Salvador Sobral. De quando em vez há um fenómeno assim

Chegou a Kiev como quem ia para ver a bola, voltou com o caneco da Eurovisão. Mandou bocas à música no geral e às políticas de asilo europeias e, de volta a Portugal, foi recebido por uma multidão.

Salvador Sobral. De quando em vez há um fenómeno assim

Portugal leva os pulmões às canções da Europa desde 1964, numa altura em que o Festival Eurovisão da Canção se realizava há nove anos. Até 1974 – e nesses dez anos em que a participação foi feita sob a clausura da ditadura -, o momento revestia-se pela prestação dos cantores e pelas manifestações do público de reflexão política.

Nessa primeira participação, António Calvário levou a música ‘Oração’, trouxe assobios de volta e zero pontos no saco. Não ponhamos as culpas no Calvário – mas antes no regime e da persistência colonial, que valeram uma bela vaia aos portugueses. A tendência de permanecer nos últimos lugares da tabela manteve-se nas décadas seguintes.

A prestação de Lúcia Moniz em 1996 tinha sido a melhor de sempre do país até à data, mas foi a “Desfolhada” de Ary dos Santos cantada por Simone de Oliveira que mais impacto causou na sociedade. Foi a segunda vez que Simone representou o país na Eurovisão. Em 1965, a cantora já tinha participado com a canção “Sol de Inverno”. Mas foi preciso esperar quatro anos para, em 1969, a voz altiva de Simone sulcar de queixo no ar as palavras quem “faz um filho, fá-lo por gosto”. Num palco em Madrid decorado com uma escultura do surrealista Salvador Dalí, a performance trouxe-lhe apenas quatro pontos, o que correspondeu ao penúltimo lugar. Mas a marca de um país a lutar contra a opressão foi vencedora e, no regresso a Lisboa, Simone foi aclamada por milhares de portugueses e levou um banho de multidão, não no aeroporto mas na estação de comboios de Santa Apolónia.

Seria preciso esperar até ao fim de semana passado para ver tal manifestação de carinho.

Uma pérola a porcos

Ainda antes da consagração em Kiev, Salvador já era apontado nas casas de apostas como o vencedor e já o envolvia aquela aura reservada (quase) sempre aos vencedores. Um carinho que quadruplicou desde que o nome do rapaz de 27 anos deste retângulo à beira mar plantado conseguiu não só a primeira vitória no certame como a maior votação de sempre nas 62 edições da Eurovisão. 

Num dia em que as atenções se repartiram entre a vinda do Papa e o tetra do Benfica, o Marquês fez silêncio para ouvir o vencedor do festival. 

Desde aí, tombou pelas redes sociais abaixo, pelas conversas de café e por todo e qualquer tipo de comunicação uma verdadeira avalanche com o nome do cantor no epicentro. Salvador Sobral foi recebido por milhares de pessoas à chegada ao aeroporto. Foram feitos dezenas de milhares de tweets. A hastag #Salvador tem sido usada até à exaustão, a propósito dele, que ganhou, a propósito de Luísa Sobral, que (também) o fez ganhar. Pululam covers feitos a ‘Amar pelos Dois’ vindos do Reino Unido, da Alemanha, de Espanha, da Noruega. Versões da música em metal… e em fado. Toca-se a cantiga ao som de violinos e há múltiplas traduções dos versos. Há cartoons animados ao som da letra que já se sabe quase de cor. Uma artista ucraniana criou uma animação com areia para parabenizar os vencedores. 

A Europa – e a Austrália, e Israel – votaram num rapaz que se apresentou despojado de fogo de artifício, que ousou cantar na língua materna do seu país – um desplante, imagine-se – e que, durante as conferências de imprensa, vestiu sempre a mesma mensagem: ‘S.O.S. Refugees’. Se, depois de tudo isto, ter-se sagrado vencedor não é uma mensagem forte da Europa…

De tempos em tempos, chega-nos um fenómeno assim. O de uma personagem fora da caixa que reúne consensos ao talento e desperta – maioritariamente – sorrisos. Uma figura que não se interessa por estes fenómenos – o que, tal e qual uma pescadinha de rabo na boca, só parece gerar mais burburinho.

Mas agora que Salvador Sobral foi aclamado herói nacional, há que recuar a… fevereiro. É que os consensos e a entrada na porta grande não apagam as críticas que surgiram quando a canção foi apresentada no concurso da RTP. O burburinho foi tal que o humorista Nuno Markl, um dos membros do júri, chegou a responder assim à maledicência: «Como sempre, nas eternamente indignadas e alarves redes sociais, fica-se com uma certa sensação de pérolas a porcos perante um ou outro insulto reles; mas felizmente parece-me que muita, muita gente percebeu o quanto este jovem melómano de voz extraterrestre servido por uma canção perfeita da irmã Luisa Sobral, com um certo toque de Ennio Morricone meets Cole Porter, merece ser entusiasticamente divulgado e partilhado». Pérolas a porcos. Mas Markl tinha razão: muita gente percebeu que aquilo era coisa especial – e muita gente para quem o português não passa de grunhidos.

E é verdade que há ali qualquer coisa que eclipsa. Uma ternura difícil de medir, misturada com um ‘I don’t care’ de Salvador, que chegou para ver a bola, apagou as luzes, deixou o coração em palco e voltou com a taça. E depois há Luísa. Discreta e grande, capaz de escrever algo que, de tão simples, foi tão certeiro assim. 

Agora, Salvador tem os concertos esgotados. O circo já se montou, entretanto, a propósito da receção do país ao festival do próximo ano. E a ponta do icebergue do que o espera pelos caminhos de Portugal poderá ser, para quem se apresenta, de certa forma, como antissistema, avassalador . É que há porcos que vão esperar por ele. Nessas alturas, lá terá que amar pelos dois.