A vergonha aos nossos olhos

Sedento por tráfego no site e por mais alguns cliques, o CM baixou a um nível inimaginável

Esta semana fomos surpreendidos com a notícia de uma violação de uma jovem embriagada num autocarro. A discussão deste caso e as suas repercussões revelam as raízes que o envolvem: a cultura da violação, a cultura da humilhação e a cultura da impunidade.

Em primeiro lugar, a cultura da violação. Ela existe e está presente num arquétipo machista que subsiste na nossa sociedade. O que se passou foi uma violação mas a cultura da violação desculpabiliza o ato e alimenta a selvajaria dos que, pela sua inação ou pela sua efusividade (qual delas a pior?), contribuíram para a sua consumação. Basta ler as caixas de comentários de muitas das notícias sobre este caso para perceber a dimensão desta cultura da violação: a jovem estava bêbada, estava a divertir-se, estava a anuir, até estava a gostar. São variações da roupa que usava e de quaisquer outras supostas ‘provocações’ que transformam vítimas em criminosos. E sim, esta cultura da violação também existe no namoro ou no casamento e corresponde a uma forma de degradação do outro, despersonalizando-o.

Em segundo lugar, a cultura da humilhação. Nem o desconhecimento da lei nem o álcool justificam a transformação de uma violação numa festa coletiva, com uma turba que a filma e que posteriormente ainda a põe a circular na internet. A cultura da humilhação alarga-se a outras esferas da nossa relação com o digital, como o sex revenge que ainda recentemente levou a suicídios noutros países, mas assume foros verdadeiramente assustadores quando vemos casos destes. Esta cultura da humilhação é um exercício da bestialidade que tem de ser severamente punido.

Por último, a cultura da impunidade. Como se tudo isto já não fosse suficientemente grave, um jornal – o Correio da Manhã – decidiu disponibilizar o vídeo para que todos o pudessem ver. Ou seja, o CM violou novamente a jovem e fá-lo sempre que alguém acede ao seu site. Sedento por tráfego e por mais alguns cliques, o CM baixou a um nível inimaginável. Perante o coro público de protestos e a indignação de muitos jornalistas, o CM defendeu-se com a deontologia e com o compromisso com os seus leitores, mas não há nenhum código que proteja o que o CM fez. Pelo contrário: reprime-o. A relação dos jornalistas com a verdade não se faz com o enxovalho das vítimas. A notícia do vídeo não implicava obviamente a sua difusão. Agindo como produto descartável e como qualquer obscuro site onde se difundem vídeos desta natureza, o CM reclama para si regras de jornalismo que obviamente não cumpriu. A sua direção humilhou a jovem, contribuiu para a cultura da violação e alimentou a selvajaria ao abrigo de uma cultura de impunidade que a ERC tem de acabar de uma vez por todas.