Caravela de papel atraca em Madrid sem levantar ondas

Como país convidado da Feira do Livro de Madrid, a literatura lusa recebeu grande destaque em Espanha, mas a falta de uma estratégia leva a que uma vez mais Portugal pareça ter mais passado do que tem futuro

 

Na rara ocasião em que de Espanha sopram bons ventos, a Portugal o mínimo que se exige é que, com as nuvens que tenha à disposição, desenhe uma táctica do quadrado no campo literário, para ir chover forte do outro lado da fronteira e, mesmo se brevemente, molhar os espanhóis até aos ossos. Foi preciso esperar pela 76.ª edição da Feira do Livro de Madrid para que o convite nos fosse estendido. Com 2,4 milhões de visitantes em 2016, a capital espanhola tem a maior montra deste género no mundo hispânico, e a comparação com os números da Feira do Livro de Lisboa serve para sublinhá-lo, com esta a bater o seu recorde no mesmo ano, indo um pouco além do meio milhão de visitantes. Acresce a isto o facto de a indústria editorial espanhola ser a quarta do mundo, atrás dos EUA, Reino Unido e França, ficando na terceira posição ao nível da exportação. A palavra de ordem era, por isso, “promoção”, com vista a encorajar o tímido intercâmbio literário entre os dois países.

Perto do centro da capital, no Parque El Retiro, a feira irá prolongar-se até 11 de junho. A inauguração, na passada sexta-feira, viu Marcelo Rebelo de Sousa acompanhar os reis de Espanha na visita aos quase 400 stands que fazem daquele um exigente passeio a pé debaixo de um sol impiedoso. Coube ao ensaísta Eduardo Lourenço a conferência que abriu o programa de actividades. Para o país convidado fica a responsabilidade de organizar as hostilidades, e não apenas no âmbito das letras e do livro. Pelo pavilhão de 120m2, onde a presença portuguesa por estes dias mais se faz sentir, vão passar cerca de 25 autores, e não só os escritores portugueses ou de língua portuguesa, os académicos, livreiros e editores, mas também cantores, e haverá espaço não apenas para a música como para o cinema fotografia e tudo, e tudo.

No encarte que o Instituto Camões fez publicar na última edição do “Jornal de Letras”, o responsável pela programação portuguesa, Pedro Berhan da Costa, destaca como “objectivo nuclear tornar a cultura portuguesa e as letras nacionais, nas suas mais diversas expressões, mais conhecidas em Espanha”. Se é cedo para fazer qualquer balanço, e se, à partida, deve enaltecer-se o facto de a programação ter tido o cuidado de “combinar iniciativas que cobrem os clássicos e a modernidade do século XX”, com especial destaque dado aos “autores consagrados, Camões, Pessoa, Eça, Sophia e Saramago”, e sessões dedicadas a Almada Negreiros, Miguel Torga, Ruy Belo, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol, o jornalista do “Diário de Notícias”, João Céu e Silva, foi até ao momento a única voz a ver um senão na bela, questionando-se sobre a falta de ambições em relação à afirmação da literatura portuguesa do século XXI.

Se se pode dizer que, com a excepção de Eduardo Lourenço e de Gonçalo M. Tavares, os grandes vultos da nossa literatura representados na Feira de Madrid só lá estão em espírito e na letra, é curioso notar como, do ponto de vista crítico, aquele que se esperava que fosse um momento de reflexão sobre os “Caminos de la literatura portuguesa” – tema da feira –, não foi antecedido de uma fase preparatória, qualquer exame ou sequer trabalhos de casa. 

Não se sabe muito bem quem são os estrategas por trás da operação, nem se pode dizer que a Berhan da Costa – docente da Escola Superior de  Teatro e Cinema e antigo Presidente do Instituto do Cinema (ICAM) entre 1999 e 2002 – seja reconhecida qualquer contribuição para o debate das letras lusas, pelo que fica a pergunta se porventura os responsáveis pela organização tomaram inspiração nos célebres versos de Antonio Machado: “Caminante, no hay camino,/ se hace camino al andar.” Seguindo essa pista, talvez então se possa supor que se “al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar”.

É significativo, de resto, que a tão aguardada edição do suplemento literário do “El País” – o “Babelia” –, que ofereceu o destaque da capa à participação portuguesa na Feira do Livro de Madrid, sob o título “Esplendor de Portugal”, mais do que uma oportunidade desperdiçada, tenha dado margem a um gritante exemplo do vazio de ideias e o fracasso em estabelecer um juízo minimamente profundo quanto ao rumo da actual literatura portuguesa.

Depois da capa em que se afirma que a literatura lusa é “uma das mais ricas da Europa”, em que se anuncia a evidência da “geração da crise”, e em que ainda é prometido um guia de novidades em todos os géneros literários, viramos a página para constatar que Antonio Sáez Delgado, professor de literatura em Évora, e tradutor de autores como Pessoa, Lobo Antunes e Saramago, não tem para apresentar aos leitores espanhóis mais do que umas notas soltas, bastante gerais, deixando o peixe miúdo confundir-se com o graúdo, para dizer-lhes que da língua de onde se vê o mar, parece que o importante é notar que não faltam escritores a meter as contas num fio sem grandes nós.

É assim que sobre Gonçalo M. Tavares, aquele que destaca como “o mais singular dos escritores portugueses dos últimos anos”, o que se lhe oferece dizer é que “bebe a partes iguais entre a tradição e a vanguarda”. E garantindo que, para se falar de Portugal nestes dias de uma perspectiva cultural não se pode passar ao lado da duríssima experiência da crise económica, “bem presente na literatura numa perspectiva crítica e de compromisso ideológico”, aqueles livros a que Sáez Delgado se lembra de recorrer são “Desamparo” e Desnorte”, de Inês Pedrosa, onde esta questão surge explícita nos títulos. E parece que o professor de Literatura só teve de facto tempo para ler os títulos. De outro modo, é difícil explicar por que destaca dois livros cujo impacto foi próximo de nulo em qualquer escala que respeite à literatura, à crise ou ao que quer que seja.

Fica curto o espaço para enunciar a quantidade de obviedades, banalidades ou mesmo disparates que Delgado consegue aduzir num texto em que, no fundo, se limita a compilar ideias que se cristalizaram à volta de uma série de autores que consistentemente se têm queixado da incapacidade da crítica remanescente para, num período de ataque cerrado às Humanidade, ir além da pele, vencer este rateio de traços que, para lá de alimentarem a caricatura, apenas servem o discurso esvaziado com o qual se pretende promover e vender a literatura e os escritores, como se as suas obras concorressem para o universo dos acontecimentos culturais da ordem do espectáculo, em que a superfície se confunde com o seu fulcro.

Os leitores do “Babelia” são ainda brindados com um texto sobre o sector editorial português, “um mercado pequeno mas fiel”, em que o jornalista, Javier Martín, sabe tanto ou tão pouco sobre o assunto de que fala que abre o artigo dando voz ao empresário Gonçalo Martins que, à frente da Chiado Editora, gaba-se de ser um visionário na área dos livros, sendo que o seu triunfo passa por apanhar a alma do negócio pelas costas, lucrando bem menos com os livros que vende do que com o que recebe à cabeça dos autores que, assim, ultrapassam qualquer crivo para verem um livro com o seu nome na capa. Isso não lhe impede de proclamar: “Acreditamos que havia muitos aspectos obsoletos na edição. A Chiado é a editora do século XXI”. Assinale-se que, ao contrário do que se passa na Feira do Livro de Lisboa, onde a Chiado tem já uma pequena praça com vários stands, querendo mostrar que não é menos que os grandes grupos que ainda dominam o sector, em Madrid a organização da Feira voltou a alterar os estatutos para barrar a entrada dos “selos” vanity press, e impedi-los de se misturarem com os outros e lucrarem com o prestígio tão ameaçado dos livros. Sem desistirem, estes empresários reclamam do tratamento discriminatório, afirmando ao “El Confidencial” que se sentem “humilhados”.

Há ainda um “panorama dos autores do outro lado da fronteira”, assinado por Perfecto Cuadrado, um dos maiores especialistas estrangeiros na poesia portuguesa, que conviveu de perto com alguns dos grandes vultos, e de quem legitimamente se poderia esperar indicações para serem levadas em conta até deste lado. Depois de mencionar desaparecidos como Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Vergílio Ferreira, Cardoso Pires ou Saramago, entre os vivos só consegue firmar uma lista de supermercado que pareceria decalcada dos tops de vendas ou daquilo que a nossa máfia dos prémios obriga a que se leia.