A república decimal

Portugal tem tendência a surpreender. Na ONU, no futebol, na música, na religião e, por motivos menos nobres, na política. 

Já éramos o único país no mundo em que a direita se dizia «social-democrata»; agora somos o único país no mundo em que um Governo supostamente de esquerda defende o conservadorismo fiscal (o défice) e uma oposição alegadamente «liberal» defende o investimento público. 

Tornou-se esquizofrénico, não foi? 

Quem prometeu menos austeridade gaba-se de não gastar mais do que Bruxelas manda; quem queria mais poupança usa agora a falta de despesa do Estado como argumento. 

Mas se o Governo só tem razões para estar feliz, – com o Presidente, a conjuntura e as centrais sindicais a seu lado – a oposição só tem razões para não estar grande coisa. 

Cada vez que o Partido Social Democrata aponta a uma bandeira como oposição ao Governo, António Costa transforma-a numa vitória sua. 

Primeiro, logo de início, foi a durabilidade e a estabilidade da ‘geringonça’. A solução de Governo ia cair todos dias. Desse modo, cada dia que não caiu tornou-se numa vitória para o PS.  

Depois, o investimento estrangeiro. A dependência a um Partido Comunista afastava o capital vindo de fora, dizia-se, até com lógica. Contudo, quando Jorge Costa Oliveira, o secretário de Estado da Internacionalização, certificou em audição parlamentar que não se perdera ou adiara «nenhum grande investimento em 2016», nenhum deputado da oposição o contrapôs. Nem um.

Depois, veio o défice. Maria Luís Albuquerque, um ano após Costa inverter o resultado eleitoral, garantia que o défice nunca seria «nem 2,7%, nem sequer 3%». O Governo socialista, dizia a antiga ministra das Finanças, não cumpriria a meta de Bruxelas. 

Pois bem: Costa não apenas cumpriu como a ultrapassou. O défice primeiro apresentado foi de 2,1% – já abaixo do requerido –  e depois revisto pelo Instituto Nacional de Estatística em 2%: o défice «mais baixo da história democrática nacional». 

Foi por esta altura que Portugal começou a assemelhar-se a uma república decimal. António Costa festejava ir além da Troika, indo além da meta europeia do défice, Passos Coelho relembrava o défice de Miguel Cadilhe como o verdadeiramente «mais baixo da história» e o INE vinha dizer que, afinal, o governo batera mesmo o recorde. Em vez de discutir o país, lutava-se por décimas. 

No início do ano, veio Passos dizer que o crescimento económico «continua medíocre» e este mês regressou o INE para responder. O crescimento do primeiro trimestre é de 2,8%, merecendo saudação geral. 

O PSD pode jurar que faria melhor, mas não é isso que todas as oposições fazem? 

Sobram a dívida e o investimento público, de quem o governo de Passos Coelho não foi exatamente o melhor amigo, e se a tradição se mantiver também disso Costa começará a tratar. Marcelo já o pediu. 

Com tudo isto, o primeiro-ministro conseguiu a proeza de passar a ‘pasokização’ do PS para o PSD. E a culpa não é de Passos. Ele é só demasiado sério para este país.