O gorila de The Square levou a Palma de Ouro

Júri do 70.º Festival de Cannes premiou filme perturbador do sueco Ruben Ostland. As avassaladoras prestações de Diane Kruger e Joaquin Phoenix renderam os respetivos troféus de interpretação. E a Netflix ficou em branco

“O cinema é feito de luz; e foi essa luz que nos uniu para a Palma de Ouro”, fez questão de dizer Juliette Binoche antes de dar a palavra ao Presidente do Júri, Pedro Almodóvar, para se entregar a 70ª Palma de Ouro a Ruben Ostlund, pelo intenso, quase para além do insustentável, e provocante “The Square”. Ostlund já provara em “Força Maior”, onde venceu o prémio da secção Un Certain Regard. Foi essa luz que abalou a Croisette e não deixou ninguém indiferente ao seu cinema. Tal como à performance realista do gorila humano interpretada pelo muito convincente Terry Notary, que funciona como um grito nas nossas vidas, levando-nos a questionar o nosso modo de vida já quase no final dos 142 minutos de duração. Em “The Square” Ostlund usa a provocação intelectual e social de uma forma inesperada, tirando-nos o tapete debaixo dos pés a um certo conformismo, em particular daqueles que estão habituados a estar do lado das boas causas, das boas maneiras altruístas e, porque não, das boas famílias. A personagem de Christian (excelente Claes Bang, outra possibilidade para prémio de interpretação) é absorvente no curador de um museu de arte contemporânea de Estocolmo.

Venceu o melhor filme do 70º festival de Cannes. Ficamos à espera que os nossos distribuidores assegurem a estreia “The Square” possa estrear por cá.

 

Diane Kruger e a Lei de Talião

No plano interpretativo, como se esperava, Diane Kruger venceu o prémio interpretativo, como uma mãe vingativa que aplica a Lei de Talião a um ataque terrorista neonazi que vitimou o marido e o filho, no filme arrojado do turco Fatih Akin. Arrojado e a deixar no ar uma motivação que não está longe da de uma jihadista. Há de falar-se ainda muito deste filme.

Já Joaquin Phoenix convenceu o júri com a sua acabrunhante performance como o ex-militar a cumprir uma espécie de via sacra em flashes. É assim o cinema tripante de Lynn Ramsay, agora até mais próxima do mais intrigante Lynch.

Para além da Palma, foram distinguidos ainda os filmes que tinham de o ser: “Loveless”, do russo Andrey Zvyagintsev, o favorito de muitos, exibindo um cinema seguro e preciso, a evidenciar o manto de desamor em que vive parte da sociedade russa; a energia contagiante de “120 Battements Par Minute”, de Robin Campillo, a trazer à memória o tema do muito adiado combate à sida nos anos 90. É o cinema da ação que supera a palavra.

Nem tudo é perfeito ao atribuir o prémio de realização a Sofia Coppola no preguiçoso “The Beguiled”, a operar um pouco relevante remake do original de Don Siegel, em 1971. Fica por provar o cinema “feminista” que anunciou.

Em suma, Cannes prometeu muito, mas ficou aquém, por exemplo, da edição do ano passado, em que tivemos mais de uma mão cheia de filmes enormes e que tiveram o seu percurso. Para o ano há mais.

 

Pattison era favorito

A 70ª edição não foi muito pacífica. Desde logo, foi um ano marcado pelo escândalo Netflix, em que se estabeleceram regras novas para salvaguardar a exibição em sala dos filmes em competição.

Fora justamente “You Were Never Really Here”, da escocesa Lynn Ramsay, com um descomunal Joaquin Phoenix a atravessar um pesadelo, a fechar a competição para a Palma de Ouro. O filme avança aos solavancos, em flashes, por vezes desconexos, de certa forma também a conferir o estilo em que habitualmente Ramsay gosta de se sentir. No caso, a adaptação da história de Jonathan Ames com menos de uma centena de páginas.

Na melhor interpretação masculina, porém, Robert Pattinson, em “Good Time”, era o favorito. Não só por se entregar a uma prestação muitíssimo exigente mas também por sair da sua zona de conforto. Pattinson afastou de vez o ambiente gótico da saga Twilight, tal como em “In the Fade” Kruger afastou um passado ligado a blockbusters e assumiu um papel de lady vengeance na sua língua alemã. Distinguir Robert Pattinson era também a forma de fazer com que “Good Time” também não passasse despercebido. Decisões de um júri multifacetado, constituído por figuras tão diferentes como a cineasta alemã Maren Ade, os atores americanos Jessica Chastain e Will Smith, a atriz e produtora chinesa Fan Bingbing, a realizadora e atriz francesa Agnès Jaoui, o realizador coreano Park Chan-wook, o italiano Paolo Sorrentino e o compositor francês Gabriel Yared. Pela diversidade de estilos, experiências e propostas cinematográficas adivinha-se que atingir consensos terá sido um trabalho árduo.

O pódio dos melhores filmes Quanto aos filmes que mais nos marcaram, há que dizer que não nos ficou propriamente um filme incontestável, algo que se aproximasse de uma pequena obra-prima. Dito isto, temos ainda assim, várias opções bastante saborosas.

Além de “The Square”, surge também como calhado para esse grupo restrito “Hikari” (ou Radiance) da japonesa Naomi Kawase, ao desvendar-nos o mundo do cinema que é sugerido aos invisuais, através do papel de uma jovem que faz as descrições que acompanham a sonorização da narrativa e um fotógrafo que está à beira de perder a visão. É esse convite a apurar os sentimentos, complementado por um cinema cuidado e emocionalmente intenso que nos permitiu um desfrute bem mais apurado. E nesse sentido, um filme mais calhado até que “Wonderstruck”, do americano Todd Haynes, a ensaiar uma semelhante sugestão de redescoberta do cinema, entre o mudo e o sonoro, ao aproximar a experiência a quem perdeu a audição. Apesar do rigor na composição de época, entre o mudo e os anos 70, o trabalho de Haynes acaba por estar demasiado apoiado na história original (e muito visual) de Brian Selznick.