A vergonha da República

«É preciso convencermo-nos de que deixámos criar uma floresta assassina».

Uma semana depois de o inferno descido à Terra, no Pinhal Interior e nas Terras de Sicó, faz todo o sentido que se dê à tragédia de Pedrógão Grande a qualificação da ‘vergonha da República’.

Porque esta tragédia não é responsabilidade apenas da mãe natureza. É muito da responsabilidade da República. Devido à forma como tem tratado este território e as suas populações.

E há que ter a coragem de dizer também que é uma vergonha para a troika, que nós chamámos e que nos impôs cortes cegos em territórios como os do Pinhal Interior e das Terras de Sicó, e que noutros casos serviu de pretexto para retirar o Estado de um território onde fazia, faz e fará sempre falta.

Nesta semana fomos todos convocados, enquanto pares do país institucional, para a solidariedade, para os afetos, para o politicamente correto, para um pacto não escrito de adiar o pedido de responsabilidade, com imparcialidade e rigor, do que aconteceu.

Ainda vivemos o luto, a incredulidade, a revolta, a tristeza, a vontade de que tudo isto não passe de um sonho.

Mas nas próximas semanas, em nome da verdade, dos que morreram, dos que sofrem, dos que tudo perderam, não podemos ficar calados por muito mais tempo.

E para quem, como é o meu caso, há mais de trinta anos calcorreia aquelas estradas (e não só a ‘da morte’) e vive como seus aqueles territórios, as suas gentes, as suas autarquias, as suas instituições, não pode deixar de dizer que esta vergonha da República (e da troika) tem de ter consequências. E também ao nível das soluções, para que não se venha a repetir.

Após ter calcorreado a zona nos últimos dias, na companhia de vários autarcas, provedores e dirigentes das misericórdias de concelhos como Ansião, Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, considero obrigatório colocar algumas questões e recordar alguns factos.

Até porque o país institucional criou uma espécie de condicionamento para que as pessoas não digam as verdades que incomodam. Não digam que esta tragédia, este inferno, não é só consequência da mãe natureza – tendo posto a nu o que o Estado fez a este território nos últimos anos.

O Estado que foi disfarçadamente saindo deste território, abandonando-o, esquecendo-o, entregando-o em muitos domínios à sua sorte. Exemplos não faltam: ausência de políticas específicas, diminuição da presença na área da segurança (estudem lá bem, por favor, por que razão a GNR não fechou a ‘estrada da morte’) e da saúde (com falta de profissionais, equipamentos, etc.), não acompanhamento da floresta (com efetivos, guardas florestais e equiparados).

Em distritos como Leiria, uma autonomia política e administrativa é fundamental, entre outras coisas, para coordenar e operacionalizar o socorro, a Proteção Civil, a segurança (se Lisboa e Porto não precisam tanto de Governos Civis, o mesmo não acontece com outros distritos como este).

Este território tem tido Estado a menos onde mais precisa. E eu sou insuspeito a esse nível para o afirmar. Mas, a medo, são várias as pessoas que vão perguntando coisas do género:

– Se já tinha sido sinalizado que Leiria era um distrito de risco para fogos e ventos deste género, por que foram precisas tantas horas para se perceber o que estava em causa? E por que tem existido tanta descoordenação? E contradição? E dispersão de meios?

Esta tragédia de Pedrógão Grande, que é uma vergonha para a República e para todos nós, tem muitos pais e muitas mães. O país que já era líder dos fogos dos países do Sul da Europa ficou agora ‘líder’ em mortes e devastação.

Esta tragédia deve ser usada como um sacrifício a favor do futuro. Iniciando uma nova atenção de Portugal pelo território e pelas populações do Pinhal Interior e das Terras de Sicó.

Não recorrendo às medidas clássicas (que muitas se perdem pelo caminho e, quando chegam, chegam tarde) mas sim a medidas especiais: rápidas, diferenciadoras e de implementação urgente.

Estou certo de que o país real – mais do que o país institucional – está disponível para que exista discriminação positiva a favor da sua reconstrução, atratividade e competitividade. Até porque a solidariedade e os afetos não trazem mortos de volta à vida, não pagam funerais, não pagam dívidas, não reconstroem casas, não recuperam empresas, etc.

olharaocentro@sol.pt