Trump. Em defesa do statu quo do deserto

O presidente americano estendeu a mão aos líderes árabes, escolheu um lado da fratura sectária e pediu ajuda para conter o Irão. Mas a abertura iniciada por Obama pode já ter vida própria.

O homem que diz querer pôr os pontos nos ii do terrorismo e chamar as coisas pelos nomes no que diz respeito aos seus laços com o islão recuou vários passos no seu grande discurso do fim de semana, em Riade. Donald Trump reconheceu pela primeira vez em público que quem mais morre às mãos de grupos radicais são pessoas muçulmanas, não recorreu à fraturante expressão “terrorismo islâmico radical”, que tanto insistiu em usar na campanha, e prometeu às dezenas de líderes muçulmanos que o ouviam que o objetivo americano não é “impor o nosso modo de vida aos outros, mas estender as nossas mãos num espírito de cooperação e confiança”.

Na capital saudita não houve sinal do homem que chegou a prometer proibir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos ou do presidente que tentou fazê-lo para uma série de países nas suas primeiras semanas de governo – muitos ouviam-no na tarde de domingo. Trump elogiou até os modestos objetivos do reino para 2030, com a sua filha, agora sua conselheira, a fazer o mesmo em relação à evolução nos direitos das mulheres. O presidente levou uma mala com cerca de 450 mil milhões de dólares em negócios entre os dois países, uma boa parte dos quais em armamento negociado já pelo seu antecessor, Barack Obama. Sobre direitos humanos, não falou. Em suma: o presidente incendiário e antissistema começou a sua primeira viagem de Estado na defesa do statu quo no Médio Oriente.

Nada disto surpreendeu a monarquia saudita. Desde novembro que Riade espera um regresso ao estado de coisas que antecedeu Barack Obama. Na conversa branda em relação aos direitos humanos, também, mas especialmente num ponto: conter a emergência económica e geopolítica do Irão, que o anterior presidente americano permitiu ao investir num acordo nuclear. E Trump não desiludiu em Riade, no domingo, como também não o fez ontem, em Telavive.

Se na capital saudita prometeu uma aliança de países muçulmanos – leia-se sunitas, de onde sempre parecem escoar toneladas de armas e dólares para grupos extremistas – em busca de “isolar” o Irão, em solo israelita repetiu que a prioridade é travar uma arma nuclear em Teerão e cortar a sua influência regional. O Irão, disse aos jornalistas ao lado do primeiro-ministro israelita, “não pode nunca obter permissão para ter uma arma nuclear” e tem “de travar o financiamento mortífero de terroristas e milícias”.

O facto de os comentários terem acontecido um e dois dias depois das presidenciais iranianas tem importância. O reformista Hassan Rouhani conseguiu a reeleição com 57% dos votos na primeira volta, derrotando um principal concorrente conservador que se opôs – como Trump – ao acordo nuclear negociado com os Estados Unidos, União Europeia, Rússia e China. “Estão a desenhar-se linhas de combate e isso é preocupante”, argumentava ontem o investigador Azadeh Kian, da universidade francesa Sciences Po, à AFP.

“Especialmente quando isso acontece um dia depois do triunfo de Rouhani, que demonstrou uma dinâmica autêntica na busca da democratização e de uma sociedade iraniana mais aberta.”

Das duas, uma

O governo americano reconheceu na semana passada que os iranianos estão a cumprir a sua parte do acordo nuclear e, por enquanto, não parece pronto a rasgar o documento, como Donald Trump chegou a prometer. De Teerão tão–pouco parece haver um salto de animosidade, mesmo face à ideia americana de construir uma espécie de NATO de países sunitas, apoiando ostensivamente um dos lados da fratura sectária na região.

O ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, o grande negociador do pacto nuclear e uma figura apreciada na comunidade internacional, respondeu com escárnio ao discurso de Trump em Riade. “O Irão – acabado de sair de eleições reais – é atacado pelo presidente norte-americano no bastião da democracia e moderação”, lançou Mohammad Javad Zarif no Twitter.

E o seu presidente, falando ontem na primeira conferência de imprensa depois das eleições, fez o mais parecido com um encolher de ombros, dizendo que o país continuará a fazer testes balísticos – um ponto de tensão com Washington – e indicando que o encontro em Riade não passou de aparência. “Foi apenas um espetáculo com nenhum valor prático ou político”, disse Rouhani, afirmando que não se pode “restaurar a estabilidade regional sem o Irão”.

Teerão, afinal de contas, tem aliados na Europa, onde muitos dos negócios pós-sanções estão a ser negociados. Como a França, por exemplo, de onde ontem o novo governo fez saber que, ao contrário da linha americana, apostará “numa abordagem construtiva” e num “diálogo político” com os reformistas iranianos.