“Os portugueses são os melhores vizinhos que se pode ter”

Quem o diz é Julie, uma das muitas inglesas que escolheram Pedrógão para viver. Toda a zona Centro do país está cheia de estrangeiros que, mesmo depois do caos, conseguem ver aquilo que os fez trocar de morada: sol, paisagem e os portugueses, “os melhores do mundo”

Do pouco português que fala, Julie Jennings safou-se com três palavras: “fogo”, “casa” e “bombeiros”. Quando as labaredas começaram a descer o monte perto de sua casa “como se fossem um tsunami”, a inglesa abandonou tudo para se salvar. Bom, quase tudo. “Não podia deixar o Ned para trás”, explica enquanto abre a cancela onde dorme o burro que a acompanhou na jornada do último sábado. Já Tess, a cadela, fugiu com Cris, o marido de Julie, para quem o incêndio está demasiado presente para palavras. “Separámo-nos no meio da confusão, fugi para o rio e, quando tinha água até à cintura, só pensava ‘a minha mulher morreu’.” Mas não. Julie salvou-se, assim como toda a vizinhança da aldeia de Salaborda que, nas palavras deste casal inglês, é a melhor do mundo. “Os portugueses são os melhores vizinhos que se pode ter”, exclama Julie. Com as mãos no peito que parecem segurar as lágrimas, e mesmo com um cenário negro a circundar a casa rodeada de horta e animais – “o meu sonho” –, a inglesa dá graças por há dois anos, de todos os lugares do mundo, ter escolhido esta aldeia do interior português. “Vimos uma reportagem sobre Pedrógão na televisão e decidimos vir ver como era ao vivo”, conta Cris, que apesar de viver em Lake District, com o verde e os rios que Pedrógão também lhe dão, precisava do calor para se sentir bem.

A natureza, aliada ao sossego e à hospitalidade, são pontos comuns no discurso de quem veio de fora e escolheu a região Centro do país como morada. São às centenas os estrangeiros que vivem neste quadrado cujos vértices são Pedrógão, Ferreira do Zêzere, Pampilhosa da Serra e Proença-a-Nova. E nenhum com quem o i se cruzou mostra vontade de voltar. “Se a minha casa ardesse em Inglaterra, eu ia fugir para França?” A pergunta é retórica, já sabemos, assim como o é a resposta sobre se algum dia a aldeia vai voltar a ser aquela que eles viram na televisão. “Claro que sim, e nós vamos estar cá para vê-la reerguer-se.”

A mercearia internacional Mesmo com poucas palavras trocadas na mesma língua, a comunidade interage sem barreiras. E só mesmo quando as saudades dos assados, das papas de aveia ou dos molhos pouco saudáveis aperta é que os ingleses e alemães saem do ninho para ir a Avelar. A mercearia do Toni é a única num raio de centenas de quilómetros que tem uma prateleira dedicada a produtos internacionais. “Quando abri a loja, há dez anos, percebi que ninguém via na presença de estrangeiros aqui uma fonte de rendimento”, conta. Foi aí que começou a importar produtos e é atualmente o único distribuidor das redondezas. Além de os ajudar na hora de fazerem uma refeição caseira, Toni aproveita o inglês que herdou dos anos na escola para os orientar quando o tema é burocrático. No entanto, desde o último fim de semana que, em vez de dar indicações sobre onde é o tribunal ou a solicitadora, se viu obrigado a orientar para hospitais ou para o posto de comando quem perdeu tudo. Além disso, alertou as autoridades para a falta de uma linha de apoio internacional para que quem está longe pudesse avisar os familiares de que, no meio do caos, o importante estava a salvo. “Uma vida é uma vida, fale ela português ou inglês.”

Solidariedade sem igual Se Toni consegue encontrar falhas na ajuda prestada aos estrangeiros, da boca de quem viveu o drama na pele só saem elogios. “Tenho dúvidas se em Inglaterra teriam esta solidariedade.” Liz vive na aldeia de Rabigordo há dois anos e meio, o suficiente para chamar casa a esta comunidade.

No dia do fogo, o calor, que já não fazia adivinhar um desfecho feliz, fez com que descesse até ao rio com um amigo. O problema foi o regresso. “De repente era como se fosse meia-noite”, conta ao lembrar-se do momento em o fogo queimou os cabos que ainda hoje não permitem que tenha eletricidade em casa. Fugiram como puderam, sem deixar para trás Bambo, o golden retriever que a leva a preferir dois dias de carro a duas horas de avião sempre que volta a Inglaterra para visitar a família.

Num sábado ainda demasiado próximo para se dizer que já passaram cinco dias, a casa onde agora a encontramos a limpar a fuligem que o incêndio deixou não era mais que uma bola de fumo. Foi ainda com a roupa de praia que se fez à estrada até encontrar um local seguro. “Parei num restaurante e a dona, do mais amoroso que há, recusou-se a aceitar dinheiro pela refeição e ainda me deu creme para as queimaduras do sol.” A voz embargada é o espelho de “uma gratidão que não tem fim”.

Em sua casa não faltaram vizinhos a oferecer comida, Proteção Civil a perguntar se estava tudo bem e até veterinários para saber se Bambo precisava de ajuda. É por isso que, das janelas abertas para um cenário negro, Liz consegue ver para além do caos. “Foi a pior coisa que me aconteceu na vida, mas serviu para ver que o mundo ainda é um lugar bom.”