Ao carregar-se no botão ‘demo’, o piano tocava sozinho vários clássicos, entre os quais o Liebestraum n.º3 (sonho de amor), que eu depois tentava reproduzir de ouvido. Desde então não tenho parado de explorar a música maravilhosa deste compositor húngaro, desde as eletrizantes rapsódias húngaras à sua última obra, uma peça enigmática intitulada Nuages Gris (Nuvens Cinzentas).
Recentemente, descobri que a sua vida é tão apaixonante como a sua obra.
Liszt foi uma espécie de estrela rock do seu tempo. Com os cabelos pelos ombros, gestos teatrais e uma técnica assombrosa, levava plateias ao êxtase por toda a Europa – em particular as senhoras… Conta-se que certa vez, antes de um recital, deixou as luvas na borda do palco e as fãs envolveram-se numa disputa acesa, acabando as luvas por ficar desfeitas em mil bocados. Noutra ocasião, no final de um concerto, desmaiou sobre o piano – não se sabe bem se perdeu mesmo os sentidos, se foi para acentuar o efeito dramático.
Pianista-prodígio, aprendeu com o pai e com o maior professor de então, Carl Czerny, que o aceitou sem cobrar pelas lições – algo que Liszt também faria mais tarde. Um dia, quando tinha oito anos, o professor levou-o a visitar o seu ídolo, o grande Beethoven, e o pequeno teve a ousadia de perguntar:
«Posso tocar qualquer coisa composta por vós?». O que se passou a seguir é um dos momentos lendários da história da música: «Antes de acabar, Beethoven agarrou-me a cabeça com as duas mãos, beijou-me na testa e disse docemente: ‘Avante! Sois um dos afortunados. Porque trareis alegria e felicidade a muitos’».
O episódio é contado no livro de Malcom Hayes, Liszt, da excelente coleção Vida e Obra da Naxos editada em Portugal pela Bizâncio. Hayes conta também como em 1838, depois de enriquecer, Liszt abandonou abruptamente os palcos – tocando apenas em privado ou para efeitos de caridade.
Habituado a viver um condições luxuosas, um dia, no início da década de 1860, foi visitar um amigo padre a um mosteiro dominicano de Roma e ali ficou a viver durante cinco anos. Chegou a receber as ordens menores – que, explica o autor, «lhe conferiam a possibilidade de renunciar em qualquer momento» – mas a espiritualidade e o brilho mundano nunca deixaram de conviver no seu espírito. Nem na sua música, que tanto pode exprimir o mais puro sentimento religioso, como a euforia de uma bebedeira.