim sozinha e lido por ti sozinho. Portanto, não percebo para que servem os festivais literários. Não entendo porque as pessoas julgam que ir ouvir um escritor frente a uma audiência é sequer uma coisa interessante para se fazer. Mas não deixo de ter de participar nalgumas dessas coisas, simplesmente tenho um limite de tolerância menor.