Doenças sem fronteiras

Em maio, os ministros da Saúde do G20 reuniram-se pela primeira vez para discutir ameaças globais, como doenças infecciosas e resistências a antibióticos. Com surtos de sarampo e hepatite A na Europa, o assunto está na ordem do dia. Esta semana, em Madrid, peritos europeus defenderam mais coordenação. 

Algumas dezenas de peritos europeus juntam-se na sala de conferências do Instituto de Saúde Carlos III, em Madrid. Em tempos, o espaço que hoje acolhe seminários era a capela do Hospital Del Rey de Madrid, fundado em 1922 para lidar com doenças respiratórias contagiosas: das sequelas da gripe espanhola de 1918 à chamada ‘praga branca’, a tuberculose. Praticamente 100 anos depois, as doenças infecciosas voltam a estar na ordem do dia e são o motivo do encontro. 

A crise do ébola em 2014 – com mais de 11 mil mortes na África Oriental e pânico em todo o mundo -, o surto de febre hemorrágica da Crimeia-Congo em Espanha, no ano passado, ou a ameaça internacional do zika servem de pano de fundo, assim como os casos de sarampo ou hepatite A, que dispararam este ano na Europa. 

Que ameaça se segue? Ninguém sabe. Carmen Varela Santos, responsável pela secção de formação em Saúde Pública do Centro Europeu de Controlo e Prevenção das Doenças, diz a certa altura que não há melhor comparação do que a teoria do ‘cisne negro’, publicada por Nassim Taleb, e que resume que o improvável está muitas vezes naquilo que não imaginamos que aconteça connosco, mesmo que depois pareça óbvio – como quando, no final do século XVII, os europeus viram pela primeira vez cisnes negros vindos da Ásia. Estar preparado para o imprevisível implica, por isso, estudar cenários, partilhar informação, ser rápido no alerta e coordenação nas respostas.

As dores de cabeça de cada país

Apesar do sentimento comum de que as doenças têm cada vez menos fronteiras, cada país tem, por agora, a sua preocupação dominante. Nos intervalos da conferência ‘Preparação, Alerta e Resposta’, organizada pelo instituto de Saúde Carlos III e pela Comissão Europeia, os diagnósticos feitos ao SOL são rápidos. A Itália, que regista o maior surto de sarampo a nível europeu (2.851 casos desde o início do ano) avançou na semana passada com a vacinação obrigatória de crianças em idade escolar, o debate que também surgiu em Portugal depois de terem sido registados os primeiros casos de contágio a nível nacional em 12 anos e de três anos sem qualquer registo da doença no país, o que tinha levado a Organização Mundial de Saúde a declarar a doença erradicada por cá. 

Maria Grazia Dente, especialista do Insittuto Superiore di Sanità Viale Regina Elena, em Roma, acredita, porém, que no que toca a desafios transfronteiriços, a saúde dos migrantes deve estar no topo das atenções. «Não porque trazem doenças, mas porque vão aumentar as bolsas de população mais vulnerável nos países, que estão mais suscetíveis a problemas de saúde, o que pode aumentar as iniquidades ao nível da saúde», explica. 

Christos Hadjichristodoulou, professor de Higiene e Epidemiologia na Universidade de Tessália, na Grécia, admite que a chegada de refugiados e imigrantes à Europa requer maior proatividade na resposta dos serviços de saúde, mas não desvaloriza o potencial impacto na importação de algumas doenças – o que é neste momento uma das grandes preocupações no seu país. «Pessoas que vêm de países onde a malária é endémica podem trazer o parasita. Estão saudáveis, não têm sintomas, mas como não tiveram acesso aos tratamentos adequados podem ter uma recaída e aí transmitir a doença, infetando os mosquitos que temos no país e que são capazes de passar a malária», diz. «Até três anos depois de chegarem isto pode acontecer».

 A solução, explica Hadjichristodoulou, é detetar qualquer caso o mais depressa possível. Estão a formar equipas comunitárias para irem junto dos migrantes, sensibilizá-los para os sintomas como vigiar a febre e, perante suspeitas, procurar tratamento. 

Mais do que nos potenciais portadores dos vírus ou parasitas, que acabam poder ser qualquer viajante que chegue à Europa de um destino endémico, o problema está também no alastrar das populações de mosquitos capazes de servir de ‘vetores’ (agentes transmissores) destas doenças durante anos consideradas tropicais, fenómeno que tem sido ligado às alterações climáticas. O Aedes abopictus, mosquito da Ásia e que pode transmitir dengue ou chikungunya, há dois anos só tinha descido a costa do mediterrâneo até Barcelona e agora já foi detetado em Tarifa. 

Com este problema em mãos, Espanha prepara-se para enfrentar uma prova de fogo noutra frente. No final deste mês, o país que regista até ao momento o maior contágio de hepatite A (1539 casos desde o início do ano), sobretudo entre homens que têm sexo com homens vai receber o WorldPride, o maior festival LGBT do mundo. São esperados dois milhões de participantes em Madrid, no que pode ser um momento decisivo no controlo (ou não) dos novos surtos desta doença que até aqui chegava à Europa sobretudo através de viajantes que ingeriam comida ou água contaminada na América Latina ou África. No verão passado, episódios de transmissão sexual associados a eventos LGBT iniciaram cadeias de contágio que chegaram a vários países europeus, incluindo Portugal. 

Elena Andradas, diretora geral espanhola de Saúde Pública, admitiu ao SOL que o evento é o centro das atenções das autoridades de saúde espanholas e garante que nunca puseram a hipótese de pedir que fosse cancelado. Como lida com a pressão? «Estamos a planear a resposta e a articular com associações e outros países há dois meses», sublinha a responsável, acrescentando que a vacinação dos participantes é a melhor medida de prevenção. 

As resistências a antibióticos lideram as preocupações de outros países que não têm sido tão fustigados com os surtos mais recentes em solo europeu. É o caso da Holanda. «É a grande ameaça que vemos», diz Aura Timen, responsável pelo Centro de Controlo de Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde Pública do país. Não porque estejam mal na fotografia europeia, mas porque existe a noção de que uma maior circulação de pessoas e mercadorias pode aumentar o risco e cada vez há mais tratamentos que fracassam: este ano a Organização Mundial de Saúde publicou uma lista de bactérias que precisam urgentemente de novos antibióticos. 

Esta é também a preocupação da Islândia, explica Iris Marelsdottir, do Departamento da Saúde do país. Como os animais da ilha viveram anos isolados, temem que acabem por ser dizimados caso sejam apanhados por doenças e bactérias provenientes de importações de gado de países com mais níveis de resistências. No caso da saúde humana, as bactérias vivem muitas vezes dentro do organismo sem se manifestarem, mas perante uma cirurgia ou doença em que o sistema imunitário fique mais debilitado, podem causar uma infeção. Mesmo que um país não tenha uma grande incidência de bactérias resistentes a antibióticos, um viajante que precise de cuidados médicos pode gerar um pequeno surto hospitalar.

Como pagar o preço da globalização 

No encontro, discutiram-se os avanços no planeamento e gestão de risco, mas também a sensibilidade política que é preciso ter para gerir cada incidente. 

Um sinal positivo foi a primeira reunião de ministros da Saúde na história do G20, que teve lugar em maio em Berlim, assinalou Maria an der Heiden, do Instituto Robert Koch, na Alemanha. Dessa reunião saiu uma declaração de apoio ao trabalho da Organização Mundial de Saúde e à cooperação na respostas aos problemas globais, das doenças infecciosas à resistência a antibióticos. 

A investigadora deu como exemplo de cooperação um projeto europeu em que participou nos últimos anos, que traçou novas orientações para que as tripulações saibam como lidar com casos suspeitos de doença infecciosa a bordo de um avião – até aqui, as recomendações estavam dispersas e hoje podem ser consultadas no site do projeto AIRSAN.

Em paralelo, teve lugar um projeto idêntico para os portos. Christos Hadjichristodoulou, que esteve envolvido no SHIPSAN, vê na adoção de regras comuns na Europa uma das formas de, no futuro, mitigar os riscos – e acredita que nestes aspetos mais técnicos era possível haver uma uniformização. «Os parâmetros inspecionados não podem variar de porto para porto», diz. 

Noutras matérias, a diversidade europeia é grande: cada país tem, por exemplo, o seu esquema de vacinação e a Comissão Europeia não tem competências para impor um calendário uniforme, apenas para dinamizar cooperação perante ameaças transfronteiriças. 

Ainda assim, nos últimos anos Bruxelas subiu a fasquia. Em 2013, uma decisão sobre este tipo de ameaças ditou novos sistemas de alerta rápido, planos obrigatórios por parte dos países e um novo instrumento de ‘procuração conjunta’, que permite aos Estados Membros unirem-se para, por exemplo, comprarem em conjunto vacinas numa situação de emergência. E já está a ser finalizado um primeiro esboço de procuração para a eventualidade de uma nova gripe pandémica, como a gripe A em 2009. Na altura, cada país acabou a negociar a compra de doses em cima do acontecimento, com mais luta por quotas do que cooperação. 

Com o planeamento como pilar, dominar a comunicação de risco é outro desafio. Da Holanda e da Grécia chegam os estudos mais detalhados, com sondagens feitas à população no decurso da gripe A ou do ébola a mostrar que as notícias de mortes fazem disparar o grau de preocupação popular e que a confiança no Governo é também uma das variáveis que oscila num cenário destes. E os políticos confiam nos peritos ou reagem em função da pressão? A pergunta de Júlio Vásquez, do Centro Nacional de Microbiologia de Espanha, espicaçou e foi Hadjichristodoulou que respondeu. «É uma questão de confiança mútua. A melhor maneira de eles confiarem em nós é dar-lhes a melhor evidência e não jogar o jogo da política. Se fizermos isso, mesmo que não gostem do que ouvem, estamos no bom caminho». 

No horizonte está perceber se estas novas ameaças serão mitigadas ou se as doenças infecciosas tornarão a roubar protagonismo e a competir por meios e recursos que nas últimas décadas se pensava que teriam de ser ‘desencantados’ em algum lado e mobilizados para as doenças crónicas. 

Maria Grazia Dente não acredita que chegue a esse ponto: o envelhecimento da população, que traz mais doenças prolongadas, é incontornável. Mas uma coisa é certa, explica. Se não conseguirmos, enquanto sociedade, travar doenças que são por vezes prevenidas com uma simples vacina ou uso racional de antibióticos, dificilmente será possível inverter obesidade ou diabetes, que implicam uma mudança muito mais profunda no estilo de vida.

O SOL esteve em Madrid com o apoio da Comissão Europeia