Santos Populares. Enquanto houver Santo António, Lisboa não morre mais

Não há cansaço que resista ao orgulho e paixão pelo bairro, todos trabalham em conjunto um ano inteiro para representar, em coreografia e canção, o que sentem pelo sítio onde vivem

Estamos num bairro tipicamente lisboeta, as ruas estão cheias de cor, ouvem-se gargalhadas de alegria, música e as pessoas comem e bebem animadas no coração da capital. Os bairros transformam-se em grandes arraiais e bailaricos para celebrar o Santo António. O cheiro a sardinhas é constante pelas ruas de Alfama, Mouraria, Bica ou Madragoa e assim se transforma Lisboa, todos os anos, em junho para se celebrar a tradição.

Ensaiadores, figurinistas, costureiros, marchantes, todos trabalham durante o ano para que tudo esteja pronto para o momento alto dos Santos, o desfile na noite de Santo António. Esta noite, a Avenida da Liberdade pinta-se de pessoas e cor para ver as marchas. Mas nem sempre a tradição foi como é hoje.

As marchas populares começaram nos anos 30 com Leitão Barros, fundador do jornal ‘Notícias Ilustrado’. A publicação decidiu lançar um concurso de marchas, com vista a mobilizar lisboetas para o Parque Mayer. A primeira edição das marchas, em 1932, teve três bairros a participar: Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique, tendo este último vencido com os seus trajes minhotos. Desde então, as marchas populares tornaram-se parte da cidade. As associações passam meses a ensaiar, inspirando-se nas tradições e temas alfacinhas.

‘Não toquem na minha Alfama’

Terça-feira à noite. São 21h30, as ruas de Alfama cheiram a sardinhas e os turistas aproveitam a noite calma e quente para comer um dos pratos típicos de Portugal. Já no Centro Cultural dr. Magalhães Lima, os marchantes preparam-se para começar os ensaios. Estão cá fora a conviver com um cigarro na mão, enquanto no pavilhão os coordenadores andam de um lado para o outro a discutir os últimos pormenores da coreografia.

A banda marca o compasso, a música começa a tocar e todos juntos e coordenados começam a dançar. Concentrados nos pormenores para limar as últimas arestas que faltam na coreografia, João Ramos, coordenador da marcha de Alfama, juntamente com Vanessa Rocha, a ensaiadora, esbracejam e falam alto para dar indicações do que tem de ser alterado. A pressão é muita e tem de estar tudo perfeito para que mantenham o primeiro lugar do pódio, conquistado no ano passado.

Para João Ramos o objetivo é “sempre ganhar”, contou ao i. “Desde 2003 que ganhamos ou ficamos em segundo lugar. Este ano não é diferente, pretendemos manter o título, mas sempre com respeito pelos restantes participantes”.

O orgulho e paixão pelo bairro não dá lugar ao cansaço, levando a que muitas pessoas se envolvam neste projeto de ano para ano. Quatro a cinco meses antes, começam a ser produzidos os fatos e arcos e, um mês e meio antes do desfile, os 50 marchantes abdicam do seu tempo livre para ensaiarem todas as noites de segunda a sexta.

É o caso de Bruno Ferreira. Tem 34 anos e já participa nas marchas há 24. “Sou bairrista, sou lisboeta. Ando nas marchas por amor à cidade”, diz, acrescentando que sempre sentiu no sangue a tradição e alegria das festas. No dia-a-dia trabalha numa junta de freguesia como administrativo e à noite vai para os ensaios da marcha.

Começou com 10 anos na Voz do Operário, na marcha infantil, e desde aí nunca mais parou. Passou pela marcha do Alto do Pina, Mouraria, São Vicente e agora está em Alfama. Nunca participou por tradição ou influência de familiares nas marchas, foi ele que começou a sentir curiosidade em miúdo. “Até hoje nunca desisti, enquanto tiver alegria e um sorriso no rosto vou continuar com todas as minhas forças”.

‘Não toquem na minha Alfama’ é o tema da marcha deste ano e tudo surgiu por causa do turismo.

Com o propósito de manter as tradições vivas, João Ramos refere ter-se lembrado do tema por acompanhar a realidade do bairro. “O turismo está a transformar tudo. Os turistas têm de respeitar a cultura de quem cá está”. João acrescenta ainda que todos os anos se inspiram na história ou temas atuais do bairro, para que os bairristas de Alfama se sintam orgulhosos e dignificados com a representação da marcha no desfile.

‘Marvila desfolhada pelo tempo’

Marvila é uma das freguesias de Lisboa que tem estado a sofrer mais transformações, com novos espaços de restauração. Nos últimos dez anos, ganharam as marchas apenas uma vez, em 2008. Mas também ali se ensaia afincadamente.

É noite de quarta-feira e ultimam-se os preparativos no quartel dos Bombeiros Sapadores de Chelas, o local escolhido para os ensaios.

Paulo Jesus, o ensaiador da marcha, dá indicações e reproduz os passos para que os marchantes aprendam. O grupo é composto por muitos jovens que têm amor às marchas e querem manter a tradição viva. Todos se mantêm focados na dança e no sítio onde se têm de posicionar para que tudo seja perfeito.

Marco Silva assumiu a presidência da marcha em 2013, mas desde novo que acompanha esta paixão. “Cresci a acompanhar a marcha de Marvila. A minha mãe e o meu pai foram marchantes e sempre gostei”.

Para Marco, a preparação para o desfile é a chave para o sucesso. “O projeto da marcha começa, normalmente, quase mal termina a outra, ou seja quando terminar esta marcha temos ali um mesinho de descanso. A partir daí começa-se a trabalhar, a procurar o tema, a escolher as pessoas que vão trabalhar no tema, a coreografia, os figurinos. É um processo muito longo e muito demorado”.

Os marchantes levam tudo muito a sério, começando a ensaiar cerca de um mês para se preparem para a apresentação no MEO Arena, que nesta edição de 2017 teve lugar há uma semana. “Depois, para o desfile na avenida, há sensivelmente uma semana de preparação”, explica Marco Silva. Acabam por ter de preparar duas coreografias todos os anos. “No pavilhão (MEO Arena) são cerca de 20 minutos de coreografia e na Avenida são sete, tem que haver ali um encurtamento de tempo, uma adaptação e há uma semana para ligar isso. Às vezes criar passos novos”.

Apesar do esforço, Marco garante que a adaptação não é difícil, pois têm pessoas com grande capacidade e experiência.

Neste bairro, o tema tem sempre a ver com os antepassados e a cultura de Marvila, “pois só assim é que tem sentido”, justifica o organizador. O mote escolhido para este ano é ‘Marvila desfolhada pelo tempo’ e tem por base a “cultura e história da própria freguesia”. Querem demonstrar as atividades de antigamente que foram desaparecendo com o passar do tempo, por exemplo as lavadeiras do rio.

As expectativas estão sempre altas e o principal objetivo é “fazer com que todos os marvilenses se sintam orgulhosos da marcha e daquilo que foi feito pelos marchantes. Dignificar as pessoas que queriam estar no lugar. E, claro, jogar para o primeiro lugar, pois está aqui um investimento enorme”, diz Marco Silva.

Não são só os lisboetas que participam nas festas e tradições da cidade. A aura das marchas é tão grande que até pessoas de fora se juntam a este projeto. Arnaldo Santos é professor, tem 36 anos e participa na marcha de Marvila desde 2000. “Entrei na faculdade e tinha uma colega minha de turma que era marchante na altura e que me convidou, porque eu não tenho nada haver com o bairro nem com Lisboa, mas desde o momento em que entrei que ganhei um gosto enorme por isto e nunca mais desisti”.

É como diz a canção de Amália Rodrigues: ‘Enquanto os bairros cantarem/ Enquanto houver arraiais/ Enquanto houver Santo António/ Lisboa não morre mais’.