Quantas vidas para Dom Quixote

Com a polémica sobre a alegada destruição de partes do Convento de Cristo esclarecida, por resolver continuam os vários processos que opõem Paulo Branco ao realizador Terry Gilliam, que apesar disso celebra, ao cabo de 17 anos, a conclusão do malfadado filme.

E a polémica pariu um rato, será o mais conciso resumo de tudo o que se escreveu e disse nas últimas semanas sobre o a rodagem de O Homem Que Matou Dom Quixote, o filme de Terry Gilliam a partir da obra de Cervantes, rodado entre Espanha e Portugal. Depois de notícias de que partes do Convento de Cristo, em Tomar, tinham sido destruídas na rodagem do filme que conta com a participação de Adam Driver, Jonathan Pryce, Rossy de Palma e da portuguesa Joana Ribeiro, a Ukbar Filmes, produtora escolhida pelo ex-Monty Python em Portugal depois de uma desavença com Paulo Branco, que no ano passado tinha adquirido os direitos do projeto, veio esclarecer esta semana que se «verificaram, de facto, alguns danos devidamente contabilizados pela equipa de peritagem associada ao convento» que se saldaram em «seis (convencionais e de fabrico recente) telhas partidas e quatro fragmentos pétreos de dimensões reduzidas» e que «segundo o perito independente, nenhum destes danos foi causado por algum tipo de uso indevido ou excessivo, mas poderia ter sido provocado por qualquer visitante».

Confirmou-o a SIC, que enviou uma equipa de reportagem ao convento, numa entrevista ao responsável pela conservação do monumento património mundial da UNESCO, Álvaro Barbosa, que explicou que «a partir de maio, com o calor, a pedra seca e tende a soltar-se» devido à ação natural dos fungos. «Está sempre a acontecer, é o envelhecimento da pedra», afirmou o responsável. «São danos de rotina, podem acontecer porque um turista se senta na beira de uma pedra, num banco, por uma criança ou alguém se pôr na base de uma coluna, e podem ser recuperados sem pôr em causa a imagem e a integridade do monumento». Segundo a produtora, os danos a reparar estão avaliados em menos de 3 mil euros.

Quanto à noticiada «fogueira de 20 metros» que, adiantou a Ukbar, «não pôs de forma nenhuma, em momento algum, a integridade do edifício nem dos presentes em causa», também Álvaro Barbosa esclareceu que não será correto sequer falar-se numa fogueira: «Foi uma cenografia de fogueira. A madeira está lá toda, está chamuscada mas não está queimada porque eles iam apagando. Uma empresa com currículo nesse aspeto tomou todas as precauções necessárias para que o risco fosse dissolvido».

Polémica que foi só mais uma, porque capítulos é provável que venham outros antes que estreie o malfadado filme que o ex-Monty Python já tentou pôr de pé por duas vezes no passado, antes do anúncio há um ano de que Gilliam avançaria de novo para o filme que conta a história é a de um homem que viaja no tempo e que no século XVII se cruza com o protagonista da obra de Cervantes – com Paulo Branco a anunciar que tinha adquirido os direitos do projeto, com um orçamento de 16 milhões de euros.

Entretanto, com o adiamento do início da rodagem, que estava previsto para o outono passado e que, segundo o realizador, se terá devido a um incumprimento de Paulo Branco na obtenção do financiamento, Terry Gilliam terá decidido avançar sem o produtor português. «Tinha um produtor, um sujeito português, que afirmou que reuniria todo o dinheiro a tempo», disse na altura o ex-Monty Python em entrevista à BBC2, acrescentando que semanas antes «se provara que ele não tinha dinheiro».

A essa entrevista, em que o nome de Paulo Branco não chegou a ser referido, seguiu-se um post no Instagram com a icónica imagem do leão da MGM em que no lugar do animal aparecia o produtor português, acompanhada de uma mensagem sobre «como os filmes são adiados, lição 1: cuidado com a pessoa em quem decides confiar» – e a decisão de avançar para o filme sem Paulo Branco , cuja rodagem terá começado em março e terá passado por Portugal, com o apoio da produtora portuguesa Ukbar Filmes, no mês passado. Por essa altura a produtora de Paulo Branco em França, que não tinha ainda reagido às declarações de Terry Gilliam, emitiu um comunicado anunciando, depois de confirmada pelo Tribunal de Grande Instância de Paris a «plena validade do seu contrato com o realizador Terry Gilliam no âmbito da produção da longa-metragem» em questão, que a rodagem do filme era «manifestamente ilegal» e que que a sua exploração, bem como a utilização das imagens não poderá «de modo algum, existir sem acordo prévio da Alfama Films».

Decisão que ao que parece terá sido ignorada por Terry Gilliam, que há dias celebrava no Facebook o final da rodagem de um projeto que tentava pôr de pé há 17 anos. «Perdoem-me o longo silêncio, tenho estado ocupado e estou agora de regresso a casa», começou por escrever o ex-Monty Python. «Ao fim de 17 anos, completámos a rodagem de O Homem Que Matou Dom Quixote. Muchas gracias a toda a equipa e àqueles que acreditaram. Quixote vive!»

A rodagem em Portugal beneficiou do novo programa de incentivos fiscais lançado em fevereiro pelo governo para atrair produções cinematográficas estrangeiras. Segundo explicou ao SOL Pablo Iraola, da Ukbar Filmes, trata-se de uma coprodução entre Espanha, França, Bélgica, Inglaterra e Portugal, em que a Ukbar participou com 10% do financiamento do filme, cujo orçamento total se manteve nos 16 milhões de euros iniciais. Se será desta que Dom Quixote viverá mesmo, melhor será aguardar para ver como termina a disputa entre Terry Gilliam e Paulo Branco. Mas não foi esse o primeiro obstáculo à realização de O Homem Que Matou Dom Quixote, projeto para o qual o ex-Monty Python avançou pela primeira em 2000, com Johny Depp e Jean Rocherfort como protagonistas. Nessa altura, o filme chegou a começar a ser rodado em Navarra, num processo interrompido por problemas vários, já relacionados com falta de dinheiro mas também com uma lesão de Rochefort. Houve depois uma segunda tentativa, dessa vez com John Hurt e Jack O’Connell, mas de novo o filme acabou por não avançar.

Ao SOL, Pablo Iraola explicou que além de França, há processos judiciais a decorrer nos vários países mas que a Ukbar está convicta de que o filme chegará às salas. «Temos um contrato de coprodução entre todos os produtores associados, existe um contrato de realização com Terry Gilliam e uma cópia do contrato de direitos da RPC [Recorded Picture Company], detentora dos direitos do guião, com o produtor delegado e que é o espanhol, temos a declaração de coprodução oficial do Instituto do Cinema e do Audiovisual. cumprimos todos os passos necessários. Quando entrámos no projeto fomos particularmente cuidadosos. Os papéis existem, o resto está nas mãos da justiça».