A culpa vai morrer solteira…

Houve uma pressa inusitada em atribuir a tragédia de Pedrógão Grande a causas naturais. Madrugada de sábado, mal iniciada a contagem das vítimas mortais, já as televisões passavam em rodapé, por baixo das imagens do fogo, que este se devera à faísca de uma trovoada seca. A ‘verdade oficial’ estava lançada, face à dimensão alarmante…

Num ápice, o diretor nacional da Polícia Judiciária afirmaria, perentório (antes mesmo de os meteorologistas do IPMA chegarem a qualquer conclusão, cientificamente válida), que os investigadores no terreno tinham apurado a origem do incêndio «muito claramente», adiantando: «Inclusivamente encontrámos a árvore que foi atingida por um raio». Fantástico. 

No meio da terrível devastação, um achado… afinal, desmentido pelo presidente da Liga dos Bombeiros, para quem o incêndio «teve origem em mão criminosa». É o retrato chocante das contradições.

Nunca o balanço de um incêndio florestal – e a crónica é muito vasta – teve os custos de Pedrógão Grande, em vidas humanas e em destruição de casas e bens. E nunca se quis ‘arrumar o assunto’ tão cedo, antes de um inquérito sério, aprofundado e imparcial. Os media, com raras exceções, ficaram acríticos, sem pestanejar. 

Responsabilizada a trovoada seca, o Ministério Público poderia arrumar os papéis e arquivar o processo. Com a suspeita de ‘mão criminosa’ é outra música, e vai levar mais tempo a fechar a gaveta. 

O Presidente da República, que foi lesto em deslocar-se ao cenário da tragédia – antecipando-se ao primeiro-ministro e à ministra -, não foi menos lesto em afirmar, a quente, que «o que se fez foi o máximo que se poderia ter feito». 

Desafortunadamente, não era assim. E o Presidente precisou de corrigir o discurso, à medida que se apercebeu da desorientação reinante.  

Falhas (reincidentes) imperdoáveis no sistema de comunicações de emergência, desarticulação operacional, erros na cadeia de comando, avião fantasma desaparecido, confusão instalada. A conta-gotas, à margem da ‘verdade oficial’, alguma coisa começou a transpirar. Mas haverá decerto muito por contar, para além da exploração avulsa das emoções de gente sofrida. 

Em março de 2011, após a queda da ponte de Entre-os-Rios – cujo saldo em perda de vidas foi semelhante ao de Pedrógão -, Jorge Coelho, então ministro do Equipamento Social, não demorou a pedir a demissão a António Guterres, assumindo a responsabilidade política pelo acontecido.  

Ao contrário de Coelho, a ministra Constança Urbano de Sousa acha que enquanto tiver «a confiança» de Costa demitir-se «seria uma atitude cobarde», e dedica-se a procurar dados para saber se tem «matéria para abrir um inquérito». Patético. 

Em dois governos socialistas, dois pesos e duas medidas. A coragem politica e a cobardia começam pela mesma letra.

Sejamos claros: que importa a demissão de uma ministra inexistente? Quando o primeiro-ministro em exercício, numa entrevista (insegura) à TVI, garantiu não ter «nenhuma evidência de que tenha havido qualquer falha», é surreal – mas está tudo dito. Mais tarde, tentaria ‘emendar a mão’ ao admitir que «é essencial apurar cabalmente tudo o que aconteceu». 

Os ziguezagues do Governo impressionam Os mortos, como alguém escreveu, são um pormenor. 

Estranhamente, a ‘geringonça’ ausentou-se para parte incerta. Catarina, Louçã, Jerónimo ou César limitaram-se ao piedoso ‘ofício fúnebre’ das mensagens de consternação.

Pedro Passos Coelho foi o único a romper com o muro de silêncios, juntando à palavra solidária a promessa de «uma avaliação política» posterior. Assim a faça. Sob a pressão da catástrofe, vai ser viabilizada a comissão técnica independente proposta pelo PSD. A seguir se verá. 

Porém, no Verão de 2015, o Bloco não hesitou em acusar o Governo de Passos Coelho de incompetência no combate aos fogos florestais, considerando que «a explicação para a vasta área ardida não se pode atribuir apenas às condições meteorológicas». Agora emudeceu. 

Enquanto durar o luto, promete-se tudo. Faz-se um minuto de silêncio, encenado nas escadarias do Parlamento. Aprova-se legislação à pressa. A luta partidária prossegue no dia seguinte. 

No mais, o país está desprotegido e as populações sentem-se indefesas. Espera-se do Estado proteção nas adversidades e não pieguice.   

Desenham-se estruturas no papel, nomeiam-se e pagam-se hierarquias, que depois, impreparadas, falham no terreno.  

O ‘passa-culpas’ das corporações funciona em pleno. Pedrógão é uma imensa nódoa negra na paisagem, estragando a festa dos prodígios do défice. 

A culpa poderá voltar a morrer solteira, mas o ‘estado de graça’ de António Costa acabou no caos de Pedrógão Grande. Desde Espanha, o influente jornal El Mundo escreveu, sem rodeios, que a «gestão desastrosa pode pôr fim à carreira política de Costa». E pode.