O testemunho-chave

A agência Fitch acabara de melhorar a perspetiva do rating português, o Ecofin confirmara a saída de Portugal do Procedimento por Défice Excessivo, o INE ratificara o crescimento de 2,8% no 1º trimestre, Schäuble voltara a chamar Ronaldo a Mário Centeno. O país estava no seu ponto mais alto dos últimos anos. Foi neste ambiente…

A agência Fitch acabara de melhorar a perspetiva do rating português, o Ecofin confirmara a saída de Portugal do Procedimento por Défice Excessivo, o INE ratificara o crescimento de 2,8% no 1º trimestre, Schäuble voltara a chamar Ronaldo a Mário Centeno.

O país estava no seu ponto mais alto dos últimos anos.

Foi neste ambiente de festa que desabou sobre Portugal a maior catástrofe de que há memória nos tempos recentes.

E desabou literalmente, sob a forma de um raio seguido de um vento ciclónico que ateou um fogo nunca visto, ajudado ou não por mão criminosa.

A trovoada seca, a fúria do vento, um calor tremendo e talvez a maldade humana aliaram-se subitamente – e foi como se uma bomba caísse na região.

O que mais me impressionou nas transmissões televisivas – e não devo estar sozinho nesse sentimento – não foram as imagens do fogo nem sequer o desespero das pessoas; o que mais me impressionou foi a perspetiva de uma estrada ladeada de árvores queimadas, vendo-se no asfalto carcaças de carros calcinados – um aqui, dois ali enfaixados, outros atirados contra os rails; e, espalhados ao longo do percurso, uns volumes tapados com cobertores, presumivelmente cadáveres queimados.

As imagens eram a cores, mas pareciam a preto e branco; tudo perdera a cor: só havia preto, branco e cinzento.

Era a EN236, que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos Vinhos.

Parecia um cemitério, ou antes, era pior que um cemitério – pois era a própria representação da morte.

Nesta estrada perderam a vida 47 pessoas.

Ao ver aquelas imagens terríveis interroguei-me: o que estariam a fazer ali aqueles carros?

O que pretenderiam aquelas pessoas?

Teriam ido lá por curiosidade, atraídas pelas notícias do incêndio?

Uma coisa era certa: aquelas pessoas não deveriam estar naquele local, naquela altura.

Mas quem as teria encaminhado para ali: elas próprias ou terceiros?

Quando estava mergulhado nestas dúvidas, ouvi um depoimento inesperadamente revelador. 

Uma mulher dos seus 60 anos, com um pano a cobrir o ombro esquerdo, presumivelmente queimado, fez um relato muito preciso e objetivo, apesar da sua condição humilde. 

Explicou que ela, o marido e uma terceira pessoa iam de carro em socorro do pai, que estava em perigo, e de bens próprios ameaçados pelo fogo.

Pretendiam ir para o IC8, mas «a Guarda» impediu-os, mandando-os «seguir em frente». 

Obedeceram.

Uns 5 Km adiante, porém, depararam-se com um fumo espesso e árvores a cair, não se via nada, o carro embateu contra um rail e a seguir foi abalroado por outro – incendiando-se de imediato. 

Ela saiu do carro, o calor era insuportável, caíam pinhas das árvores em chamas, veio ao seu encontro uma mulher que lhe disse que iria morrer ali com eles – mas puseram-se a andar, ela pedia ajuda a Nossa Senhora, foram pela valeta, caíam e levantavam-se, viram corpos a arder dentro dos carros, mas salvaram-se.

Este depoimento é fulcral, pois revela que foi a Guarda, certamente com a melhor das intenções, que mandou esse carro – e vários outros, conforme a mulher referiu – em direção ao inferno.

Ora, isto é de uma gravidade extrema. 

A GNR explicou depois que «o fogo atingiu a estrada de forma absolutamente inusitada e repentina», que «surpreendeu todos». 

Acreditamos que tenha sido assim.

Mas isso pode ser dito em qualquer incêndio. Há sempre imponderáveis, desenvolvimentos inesperados. 

A questão é que, nestes momentos, as forças da ordem têm de prever todos essas hipóteses, pois não podem falhar.

O Presidente da República, o primeiro-ministro, os responsáveis operacionais apelaram repetidamente às populações para que respeitassem as indicações das autoridades.

Ora, como podem as pessoas acreditar nas autoridades quando são elas próprias a encaminhar as pessoas para a morte?

Este lapso não poderia ter acontecido!

Até porque, pelos relatos dos sobreviventes, percebeu-se que as chamas já estavam dos dois lados da estrada, tendo obrigação de o saber quem estava a orientar as operações.

Houve centenas de bombeiros que se comportaram como heróis – e que ficarão para sempre incógnitos.

Houve centenas de pessoas que trabalharam até à exaustão física e psicológica (e mesmo para lá dela), outras que arriscaram a vida sem pedir nada em troca.

Tudo isso deve ser valorizado.

Mas no meio desses gestos é preciso haver quem mantenha a cabeça fria para tomar as decisões certas.

Para coordenar o trabalho e para prestar às populações as melhores informações.

Ora, nesse particular, a informação falhou redondamente.

Uma informação errada tornou em boa parte inglório o esforço gigantesco de todos os outros.

Em pouco mais de 100 metros de estrada morreram três quartos do total dos mortos no incêndio que varreu dezenas de milhares de hectares.

Se não fosse esse erro, haveria 17 vítimas a lamentar e não 64.  

Quanto aos políticos, quero dizer duas coisas.

Tenho sido muito crítico em relação a Marcelo Rebelo de Sousa, mas julgo que nesta tragédia esteve bem – ao ser a segunda figura do Estado a chegar à zona.

Só é pena que a banalização das suas deslocações – em virtude da quantidade de eventos em que participa – tenha tirado impacto e significado à presença do Presidente da República naquele local.

António Costa também fez bem em dirigir-se primeiro ao centro de coordenação de Carnaxide, e só depois ao cenário da tragédia.

E o secretário de Estado Jorge Gomes, que foi o primeiro a dar notícias do horror, merece o nosso respeito, extensivo à ministra Constança Urbano de Sousa, que faz um evidente esforço para enfrentar as câmaras. 

Mas a que propósito apareceram outros políticos a falar: o representante desta e daquela entidade, os líderes partidários, etc.?

Porquê e para quê?

Julgo que nestes momentos deveriam aparecer apenas os responsáveis máximos do Estado – o Presidente, o chefe do Governo e o titular da pasta – e depois os operacionais, a explicar com fundamento e conhecimento de causa o que se passou.

Os políticos que não têm funções públicas nem competências técnicas deveriam desaparecer nestas alturas.

Para terminar, quero dizer que nunca em circunstâncias idênticas defendi demissões.

Manifestei-me contra a demissão de Jorge Coelho após a queda da ponte de Entre-os-Rios.

Perante uma catástrofe, o que os responsáveis políticos têm de fazer é, primeiro, enfrentá-la,  depois apurar o que correu mal – e finalmente empenhar-se em corrigir os erros. 

Ora o que geralmente se passa em Portugal é o contrário: os responsáveis demitem-se mas os erros persistem – até à próxima catástrofe.