A vida apaixonante de um génio

Ouvi a música de Franz Liszt pela primeira vez já lá vão uns 25 anos, quando os meus pais me compraram um piano eletrónico que me deu muitas horas de prazer (e porventura algumas dores de cabeça aos vizinhos).

 Ao carregar-se no botão ‘demo’, o piano tocava sozinho vários clássicos, entre os quais o Liebestraum n.º3 (sonho de amor), que eu depois tentava reproduzir de ouvido. Desde então não tenho parado de explorar a música maravilhosa deste compositor húngaro, desde as eletrizantes rapsódias húngaras à sua última obra, uma peça enigmática intitulada Nuages Gris (Nuvens Cinzentas).

Recentemente, descobri que a sua vida é tão apaixonante como a sua obra.

Liszt foi uma espécie de estrela rock do seu tempo. Com os cabelos pelos ombros, gestos teatrais e uma técnica assombrosa, levava plateias ao êxtase por toda a Europa – em particular as senhoras… Conta-se que certa vez, antes de um recital, deixou as luvas na borda do palco e as fãs envolveram-se numa disputa acesa, acabando as luvas por ficar desfeitas em mil bocados. Noutra ocasião, no final de um concerto, desmaiou sobre o piano – não se sabe bem se perdeu mesmo os sentidos, se foi para acentuar o efeito dramático.

Pianista-prodígio, aprendeu com o pai e com o maior professor de então, Carl Czerny, que o aceitou sem cobrar pelas lições – algo que Liszt também faria mais tarde. Um dia, quando tinha oito anos, o professor levou-o a visitar o seu ídolo, o grande Beethoven, e o pequeno teve a ousadia de perguntar:

«Posso tocar qualquer coisa composta por vós?». O que se passou a seguir é um dos momentos lendários da história da música: «Antes de acabar, Beethoven agarrou-me a cabeça com as duas mãos, beijou-me na testa e disse docemente: ‘Avante! Sois um dos afortunados. Porque trareis alegria e felicidade a muitos’».

O episódio é contado no livro de Malcom Hayes, Liszt, da excelente coleção Vida e Obra da Naxos editada em Portugal pela Bizâncio. Hayes conta também como em 1838, depois de enriquecer, Liszt abandonou abruptamente os palcos – tocando apenas em privado ou para efeitos de caridade.

Habituado a viver um condições luxuosas, um dia, no início da década de 1860, foi visitar um amigo padre a um mosteiro dominicano de Roma e ali ficou a viver durante cinco anos. Chegou a receber as ordens menores – que, explica o autor, «lhe conferiam a possibilidade de renunciar em qualquer momento» – mas a espiritualidade e o brilho mundano nunca deixaram de conviver no seu espírito. Nem na sua música, que tanto pode exprimir o mais puro sentimento religioso, como a euforia de uma bebedeira.