Daniel Day-Lewis. Sair do cinema antes de o filme chegar ao fim

Vencedor de três Óscares de melhor ator, Daniel Day-Lewis vai retirar-se do cinema aos 60 anos sem explicar porquê. Filho de poeta e atriz, brilhou no cinema mas foi no teatro que aprendeu a representar. Em 1989 deixou os palcos. Agora, sai como passou parte do tempo. Em silêncio

Como ele havia poucos. Daniel Day-Lewis pertencia a uma classe cada vez mais rara de personalidades seletivas que olham para a arte como um quadro de Picasso. Há atores para quem um romance de domingo à tarde é como um filme de Bergman. Porque, costumam dizer, acima de tudo está a representação.

Sir Daniel Michael Blake Day-Lewis era mais elitista. De há 20 anos para cá, uma mão-cheia de filmes foi quanto bastou para sustentar a lenda – o sexto, “Phantom Thread”, de Paul Thomas Anderson, estreia-se em dezembro e motivará uma vaga de entusiasmo por ser o derradeiro. Nesse período, cada filme tinha de esperar por um mini-intervalo até a próxima personagem ganhar vida. Reservado, dava poucas entrevistas. E vê-lo em público passou a ser tão raro como projetado.

Agora, na hora da despedida, escolheu o caminho da coerência. Em silêncio, disse adeus. “Daniel Day-Lewis não vai trabalhar mais como ator. Está imensamente grato a todos os seus colaboradores e público ao longo dos anos. Esta é uma decisão privada e nem ele nem os seus representantes vão fazer mais comentários sobre o assunto”, anunciou a porta-voz Leslee Dart. Há razões que nem a razão conhece, mas ele deve sabê-las.

Não é o primeiro, nem será o último mas. Nos últimos anos, o Passeio da Fama confunde-se com um panteão de estrelas da sétima arte. Steven Soderbergh, Ken Loach e Jack Nicholson escolheram a porta da saída. David Lynch também, insatisfeito com a indústria do cinema, escolhendo a via cada vez mais atrativa da televisão e das séries. Vinte e cinco anos depois da morte de Laura Palmer, “Twin Peaks” ressuscitou e o mistério vive à conta dos fantasmas de cada um. Outros, como Sean Connery e Gene Hackman, reformaram-se no final da carreira sem nunca o confessarem publicamente. Hugh Grant ameaçou, mas a vocação não o deixou enterrar o ofício. E o medo assumido do palco foi vencido. Entre os casamentos e o funeral, conservou o anel.

Para a maioria dos atores, não existe terceira idade ou caixa de aposentação porque trabalham por gosto ou precisam do dinheiro. Para Day-Lewis, o livre–arbítrio foi um cartão de crédito de plafond infinito.

Em 1989 deixara os palcos durante uma representação de “Hamlet” no Teatro Nacional de Londres por ter julgado ver o espírito do pai, o reconhecido poeta inglês Cecil Day-Lewis. Os dois nunca foram próximos. Daniel nasceu quando o pai já tinha 53 anos. Quando Cecil marcou encontro com Deus, aos 68, só deixou descendência e inspiração. Tristeza, não.

Na história da Academia, ninguém tem mais Óscares no palmarés do que Day–Lewis. Três por “O Meu Pé Esquerdo” (1989), “Haverá Sangue” (2008) e “Lincoln” (2013). E podiam ser uma mão- -cheia, caso não tivesse perdido para Tom Hanks pelo papel em “Filadélfia” em 1994 e para Adrien Brody pelo desempenho n’“O Pianista” em 2003. Os prémios dão expressão ao reconhecimento mas, para quem a cultura é coisa nobre e o cinema a extensão da vida em ecrã completo, as estatuetas ficam para a posteridade e só deixam o sabor a champanhe no copo.

Para trás ficaram outras personagens marcantes em “A Idade da Inocência”, o índio d’“O Último dos Moicanos” ou o homossexual fascista subversivo de “A Minha Bela Lavandaria”.

Há uma coisa que não leva para contar aos netos: o que é ser criticado. Bajulado pela Academia, admirado pelo público, percorreu um caminho quase sem mácula e à prova de qualquer suspeita ou escolha duvidosa.

É o momento oportuno para recapitular porquê. Filho de Cecil Day-Lewis e da atriz Jill Balcon, cresceu com a irmã mais velha, Tamasin Day-Lewis, mais tarde uma cineasta reconhecida, documentarista e personalidade televisiva. Frequentou a escola pública, mas deixou o ensino com 13 anos. Ganhou um papel em “Domingo Sangrento”, de 1971, mas foi no teatro que se formou como ator. Estudou nas melhores companhias britânicas, como a Old Vic e a Royal Shakespeare Academy, onde o talento lhe foi reconhecido e burilado.

Consciente dos horizontes mas também dos limites, aguardou até se sentir preparado para voltar à televisão, em 1981. E um ano depois chegaria o primeiro grande desafio. “Ghandi”, com Ben Kingsley no trono, uma biografia visual do líder espiritual. A vida de Daniel Day–Lewis foi um filme passado à frente das câmaras. E agora como será, com o ecrã escuro?