Farida Khalaf. “Se vocês não nos protegerem, não estou certa de que o meu país o fará”

Vendida como escrava sexual a um combatente do Estado Islâmico, Farida prometeu suicidar-se antes que lhe tocassem. Tocaram e ela tentou matar-se quatro vezes. Sobreviveu, fugiu e na segunda congelou o Estoril

Farida Khalaf não é o nome verdadeiro da mulher que na segunda-feira congelou a plateia das Conferências do Estoril contando apenas um fragmento dos meses que passou como escrava sexual do autoproclamado Estado Islâmico.

Vive como refugiada na Alemanha, a quem diz estar muito grata, mas ainda tem de ter cuidado com possíveis seguidores do grupo radical que tomou a sua pequena aldeia em 2014 e matou o seu pai e o irmão mais velho quando estes se recusaram a converter-se ao islão. A ela levaram-na com dezenas de outras mulheres e crianças para ser vendida num mercado de escravos em Raqqa, na Síria.

Farida tinha 17 anos quando se tornou escrava, já indesejavelmente velha para um casamento forçado. O facto de os extremistas do Estado Islâmico considerarem que os yazidis, uma minoria curda com rituais pré-islâmicos, não passam de “adoradores do diabo” não os impede de manterem mulheres e crianças como escravas sexuais. Farida ainda tentou resistir às primeiras investidas. Em “A rapariga que Derrotou o Estado Islâmico”, editado em Portugal pela Asa, Farida conta como ao princípio decidiu matar-se antes que lhe tocassem. Tocaram, e ela tentou suicidar-se quatro vezes. Já estava em lágrimas quando o disse no Estoril.

“A minha história é longa e trágica”, explica. Mas não é única. Farida conseguiu escapar ao cativeiro, como muitas mulheres e crianças, mas estima-se que haja ainda cerca de 3200 yazidis nas mãos do grupo extremista. Quase dez mil foram executados ou raptados, ainda não se sabe ao certo o número. Mas mais de duas mil sobreviventes esperam por ajuda no norte do Iraque, onde Farida diz que não há recursos suficientes. O i encontrou-se com ela ontem, no Estoril, e julgando doloroso pedir que revivesse o seu cativeiro, perguntou acima de tudo sobre o caminho que há em frente. Para onde a sua cara magoada e reservada parece olhar.

Com o amontoar de crimes sectários, vê alguma hipóteses de reconciliação no Iraque?

Mesmo antes de o Daesh [acrónimo árabe para o Estado Islâmico] chegar, os deputados iraquianos já eram incapazes de resolver esses problemas. Agora, não estou certa de que o consigam fazer. A nossa experiência mostra-nos que não conseguem resolver os problemas entre yazidis, cristãos ou sunitas. O governo não está a tomar medidas reais para essas fraturas. Os yazidis são uma minoria especial. O governo não nos trata como cidadãos normais.

Acredita que os países ocidentais estão a fazer o suficiente para combater o Estado Islâmico?

Como alguém que esteve sob cativeiro do Daesh, agradeço a todos os que estão a combatê- -lo. Mas não é suficiente. E não apenas de um prisma militar. Também se trata de uma questão judicial: devemos levar os que cometeram genocídio contra os yazidis e outras minorias aos tribunais. Temos de combater o Daesh com exércitos e com os tribunais.

Por que razão é tão importante para si reconhecer o genocídio?

É muito importante levar o caso a tribunal porque, caso contrário, ficaremos sem conhecer os verdadeiros recursos desta ideologia. Há algo atrás dela e atrás do Estado Islâmico, e temos de descobri-lo e destruí-lo. Se não reconhecerem este genocídio, talvez o Estado Islâmico surja com outro nome e faça de novo o mesmo aos yazidis. Não é a primeira vez que enfrentamos esta ameaça. Já lidámos com ela mais de 74 vezes.

O que lhe levaram de mais precioso?

Eles tiraram-me tudo, mas o mais difícil foram as vezes em que fui violada. A seguir a isso, o mais difícil foi quando me levaram o meu pai e irmão.

Os militantes do Estado Islâmico alguma vez lhe pareceram apenas outros seres humanos?

Nunca os vi como humanos. Foi essa a minha perspetiva. Se fossem realmente seres humanos, nunca cometeriam estes crimes todos contra mim e outras mulheres.

Há alguma chance de estes militantes regressarem à sociedade depois da guerra?

Acredito que devem ir a tribunal e ser julgados. Mas não tenho esperança para eles. Não acho que os militantes alguma vez se tornarão seres humanos normais. Como é possível cometer estes crimes todos, violar e matar esta gente toda, e ser uma pessoa normal?

Quais são as prioridades para os yazidis no Iraque?

Há várias medidas a tomar. A coisa mais importante é aceitar e reconhecer o seu genocídio no Tribunal Penal Internacional e ajudar ou proteger aqueles que ainda estão nos campos. Porque eles não são capazes de sair de lá sem proteção internacional. Também é muito importante trazer para cá algumas pessoas, especialmente os sobreviventes, como eu, que chegaram à Alemanha e receberam enfim ajuda psicológica e vivem uma vida melhor. Precisamos de ajudar os que precisam de ajuda. E há muitos que precisam de tudo.

Disse que o seu sonho era ser professora de Matemática na sua vila. Ainda o deseja?

Ainda tenho esse sonho, mas agora tenho um muito maior: o de ajudar os yazidis e lutar pelo reconhecimento do seu genocídio. Ainda quero ser professora de Matemática, mas não é muito fácil sê-lo na Alemanha.

De alguma forma, já é uma professora ao contar a sua história.

Algumas vezes. Quando conto a minha história, penso que estou a ajudar outras pessoas a serem fortes. A minha esperança é que sejam também fortes para me ajudarem. Não é exatamente a mesma coisa, mas é também uma maneira de ensinar às outras pessoas a serem fortes.

Gostaria de dizer alguma coisa às mulheres yazidis que ainda estão sob cativeiro?

Sejam fortes e nunca desistam. Tentem uma e outra vez escapar. Sejam fortes e fujam. Sei que é demasiado difícil, mas eu sou um exemplo e há muitas outras que conseguiram escapar. Sejam fortes e tentem ser como tantas outras raparigas e eu: partilhem a vossa história para combater o Daesh.

Que mensagem tem para os líderes no Iraque e na Europa?

No último mês estive numa conferência no Iraque com o primeiro-ministro. Pedi-lhes na altura e peço novamente que vejam os yazidis como outros iraquianos. Nós nunca nos sentimos cidadãos normais. Já se passaram seis meses e continuam sem autorizar a entrada de uma equipa do TPI. Por favor permitam que esta equipa recolha provas do genocídio. Aos líderes europeus e mundiais, peço-lhes o que já pedi tantas vezes: tentem que o TPI abra este caso de genocídio e protejam o meu povo. Se vocês não nos protegerem, não estou certa de que o meu país o fará. Precisamos da vossa ajuda.