Assédio e abusos. Com que idade foram assediadas pela primeira vez?

O i  quis ouvir as memórias daqueles que foram os primeiros momentos de constrangimento feminino ao contactarem com algo que faz parte da cultura da violação: o assédio sexual. Começa mais cedo que muitos imaginam e deixa marcas para toda a vida

Fui assediada com 1 ano de idade

Eu tinha alguns meses, mais ou menos um ano de idade. Ficava a dormir na casa da ama e o marido dela a meio da noite ia ao meu berço e mexia em mim, metia-me os dedos na vagina. Eu não entendia nada do mundo, lembro-me de tudo e só sei que era assim pequena porque anos depois contei à minha mãe e ela ficou impressionada por eu me lembrar de algo sendo tão bebé. A verdade é que, de alguma forma, apesar de tudo, eu já sentia aquilo como errado.  

Depois disso aconteceram várias outras situações em outros sítios, com outros homens. 

Nunca me senti uma vítima, nem fiquei com traumas (aparentes, pelo menos é o que eu acho). Mas estamos sempre alerta. Quando passo por um grupo de rapazes/homens na rua já ponho uma ‘cara de má’ bem visível para ver se, com isso, evito ‘piropos’, olhares e afins. Normalmente não me visto mais fresquinha ( com saias e decotes e saltos altos), gosto de passar desapercebida na rua, acho que não só para evitar essas cenas mas também por causa de certos ‘traumas’ adquiridos em idade adulta em relações amorosas menos boas. 

No fundo creio que isto tudo mexe com a nossa estabilidade. De certo modo, acredito que estas cenas que me aconteceram deixaram-me mais desconfiada e um pouco ‘fraca’ no que diz respeito a homens/relações amorosas. Pelo menos, eu já me encaixei e adequei a homens que não devia, por ter receio de estar sozinha e ‘ser presa fácil’ a predadores.

Fui abusada aos 14 anos

Um rapaz que era amigo de umas amigas estava super interessado em mim, eu mal o conhecia. Sabia apenas que tinha 24 anos e o nome dele. O que na altura parecia super "fixe", poque ele tinha carro e era mais velho.
Andávamos a trocar mensagens mas ainda não tínhamos estado juntos, ele estava sempre a elogiar-me imenso. Da primeira vez que estivemos juntos fomos passear, ele parecia mesmo um príncipe encantado, loiro de olhos azuis, super querido. No segundo encontro​ ele foi de carro buscar-me à escola, disse que íamos a casa dele ouvir música, entrámos pela garagem e ele disse para eu me esconder porque os vizinhos podiam comentar e eu achei aquilo normal. Quando chegámos a casa dele, ele começou com avanços sexuais e eu disse que não estava pronta porque era virgem.
Ele disse para eu não ser parva porque era óbvio que não íamos fazer nada, então deixei-me levar. Quando dei por mim ele estava de facto a tentar penetrar-me. Fiquei congelada e pedi pra parar. Ele disse para eu estar calada e aguentar que faltava pouco. Eu fiquei como que petrificada. Não gritei, não chorei, não fiz absolutamente nada.
Foi como se não fosse real porque ele tinha dito que não era isso que ia acontecer. E pronto, quando dei por mim ele estava a manda- me porta fora pela garagem e mandou-me embora. Eu nem sabia bem onde estava, nem como ir para minha casa. Mas lá fui.

Fui assediada aos seis anos

O assédio já é antigo, começou aos seis anos com os rapazes que nos apalpavam constantemente o rabo e nos chamavam "boazonas" repito, aos seis anos. Mas a situação que mais me marcou foi na primeira aula que tive de uma cadeira na faculdade no ano passado. Já me tinham avisado que o professor era mulherengo, mas no dia nem sequer me lembrei que ia ter aula com ele, até porque era a primeira semana de aulas e seria apresentação. Levei um decote, mas nada de especial – de vez em quando gosto de andar com blusas mais frescas. Fui para as últimas filas e apercebi-me de que estava a ser observada quando o professor vem para a frente da minha fila e não arredou pé. Grande parte da aula foi sempre a olhar para mim e para o meu decote, ainda que tentasse disfarçar. Senti-me envergonhada perante aquela situação repugnante e claro porque não fui a única a aperceber-me. Não me senti de todo culpada por ter ido decotada à aula, no entanto, nunca mais fui capaz de usar qualquer tipo de decote, por mais pequeno que fosse, na aula dele. Uma aula de uma hora para mim foi como tivesse durado uma eternidade, ainda que os meus colegas tivessem achado graça à situação.  Eu senti-me simplesmente um alvo e uma pessoa fácil como se estivesse a consentir algo que jamais consentiria. A verdade é que não tive coragem de dizer nada ou de simplesmente sair da sala porque afinal de contas eu não podia faltar ao respeito a um Professor do Ensino Superior, não é? Seria escandaloso e achariam exagerada a minha atitude, provavelmente ainda seria eu a culpada.. mas que respeito teve ele por mim?

 

Fui assediada na primária 

A primeira vez que fui assediada, andava na primária, não sei bem que idade tinha. Ia todos os dias para a escola de autocarro com a minha mãe e havia um homem bem mais velho que, invariavelmente e aproveitando a hora de ponta, abria a braguilha das calças e enfiava a minha mão lá dentro. Nunca contei à minha mãe o que se passava, mas nem sei bem o porquê. Acho que não tinha noção real do que se passava, mas, no fundo, tinha vergonha e sabia que era desadequado. Mais tarde, no dia do meu 22º aniversário, estava eu a sair do cabeleireiro quando me baixei para apertar os cordões dos sapatos. Senti um homem encostar-se a mim por trás, a meter uma mão por dentro da minha camisola para me tocar no peito e a outra mão a apalpar-me entre pernas. Fiquei completamente em pânico, o que me fez soltar um grito. O indivíduo fugiu a correr e eu fiquei paralisada no meio da rua, sem saber o que fazer. Depois desse episódio, tive medo de andar sozinha na rua durante algum tempo e ecoava ainda na minha cabeça o som da respiração ofegante e nojenta do homem no meu pescoço. Arranjei um spray de gás-pimenta, que transportava religiosamente comigo. Ao longo da vida, foram vários os episódios de assédio de que fui sendo alvo, mas estes foram os que mais me marcaram. Hoje em dia, como mãe de uma menina de 3 anos, esse é um receio recorrente e já vou ensinando que há sítios do corpo que são privados e não podem ser tocados por qualquer pessoa.

 

Fui assediada aos 9 anos

Desde pequena que tenho experiência com o assédio, uma vez que me desenvolvi bastante cedo. O assédio tem condicionado bastante a minha vida. Sou uma mulher bastante – como se descreveria em literatura – voluptuosa. Tenho peito e rabo grande, cintura fininha. Dou por mim, em 99% dos dias a querer tapar-me, usar roupas que não revelem aquilo que sou na realidade. Não quero parecer que estou a "pedi-las" nem quero que me conheçam só pelo meu corpo. No meu mundo, no mundo do direito/advocacia, é extremamente difícil ser levada a sério. Sinto-me sempre objeto de desejo em vez de objeto de admiração pela minha inteligência. A pior experiência que tive foi na minha primeira semana em Lisboa. Com 18 anos, acabada de chegar para estudar Direito, num particular dia havia greve de metro e tive que apanhar um táxi. Ele percebeu que eu não era de cá, porque o disse, inocentemente. Quando dei por mim estava numa ruela qualquer no meio do Martim Moniz e o taxímetro já marcava quase 18€, tantas foram as voltas (apanhou-me na Morais Soares). Quando perguntei porque estava a levar-me para o Martim Moniz, e disse que não tinha dinheiro comigo para pagar uma conta tão grande porque estava a contar só com uns 10-12€, ele trancou-me no carro e disse "mas podes pagar de outras maneiras, querida". Tocou-me na perna. Nunca me senti tão mal, tão enojada, tão envergonhada, na minha vida. Consegui fugir, mas não consegui apresentar queixa porque esqueci-me de anotar o nome ou a matrícula. As histórias multiplicam-se desde os 9 anos, quando comecei a parecer uma míni mulher. Fui ensinada a não ligar, a dar desprezo, mas incomoda. Incomoda cada vez que tento não ser eu para não ter de ser assediada, incomoda cada vez que troco o vestido pelas calças para não assobiarem, incomoda sempre que não uso saltos altos porque já sei que me vão parar na rua. Incomoda porque sei que a minha filha ainda vai viver neste mundo onde os homens ditam aquilo que podemos, em nossa consciência, usar, dizer, fazer. Não há feminismo que pare milhares de sobreposição do homem à mulher. Dito isto, recentemente tenho conseguido, felizmente, estar mais confortável na minha própria pele e usar algo que revele um pouco mais as minhas formas. Mas vou continuar a não usar decotes. Se o fizer, nunca vou ser levada a sério.

Fui assediada aos 11 anos

Eu desconhecia a existência do assédio, nunca tinha pensado muito sobre o assunto, e, se pensasse, qual era a probabilidade de aquilo nos atingir também a nós, crianças? Estava no café com a minha mãe, o café onde íamos sempre e ainda hoje vamos, e eu tinha um trabalho de inglês para entregar nessa semana. O tema era música, e eu escolhi os Rolling Stones, porque tinha ido pouco tempo antes vê-los com o meu pai a Coimbra (estavamos em 2003!). Por causa do concerto, os Rolling Stones eram a capa da Blitz nessa altura, e eu disse à minha mãe que queria ir à papelaria, a que ainda hoje está na nossa rua, comprar a revista. "Toma, leva o dinheiro e vai sozinha", respondeu-me a minha mãe. "Já és grande, sabes orientar-te aqui, é só descer a rua. Eu vou estar aqui no café, qualquer coisa que precises, ligas-me para o telemóvel".
Eu já fazia pequenos percursos a pé, principalmente para ganhar essa confiança de andar sozinha na rua – portanto, aquilo não tinha nada de extraordinário. Lembro-me que estavamos em Setembro, que eu estava morena pelo fim de verão, e até me lembro que tinha vestida uma t-shirt da Stradivarius (a minha primeira peça de roupa comprada numa "loja de adultas", porque, até então, toda a minha roupa era comprada na Zara kids. Eu tinha 11 anos, relembro). Comecei então a descer a nossa rua, e foi aí que comecei a ouvir um barulho estranho, "cssss, cssss", como o som das cobras. Olhei para o lado e vi uma carrinha branca, de obras, com um rapaz que não devia ter mais do que 20 anos apoiado na janela a olhar para mim enquanto fazia o mesmo som sem parar, "cssss, cssss".
Congelei por dentro, senti um tipo de medo que nunca imaginei que existisse em mim, mas consegui virar a cara e continuar a andar como se não fosse nada comigo. É estranho como ninguém nos diz como reagir a isto, mas todas nós temos o mesmo mecanismo de defesa, não é? Como se não fosse nada connosco, como se a não-resposta os fizesse desistir.
Como era fim de tarde e estava algum trânsito, o "cssss cssss" andou lado a lado comigo até eu entrar na papelaria. Foi a rua toda, desde que saí do café até me esconder lá. Eu não conhecia o termo "assédio", mas conhecia os termos "violação" e "morte", talvez por causa das notícias.
Nunca me passou pela cabeça que aquilo pudesse ser uma atitude sem um fim, só porque sim. Então, com medo de ser raptada pelos homens da carrinha e, consequentemente, violada ou morta, liguei à minha mãe e disse-lhe que não saía dali até ela me ir buscar. Percebi mais tarde, e de maneiras igualmente más, que na maior parte das vezes eles não nos querem fazer nada – fisicamente, na prática. Que o fazem, de facto, só porque sim, com a efemeridade inerente ao que isso representa. Que não nos toca, mas que fica ali a pairar e a corroer-nos por dentro. Porque é essa efemeridade que, anos após anos, episódios atrás de episódios, nos corrói enquanto mulheres. E sabes o que é que me custa mais? É que, durante algum tempo, me culpei por ter vestida uma camisola de uma "loja de adulta". Que aquilo não era próprio para mim, que só tinha 11 anos. A camisola não mostrava nada, não era decotada, não era subida. Só que não era da Zara kids. Que irónico, não é?
 

Fui assediada com 10 anos

Tinha 10 anos. Comecei como muitas a desenvolver-me muito rápido. Estava numa festa de aniversário de uma amiga da escola. Pois bem: a coisa mais inocente no mundo, uma festa de meninas, para mim não foi nada disso. Lembro-me como se fosse hoje. Estávamos a brincar no quarto e entra um primo da aniversariante com os seus 18 anos. Com a confusão que estava naquele quarto, entre brincadeiras, eu estava no meu canto a brincar e ele chega ao pé de mim e começa a falar todo tipo de palavreado obsceno e começa a pôr a mão entre as minhas coxas. Em mim, uma criança de 10 anos. Por azar, as minhas amigas começam a sair do quarto e eu, em pânico, não consegui sair e ele sempre a insistir. A partir daí começou a tocar-me nas mamas, rabo. A “minha sorte” é alguém o chamou e entrou mais gente no quarto. Até hoje não me esqueço disto. Mas ainda hoje levo com assédio diariamente, apalpões nos transportes na rua, sussurro na rua, as famosas “dick pics” sem serem pedidas. Mas o episódio mais horroroso foi seguirem-me até casa desde o metro, baixarem as calças e começarem a masturbar-se. Mais uma vez “a minha sorte” foi fechar a porta a tempo. Isto vem sempre desde pequenas, era assediada pelos idiotas da minha escola cada vez que me baixava para pegar algo ou quando ia ao quadro, por isso é que já quase nem participava nas aulas.

 

Fui assediada com 6 anos

 Eu tinha cerca de 6 anos e gostava muito de todo o ambiente da catequese, de missas, etc. Um dia, durante uma missa, estava na fila para receber a hóstia e um homem atrás de mim pôs as suas mãos à volta do meu pescoço, como que a massajá-lo. Na altura, não sabia o que era aquela proximidade de alguém que eu não conhecia, só sabia que estava errado. Também não soube como reagir, não contei nada a minha avó, talvez por medo. Não me lembro de o ter voltado a ver ou de ele ter voltado a fazer alguma coisa, felizmente.

 

Fui assediada com 11 anos

Estava no quinto ou sexto ano e nas aulas de inglês tínhamos uma atividade chamada “Easter bonnet parade” em que, em grupos tínhamos de criar um chapéu dentro da temática que o professor dava. 

O meu grupo criou um e, para combinar com o chapéu, para o desfile, levei um outfit todo verde: meia calça, camisola e saia curta. Depois do desfile, fui para casa de uma amiga e, no final da tarde, a minha mãe passou por lá para me levar para casa. Enquanto esperava por ela, um carro aproximou-se, parou, olhou-me de alto a baixo e só quando me viu o rosto e  se apercebeu de que era uma miúda, é que arrancou e seguiu viagem. Consegui perceber, na altura, que me tomaram por uma trabalhadora do sexo. Depois, assim mesmo grave, foi uma vez um rapaz que me abordou para dançar comigo e eu disse que não estava interessada. Ele insistiu e eu repeti que não estava interessada. Então vira-se para mim e, de forma agressiva, diz: “és uma puta e, de qualquer maneira, também ninguém te quer”. Tive também uma situação em que estava a voltar para casa depois da faculdade. Eram mais ou menos 21h. Vi um homem ao dobrar da esquina, mas não tinha percebido o que estava a fazer. À medida que me aproximei, percebi que ele estava a urinar. desviei o olhar e passei para o outro lado da rua. Então ele começou a seguir-me com o pénis nas mãos e disse “oh menina, chupa aqui à velinha”. Também já se viraram para mim na rua e disseram “lambia-te a rata!”

 

Fui violada com 15 anos

Infelizmente eu comecei a sair muito cedo, tinha talvez 12 anos quando fui pela primeira vez a discoteca. Tinha irmãos mais velhos e fazia chantagem para eles me levarem. 

Aos 15, estava numa festa já sozinha e o DJ era “de fora”, como dizemos sobre quem vem do continente para os Açores. 

Ele tinha por volta dos 30 anos. Sei que bebi imenso, ele dirigiu-se a mim com um olhar penetrante e falei com ele como se o conhecesse há anos. Não me lembro de ter chegado a casa com ele. Deu-me o clique quando chegamos à cama. Tinha outros amigos dele na casa, que fizeram de tudo para que eu bebesse até cair e nem me lembro da cara deles. Lembro-me de ele me agarrar os braços e fazer a cara mais nojenta de prazer que alguma vez vi. Doeu imenso, sangrei imenso. Era uma miúda de 40 quilos e ele um homem todo musculado. No dia seguinte, liguei a uma amiga minha para me ir buscar, expliquei-lhe mais ou menos onde era a casa, e aqui felizmente tudo é fácil de encontrar. 

A primeira pessoa que vi ao chegar a casa foi a minha mãe e até hoje ainda não sei como não chorei à frente dela. Controlei-me, mostrei apenas estar ressacada, fui lavar-me e dormir. Acordei com mensagens dele, a obrigar-me a calar a boca e a tomar a pílula do dia seguinte. Como é que uma miúda de 15 anos ia comprar a pílula, num sitio minúsculo, onde toda a gente ia comentar?! Pedi a uma professora minha, com quem tinha muita confiança. Fiquei mal disposta e enojada comigo mesma. Mas não sei porquê, em vez de me proteger mais, tornei-me numa pessoa fria. Pensei em vingar-me no máximo de gajos possíveis, durante dois anos tive relações sexuais com mais homens do que a minha própria idade e obriguei-os a calar a boca. Hoje isso atormenta-me, já fui confrontada com a pergunta “com quantos gajos estiveste?” e não sei a resposta. Sei que são muitos, metade não me lembro do nome. Senti-me nojenta, mas hoje sou uma mulher que aprendeu com isso. 

Demorou, mas não me entrego facilmente. Se estou com alguém, nem deixo que me masturbem, que me deem demasiado prazer, porque aí volto a sentir-me suja. Demorei um ano a fazer sexo oral ao meu ex-namorado (estivemos juntos dois anos e pouco), porque sentia-me mesmo mal – a mania que os gajos têm de pôr a mão na nossa cabeça e “pressionar”, no fundo tinha um quê de obrigação. Hoje, não tenho prazer em “one night stands”, não tenho prazer em ter prazer, não me entrego. Valorizo-me muito e aos outros também.

 

Fui assediada com 13 anos

O meu primeiro caso de assédio não foi chocante mas foi a primeira vez que senti o sentimento de me enjoar com o pensamento de alguém sobre mim. Tinha acabado de fazer a minha primeira transformação no cabelo – eu que tenho caracóis pôr o cabelo liso foi um auge na minha confiança feminina. Vinha do cabeleireiro vaidosa e encantada comigo mesma e vinha sozinha. Fui abordada por uns homens velhos que me disseram algumas coisas das quais não me lembro, mas nunca me irei esquecer do olhar devorador que eles me lançaram. Eu era uma menina e sentia-me uma menina. Foi a primeira vez que revi na minha cabeça todos os conselhos que a minha mãe me tinha dado – com medo, tudo aquilo fazia sentido. Foi aí que senti que era frágil e que algo nojento me poderia fazer pior do que aquela abordagem que experienciei. 

Aos 18 anos, estava de férias em Marrocos. Tínhamos acabado de chegar a uma vila e o dono do sítio quis fazer- nos uma visita guiada às redondezas. Conhecemos todos os vizinhos e algumas pessoas amigas. Aceitámos ir jantar a casa dele, não sabíamos que ia tanta gente. 

Como é tradição, as mulheres estão sempre longe dos lazeres dos homens, muito menos podem partilhar conversas com os convidados. O que me fez ser a única mulher no meio de muitos homens. A meio da noite, já mais à vontade, fui à cozinha buscar água e senti que alguém me seguia. Era um dos grandes amigos do dono da casa. Senti a mão dele a agarrar-me o braço com alguma força e, nesse momento, em espanhol rebuscado, pede-me para só beijar. Tentei manter a calma e, tão rápido disse “não” como me virei para voltar para junto dos meus amigos. Dessa vez ele agarra-me com força e diz-me para “não fazer barulho” que ele “só queria um beijo meu”. 

Por estar encurralada acho que ganhei uma força estranha para me largar das mãos que me agarravam e disse que, se ele não me deixasse em paz, eu iria gritar. Deixou-me em paz, e deixou-me ir. Guardei esse segredo de todos até chegar a Portugal. Penso que foi o melhor que fiz porque os meus amigos, sabendo o resultado, iria ser desastroso e as condições de tragédia eram óbvias. Isto faz parte da minha história, não posso remover de mim, mas acionei um sentimento de alerta para muitas situações possíveis. Porque isto marca, desfaz qualquer pessoa para sempre.

 

Fui assediada com 7 anos

Aos sete, junto aos carrinhos de choque, um senhor que frequentava o café do meu avô assediou-me. Passou a mão devagar pelo meio do meu rabo. Eu era pequena e, apesar de não saber na teoria qual a maldade de tal gesto, senti-me desconfortável. Disse ao meu pai que não gostava daquele senhor porque ele me fez “assim” e demonstrei. O meu pai nunca me disse nada, mas nunca mais vi o homem. Agora não me lembro quem foi (já deve ser velhinho) mas a situação marcou-me.

Mais tarde, um amigo do meu pai, quando eu tinha 12 anos, numa festa de copos lá em casa, encostou-me à parede quando se cruzou comigo no corredor e pressionou-me contra a parede enquanto respirava no meu pescoço. Lembro-me do cheiro a álcool que vinha do hálito dele. Durante alguns anos, o hálito a álcool lembrava-me esse episódio. Não me traumatizou, mas fez-me olhar para os homens adultos de outra forma menos pura, vá. Era amigo de família. Nunca falei aos meus pais, ele nunca mais o fez, o assunto morreu ali. Muitos outros exemplos tenho, mas estes foram graves porque eu era criança. Em adulta, no trabalho, pediram-me para  ir ao tribunal pedir cópia de um documento que era importante para nós. O meu patrão disse-me: se não te importares põe uma saia ou um vestidinho mais justo  e fazes olhinhos ao oficial de justiça. Resultou. O mal esteve em pedir, eu sei. Mas se não fosse toda “dengosa” iam ignorar o meu pedido e assim funcionou.

 

Fui assediada com 11 anos

Vinha a descer a rua depois de ir buscar os livros escolares novos à papelaria. Um carro parou ao pé de mim e o homem chamou-me. Quando me aproximei, por pensar que queria informações, apercebi-me que estava, afinal a masturbar-se. Tocou-me na mão e perguntou, com algum sotaque, ‘queres ganhar cinco euros?’ Quando me mostrei assustada, arrancou a alta velocidade. Fiquei praticamente sem reação, sem saber se devia contar a alguém, e passei o tempo todo a lavar a mão, que parecia ter sempre o peso da dele.

 

Fui assediada com 11 anos

A primeira vez que realmente senti assédio por parte de um homem, tinha 13 anos. Estava a ir de metro para a zona do norteshopping e ia sentada nos lugares dois a dois, os que ficam virados uns para os outros. Estava a falar com uma amiga minha que estava do meu lado esquerdo ( lado da janela) e à minha frente virado para mim sentou-se um homem. Eu estava de vestido de mangas compridas, e o vestido ia até aos tornozelos de ganga. Durante toda a viagem este sujeito estava sempre a bater-me com o guarda-chuva na parte interior do meu tornozelo ( e só depois mais tarde, já fora do metro, me apercebi que era para tentar abrir-me mais as pernas). De qualquer das formas, pedia sempre desculpa e por isso ignorei, quando já estava de pé à espera que o metro parasse, a minha amiga olhou para baixo ( no meio de nós as duas) e disse-me para correr, o que eu fiz pois percebi pela cara dela que o assunto era sério, quando já estávamos fora do metro ela disse-me que o homem estava a tentar tirar fotos ás minhas cuecas por debaixo do meu vestido.

A segunda vez que senti assédio sexual por de parte de um homem, foi num autocarro por um senhor que rondava a idade dos 55-60, eu ia para a minha faculdade num autocarro que passa pelo Hospital de Santo António, este autocarro está sempre cheio de pessoas idosas que utilizam este transporte para irem ao hospital. Na altura estava na faculdade a tirar um curso de artes, tinha 19 anos, e nesse dia em particular eu estava com uma mochila cheia de material, o portátil e na minha mão direita tinha um saco cheio de pinceis e tintas. Com a minha mao esquerda estava a tentar segurar-me no poste dentro do autocarro sendo que este estava demasiado cheio. Quando o autocarro está a chegar ao hospital, o senhor que foi acima referido e um que estava com ele, perguntaram-me, de uma forma que pensavam ser sedutora, se eu ia sair naquela paragem. Respondi não, e ao passar por mim o senhor apalpou-me uma mama, roçou-se em mim para sair e depois ainda me disse adeus já fora do autocarro.

Fui assediada com 10 anos

É muito complicado ser mulher. É por ter peito, por ter curvas… Cresci depressa e aos 10/11 anos já chamava a atenção de miúdos, rapazes e até homens. Ter cabelo comprido meio avermelhado nunca me deixou passar despercebida. Na escola, quinto ano, os coleguinhas sentavam-se ao meu lado para se meterem comigo. Ou para ver o soutien, ou para me porem a mão nas pernas, ou apenas para me chatearem por verem que sempre tinha resposta na língua, embora meia tímida. Fui criada pelos meus avós. Desde sempre morei com eles. A minha mãe era vítima de violência doméstica e divorciou-se do meu pai. Com o meu avô aprendi que posso ser eu e basta ter algum cuidado. Hoje ele teria 103 anos, se fosse vivo, e era o melhor homem do mundo. Com ele aprendi que não se distingue ninguém. Naquela altura já tinha amigos de outras nacionalidades, homossexuais,e sempre agiu de forma normal com todos.Se fosse para falar de sexo, também se falava. Como coisa normal que é. Aos 10 anos fiz a comunhão. Tive que me confessar. Dia de horror. Foi a primeira e última vez. Quando o padre me pôs a mão na perna, algo em mim se revoltou e soube que não era normal. Fiquei receosa, desconfiada. Mas foi só uma mão na perna.

Depois, eram carros a seguirem-me até casa, sempre atrás de mim, quando ia ou vinha da escola. Até que deixei de ter medo. Confrontava quem fazia isso. Chegava a dar voltas ao quarteirão quando via que me seguiam.
Isto durou muitos anos. Havia sempre alguém a perseguir-me e deve ser por isso que ainda hoje tenho pesadelos.
Aos 12, um colega de escola lembrou-se também de me perseguir até casa. Tentou apalpar me e foi aí que me deu um clique. Tinha as coisas de Trabalhos Manuais comigo, incluindo uma tesoura. Espetei-a na sapatilha dele. Acabou a perseguição. desistiu de vez.  Aos 14 fui completamente enganada por um rapaz mais velho, perdi a virgindade e no dia a seguir fez de conta que não me conhecia. Aliada ao meu corpo de mulher, eu tinha uma grande inocência. Porque afinal de contas só queria que gostassem de mim. Aos 15 comecei a namorar, mas mesmo assim, havia um amigo que me assediava constantemente. Abraçava-me, dava-me poemas, chegou a tentar beijar-me e o outro nada fez. Sentia me como uma coisa. Aliás, isso aconteceu durante muito tempo. Aos 27 deixei uma relação de 10 anos em que fui vítima de violência. aos 28 encontrei um homem divorciado que me enganou,  morava com outra mulher e começou a estar comigo. Durante 2 anos essa outra mulher fez se passar por outras pessoas na minha vida.
Ele contava- lhe o que fazia comigo,ela deixava e gozavam comigo. Até que um dia ele tentou sufocar-me, fui mais esperta do que ele e fiz de conta que desmaiei. Quando ele parou, ataquei-o com a primeira coisa que tinha e mandei-o para fora de casa. Hoje em dia, tenho cicatrizes por dentro, tornei-me mais fria, mas tudo isto me ensinou que, mesmo quando perdemos a força e vontade, há algo de mais forte dentro de nós.

{relacionados}