Os segredos que se escondem à superfície

No século XIX acreditava-se que um corpo tatuado era sinónimo de um distúrbio psicológico.A exposição “O mais profundo é a pele”, no Palácio Pombal, explora a relação entre esta forma de arte e o mundo criminal, a partir das coleções do Instituto de Medicina Legal. O resultado é,de certa forma, arrepiante.

Os segredos que se escondem à superfície

Casada com o comandante de um campo de concentração, a infame Ilse Koch ficou conhecida para a História como ‘a bruxa de Buchenwald’. A sua característica mais peculiar, além da total indiferença perante o sofrimento humano, era a sua predileção por tatuagens. Selecionava os presos em função dos desenhos que tinham na pele e mandava que fossem assassinados para depois lhes serem retiradas as partes tatuadas. Possuía uma coleção de órgãos humanos dentro de frascos e diz-se que usava a pele das vítimas para fazer abajures de candeeiros.

Antes, porém, da prática macabra de Koch, já em Portugal se colecionava pele tatuada – mas com propósitos menos perversos. «A coleção das tatuagens do Instituto de Medicina Legal surge porque se acreditava no século XIX que o indivíduo que se tatuava tinha um distúrbio psico-patológico», explica Carlos Branco Ferreyra, cirurgião de medicina geral e curador da exposição "O mais profundo é a pele. Coleção de tatuagens 1910-1940" do Instituto Nacional de Medicinal Legal e Ciências Forenses.

A tatuagem era então um processo doloroso – tanto mais que era feita com métodos e instrumentos extremamente rudimentares. «Fazia-se com três a cinco agulhas fixadas a um pau de fósforo com um arame ou um cordelinho. Eram agulhas ocas, eles punham a tinta lá dentro e furava-se mesmo a pele», descreve o cirurgião. «Normalmente usava-se tinta-da-china, mas se não estava disponível podiam recorrer a artimanhas do mais rebuscado que há, como por exemplo queimar o que podiam, dissolver as cinzas em água e injetar a própria cinza».

Carlos Branco regressa às razões que levaram ao interesse da medicina legal pela tatuagem. «Se a tatuagem era um processo doloroso», continua o médico e investigador, «um indivíduo só se tatuava porque não tinha empatia pelo seu corpo. E se não tinha empatia pelo seu corpo, muito menos tinha empatia pelo corpo do outro, pelo sofrimento do outro, e portanto tinha uma predisposição para cometer crimes. Achava-se que havia uma relação muito estreita entre a tatuagem, o tatuado e o criminoso. Era considerado um comportamento desviante».

A exposição, que pode ser vista até 25 de junho no Palácio Pombal (na Rua do Século, Bairro Alto, Lisboa), integra o programa MUDE fora de portas, em que o Museu do Design e da Moda invade espaços pela cidade enquanto o edifício da antiga sede do BNU se encontra em obras.

Carlos Branco Ferreyra descobriu esta coleção invulgar quando estava a fazer um mestrado em museologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova. À procura de um tema para a sua tese, dirigiu-se ao Instituto de Medicina Legal, onde lhe foram apresentadas diferentes coleções, e concluiu que queria estudar «aquela que estiver em maior risco de se perder». «Foi só por isso que comecei pelas tatuagens, porque era uma coleção que estava no limite de perda da sua existência material. Se continuasse mais tempo nas condições em que estava acabava por ir parar ao lixo». 

Seguiu-se um trabalho minucioso de restauro dos tecidos humanos, um processo para o qual não havia um livro de instruções. «Não existia um manual, uma coisa que eu pudesse ler para perceber como se faz», explica o cirurgião. «Claro que se faz manutenção de coleções de tecidos humanos preservados em formaldeído em museus do mundo todo. Mas não estão no estado de conservação deplorável em que eu encontrei esta coleção. Como não sabia muito bem, ensaiei um procedimento que correu bem. A maior parte disto foi cortar, fazer dissecção de tecidos, hidratação». «Encontrei as peças num estado deplorável de preservação. Nalguns casos os frascos partiram-se e o líquido evaporou, aquilo ficou ali naquele caldo, o músculo apodrece quase imediatamente, a gordura também foi apodrecendo, e essa putrefação acabou por contaminar a pele».

«Acho interessante», continua, «pensar como esta pele, que andava nos anos 10 e nos anos 20 no peito de um homem qualquer, de repente aparece, ao fim de um século, no frasco de uma exposição. E o restauro é um passo inevitável para isso». A formação médica não apenas lhe deu as competências e os conhecimentos necessários para a tarefa como lhe permitiu lidar com naturalidade com aqueles materiais. «O facto de ser pele humana não me perturba particularmente».

Verdadeiramente arrepiante é a fotografia, datada de 1935, das costas de um homem tatuado que surge na capela do palácio. «A tatuagem é um ato pagão», explica Carlos Branco Ferreyra, «que todavia está intersetado com a religiosidade». Nas costas do homem vê-se um Cristo crucificado, a Virgem e Maria Madalena ajoelhadas e anjos a esvoaçar, desenhados num estilo naïf. As nádegas mostram um ato sexual e uma espécie de Zé Povinho com uma garrafa. «Outro dia veio aqui um amigo meu que é padre e achou curioso haver uma colocação do que é religioso num ponto mais alto e daquilo que é o vício, a prostituição e o álcool numa zona mais baixa». «E chamou-me a atenção para a cabeça do Cristo estar mais ou menos à altura do coração do homem tatuado. Há uma associação entre aquilo que é vital e aquilo que é religioso».

Numa outra sala, exibe-se uma grande quantidade de documentos que permitem reconstituir com grande pormenor a história de cada peça. Nalguns casos, os arquivos do Instituto de Medicina Legal articulam-se com os de outras entidades, como a Direção Geral dos Serviços Prisionais. Os livros de registos podem mostrar desenhos do local do crime, balas, fotografias de roupa, além de descreverem o indivíduo (cor dos olhos, altura, etc.). As tatuagens eram também consideradas uma marca distintiva determinante para fazer a identificação, tal e qual como uma impressão digital.

«Quase todos os indivíduos tatuados tinham passado pela cadeia», explica Carlos Branco Ferreyra. «Frequentavam um certo tipo de ambientes muito característicos e podiam ser presos por razões muito triviais, como por exemplo por vadiagem». Muitas vezes, os indivíduos que chegavam ao Instituto de Medicina Legal para exames periciais (ou, no caso de chegarem mortos, para autópsias) já tinham estado presos. «Eles circulavam, às vezes estavam presos, às vezes eram agredidos e iam ao instituto, outras vezes já tinham sido agredidos e já tinham sido mortos e apareciam para fazer autópsia», descreve o nosso anfitrião.

Um dos reincidentes nas prisões era Serafim da Assumpção Esteves, ou Serafim da Bica. O livro de registos do Limoeiro, «uma raridade do século XIX», mostra uma das seis vezes que deu entrada naquela prisão. «Estes indivíduos têm mais ou menos um perfil paradigmático. Um indivíduo criminoso, que frequenta os bairros típicos de Lisboa, em geral não tem emprego, vive à custa de uma mulher que normalmente se prostitui. Estão associados ao jogo, movimentam-se em tabernas, e há uma associação recorrente entre o criminoso, o tatuado, a meretriz, o fado e a taberna. Eram indivíduos com um comportamento muito agressivo. O Serafim da Bica tinha um bando e envolvia-se constantemente em confrontos com outras destas figuras, que era o Saloio da Mouraria. Envolveram-se numa rixa por causa de uma cadela e depois o Serafim acabou por ser mortona Praça da Figueira e deu entrada para ser autopsiado em 1912».

Mais adiante, a pele tatuada de Serafim permite reconstituir parte da sua vida. Carlos Branco decifra alguns nomes que aparecem: «O Serafim da Bica era amante da Maria do Café, tinha uma irmã chamada Alice e outra chamada Sara, e um irmão mais novo chamado Leandro». Além de nomes, siglas e datas, noutros frascos há tatuagens que representam profissões, animais, figuras femininas e até símbolos relacionados com a política (alusivos à República) ou emblemas de clubes de futebol.

Esta parte da coleção está montada numa estrutura circular alusiva à arquitetura prisional. Carlos Branco Ferreyra explica-nos tratar-se de um panóptico. «O panóptico foi inventado em 1780 por um indivíduo que se chamava Jeremy Bentham e assinala o momento de transição de um sistema prisional em que o indivíduo era encafuado numa masmorra e ninguém o via, para um sistema em que os indivíduos eram colocados em celas com uma torre ao meio. Quem estava nas celas não via quem estava na torre – os guardas -, mas os guardas viam-no a ele. O facto de o indivíduo que está preso não ver quem o está a vigiar acaba por despersonalizar a vigilância. Enquanto na masmorra há um guarda e sabemos quem é, aqui é a arquitetura a própria estrutura do poder. Por outro lado, ao estarem isolados, os indivíduos não se conseguem organizar para conspirar contra o Estado».

No exterior do panóptico há uma citação do filósofo Michel Foucault. «Num livro chamado "A Vida dos Homens Infames", Foucault diz basicamente isto: normalmente as pessoas que ficam para a História são os protagonistas de feitos grandiosos, cujo nome se vai perpetuando de geração em geração. Os indivíduos a quem pertenciam estas tatuagens, pelo contrário, tinham uma vida completamente desinteressante. Mas em determinada altura alguém recolheu a sua pele e de alguma maneira acabou por introduzi-los na História. O MIchel Foucault escreveu sobre isso, como é que estes homens considerados infames, ou seja, sem fama, de repente é exercida sobre eles uma forma de poder que lhes permite perpetuarem-se na História.É quase uma espécie de vingançado homem infame».

Se este núcleo se encontra exposto numa estrutura que evoca o sistema penal, a última sala recria o ambiente de um lugar dedicado ao prazer e à libertinagem – o bordel. «Aqui fala-se da tatuagem no feminino. A mulher não se tatuava – só as prostitutas. E havia uma diferença: a tatuagem no homem era figurativa, na mulher era eminentemente inscritiva. Encontramos datas ou nomes e os nomes são os nomes dos amantes». Algumas arrependiam-se ou zangavam-se com os homens e «aplicavam substâncias abrasivas na pele, como lixívia, para tentarem apagar os nomes».

A pintura de 1910 O Fado, de José Malhoa, ilustra de forma eloquente estas histórias de paixões violentas. «Decidi chamar este quadro para a exposição porque, quanto a mim, está aqui toda a história da tatuagem. O José Malhoa foi para a Mouraria para se inspirar e conheceu este casal – ela, a Adelaide da Facada, era uma prostituta; ele, o Amâncio, era um fadista e criminoso, um tipo extremamente turbulento, passava a vida preso. Aliás o Malhoa só conseguiu pintar a Adelaide sem casaco porque uma das vezes ele esteve preso no Governo Civil. Originalmente, a Adelaide da Facada aparecia com as tatuagens que tinha no braço, mas, quando ele terminou a pintura, o Rei D. Manuel II foi ver o quadro ao estúdio dele e disse-lhe: ‘Isto é uma vergonha, é tão feio, tire lá isso’».

José Malhoa acedeu à ordem do Rei e repintou as tatuagens que havia no braço da prostituta. Todas menos uma, a mais discreta de todas: cinco pontos, que representam as cinco chagas de Cristo ou o homem entre quatro paredes. De facto, "O Fado" é bem representativo da história da tatuagem em Portugal, dos meios onde era praticada – e da sua censura