Como diabo isto aconteceu?!

Passa um miúdo com um Ferrari. Pois. Um bólide encarnado, vistoso, as luzes aumentam de intensidade quando acelera. Faz um pião em meu redor mas sem me olhar sequer, sou um adereço, não passo de um utensílio, parte do cenário útil para o rapaz.

não lhe fico com raiva nem um pó, antes inveja. convém explicar aqui que o ferrari tem menos de meio metro e o miúdo não viola, por isso, o código da estrada. conduz o carro através de um telecomando digno de ficção científica e deixa-me saudades dum brinquedo que nunca tive.

pergunto-me como aconteceu esta viagem estranha. tanta escala desapercebida e escalada vã. por que diabo fumo um maço e meio por dia se nem sei travar o fumo como deve ser – valha-me isso, diz a médica de família – e acabo como um figurante na brincadeira duma criança desconhecida no meio do nevoeiro criado pelo davidoff? nem sequer fumava aos 20 anos e lembro-me deles como se tivessem ocorrido na semana passada. aliás, a memória é sádica. recordo muito mais.

lembro-me de como nasceu o pavor a baratas, quando gatinhei na casa açoriana com a curiosidade natural dos bebés até um cantinho do quarto onde se movia um bicho – e dele bater aquelas asas anacrónicas esquecidas por milhões de anos de evolução até aterrar por instantes na minha cara. lembro-me de consertar rádios velhos ao colo do meu avô materno, lembro-me de fazer 7 anos (ou seriam 8? 9? 10 no máximo) na terra beirã do meu avô paterno, agricultor, e este me ter deixado um conselho para sempre: ‘arranja algo que gostes de fazer e nunca mais trabalhes na vida’. os sumos de morango da minha mãe e aqueles gelados tão bons, e tão simples, que fazia no verão. jogar à bola com o meu irmão no pátio lá de casa, grandes penalidades numa final imaginária da taça dos campeões europeus, ambos a torcer em segredo para que o pai descesse do sótão e nos obrigasse a defesas impossíveis com o seu pontapé. recordo-me de quando os pais eram absolutos super-heróis. de corar ao pé das meninas bonitas, mentir de forma mirabolante para conseguir sair à noite, chorar por causa do benfica, gravar cassetes paradoxais que misturavam depeche mode no lado a com enigma no lado b, fumar o primeiro cigarro – um sg gigante tenebroso, nas costas da igreja da minha rua e ser topado pela família mal pus um pé dentro de casa. ver a série o fugitivo, a preto e branco na tv, e achar que o protagonista david janssen, do alto dos seus 35 anos, era um sábio carismático e longínquo.

recordo-me de ter suores frios com os exames e do grito do ipiranga que foi viver sozinho após aterrar em lisboa aos 18, símbolo de maioridade. achar que os finalistas de direito, 4 anos à minha frente, eram uns senhores – experientes, adultos, preparados. calcorrear a capital a pé, conhecê-la assim, desbravar a noite com tanto interesse e nenhuma explicação. sofrer de amor, convencer-me do fim do mundo. comprar um chasso como primeiro carro com dois terços do meu primeiro ordenado, e estar feliz. lembro-me de quando estava convencido de que os meus ídolos e referências profissionais eram impolutos e perfeitos (substituem provavelmente os pais na categoria de super-heróis, glória breve). recordo perfeitamente o tempo em que sabia não saber nada mas sentia-me capaz de tudo.

por isso interrogo-me como foi possível tudo isto e tanto mais, que aconteceu agora, ontem, o mês passado, tudo junto e conflituoso, em atormentado simultâneo, afinal ter demorado tanto? como, afinal, me trouxe até este dia: contas para pagar, exames médicos para fazer, pagamentos a subordinados, prazos para cumprir, responsabilidades das mais diversas, inimigos por perto e demasiados amigos tão longe? como é que fiz 35 anos sem dar por isso? sem um filho, com um divórcio pelo meio, tanta mudança profissional, sete casas diferentes, um dia mais perto dos 40 anos do que dos 30? como pode tudo ter acontecido num pestanejar do diabo, hã, diz-me, miúdo do ferrari que desapareces na esquina de sorriso orgulhoso? não deveria haver um gene da maturidade, um método natural de nos transformar verdadeiramente em adultos quando o b.i. claramente afirma que o somos, consagração inelutável, impiedosa intuição do tempo, relógios assassinos?

volta para trás. posso brincar? l

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