Reportagem polémica abre discussão sobre limites

A polémica em torno de uma reportagem de Judite de Sousa em Pedrógão Grande fez com que a ERC recebesse mais de 100 queixas e abrisse um inquérito à forma como a TVI fez a cobertura da tragédia que provocou 64 mortos e 204 feridos.

Mal foi dado o alerta de que o incêndio de Pedrógão Grande ganhava contornos de tragédia, todos os órgãos de comunicação social enviaram equipas de reportagem para o local. E as televisões, em particular os canais de informação, praticamente não desligaram mais do teatro das operações.

O caso mais sui generis, em termos informativos, terá sido a  ‘notícia’ da queda de um canadair – que a Agência EFE levou escassos minutos a desmentir tratar-se de um aparelho espanhol – e que a Proteção Civil demorou duas horas a afiançar que, afinal, se tratava de uma falsidade.

Mas a polémica maior estava reservada para uma reportagem da TVI, da autoria de Judite de Sousa.

Porquê? Porque a jornalista começa a peça junto ao cadáver de uma das vítimas, coberto por um lençol, com uma névoa de fumo e o céu com um tom alaranjado devido ao incêndio.

Pacheco Pereira foi dos primeiros a, publicamente, não poupar nas críticas. Para o comentador e ex-deputado, a comunicação social gosta deste tipo de matérias, porque dão audiências, mas a situação é inaceitável. «É uma espécie de masturbação da dor», rematou Pacheco Pereira.

A mesma opinião tem o psicólogo Mauro Paulino, que quem «o que aconteceu com a Judite é um sintoma de que algo precisa de ser repensado na comunicação social», afirmou ao SOL.

Os órgãos de comunicação social servem para informar, mas dentro de certos limites.

Os «limites à informação que devem ser tidos em conta pelos órgãos de comunicação social são os constantes das disposições legais e regras deontológicas aplicáveis», como frisa a Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC).

A ERC recebeu mais de 100 queixas contra a reportagem de Judite de Sousa e a transmissão da imagem onde aparecia um dos cadáveres da tragédia. E deu sequência a essas queixas, abrindo inquérito. «A atividade de supervisão e de regulação da ERC não ocorre em função de receber muitas ou poucas queixas. A ação da ERC pode partir da sua própria iniciativa, ou então ocorrer no seguimento de uma ou mais participações que receba», referiu ao SOL_um membro do regulador.

A decisão de abrir ou não um processo é tomada pelo Conselho Regulador da ERC, podendo resultar de diferentes motivos, dependendo dos casos: «O Conselho decide essa abertura por considerar que poderá estar em causa um comportamento suscetível de configurar violação de direitos, liberdades e garantias ou de quaisquer normas legais ou regulamentares aplicáveis às atividades de comunicação social».

Arons de Carvalho, especialista em ética e deontologia da comunicação e ex-membro do regulador da Comunicação Social, afirmou ao SOL que face ao clamor que houve sobre as imagens da TVI, a ERC deveria sempre  «abrir um procedimento oficioso, pois é o que acontece sempre que há situações onde há um número elevado de queixas».

«Agora trata-se de estudar, ver as imagens e de refletir sobre elas», concluiu.

Naturalmente, a TVI tomou posição e, após ser notificada da abertura do inquérito, defendeu a reportagem emitida e a jornalista em causa. A estação de Queluz não aceita ‘lições de ninguém’ acerca das sensibilidades profissionais, sustentaram os seus responsáveis em comunicado.

Mauro Paulino chama a atenção que quando ocorreu o 11 de setembro vários estudos demonstraram que algumas pessoas que viram as imagens das torres gémeas pela tv «revelaram uma sintomatologia semelhante aquela que as pessoas que estavam lá manifestaram».

O especialista acrescenta que estes comportamentos, de pessoas que vivem os acontecimentos pelas imagens da tv ou da internet, «são quase como se fossem perturbações de stresse pós-traumático associadas àquelas imagens traumáticas».

O psicólogo acrescentou ainda que «qualquer imagem num contexto traumático associada às vulnerabilidades prévias que as pessoas possam ter, pode suscitar respostas mais agudas de stresse».

Por isso, a deliberação da ERC deve sempre medir as consequências das imagens no público. «Há aqui duas variáveis ou dois eixos de análise: aquilo que é imagem e depois o recetor dessa imagem», sublinha Mauro Paulino, acrescentando que  a função de informar tem de ser doseada e pensada em função daquilo que é o seu objetivo.

É preciso ter em conta o conteúdo e a quantidade de vezes que as imagens são passadas, pois se o objetivo é informar e sensibilizar as pessoas, transmitir a mesma imagem repetidamente pode ter o efeito contrário do que se pretende com a informação.