Não consigo voltar

Como é que o mundo podia continuar depois daquilo? Como é que ainda havia música depois de eu ouvir aquele silêncio – sem vento, sem vida. Como é que ainda havia notícias que não as vindas dali; como é que ainda se jogava à bola e se sorria; como é que se comentava futebol ou…

Estava a beber uma cerveja. Eram três da manhã de sábado, em Lisboa. O telefone tocou e eu não sabia. «Tens que ir para Pedrógão». E fui. Para a minha primeira reportagem de incêndio com a equipa mais jovem daquele posto de comando. Nada nos prepara para o que vimos. Não é por egoísmo que o conto, é por não ter outro modo de o contar. \

O que vi ali, aquela tragédia, aquela perda humana, foi vista pelos meus olhos. Conto-a, aqui, não como análise política, não como reportagem, mas como testemunho. Como única coisa que consigo escrever – e em que não consigo pensar devidamente – desde que lá estive. Desde que vi uma família que esperou anos para conseguir uma criança chorá-la, de apenas quatro anos. Desde que vi as jantes derretidas dos carros que o fogo carbonizou. Desde que ouvi aquele homem, mais velho que o meu pai, dizer-me que perdeu tudo. Os animais, o trator, as terras, o vizinho, a casa.

Não há conectores de parágrafos, vírgulas bem colocadas, frases que se liguem. Não se pensa em escrever sobre isto. E eu continuo sem conseguir pensar no que vi. Naquele planeta inferno, sem rede, sem luz, sem água. Onde as omoplatas do cadáver estavam presas ao alcatrão pelo calor das chamas. Onde as pessoas aguentam as lágrimas para as cinzas que lhes sujaram o rosto não entrarem para os olhos.

Guiava eu, entre postes de eletricidade caídos e troncos na estrada. Para combater a banda sonora das sirenes, que eram tudo menos ensurdecedoras, ligámos o rádio e abrimos as janelas. Ninguém dizia nada. Acabei a sentir repulsa pela música. Como é que o mundo podia continuar depois daquilo? Como é que ainda havia música depois de eu ouvir aquele silêncio – sem vento, sem vida. Como é que ainda havia notícias que não as vindas dali; como é que ainda se jogava à bola e se sorria; como é que se comentava futebol ou a América; como é que o mundo continuava quando ali estava parado ou a voltar para trás?

Parámos o carro em Castanheira de Pêra e, à janela, um local contou-nos o que perdera e o medo que tinha que se repetisse. Um bombeiro voluntário bebia água e lavava-se no lago de uma rotunda, suja de cinzas e morna do calor. Várias vezes a humanidade vence o ofício perante isto, perante a impossibilidade de fazer algo que não dizer «obrigado». Àqueles heróis, de interminável coragem. Voltei para Lisboa, para a Agência do Medicamento, para o Eurogrupo e para Centeno, para a distrital do PSD. Elas voltaram, outros ficaram, e um pedaço de nós também lá está. Acho que vai ficar sempre. Quero muito esquecer Pedrógão, mas que quem tem que o fazer não repetir-se nunca esqueça.

Voltei e ainda não consegui ouvir uma música; continua tudo quieto, sem conseguir ver felicidade num mundo que fez aquilo a si próprio. Não é lá que não consigo voltar. Não consigo é voltar para casa. Para as cervejas de madrugada, para a normalidade onde há água, os telefones funcionam e as famílias não desaparecem. Para a normalidade em que o arbítrio da morte não é o quotidiano.Nestas alturas, oiço sempre um estúpido perguntar na sala: «Onde estava Deus quando aquela gente toda morreu?». Hoje, esse estúpido sou eu. À D. e à B.