Quando até os tubarões aparecem maquilhados

Estreia na próxima quinta-feira “Os Homens de Coragem”, um filme que pretende repor a verdade histórica sobre o afundamento de um navio militar que mais perdas custou à marinha dos EUA.  

Os Homens de Coragem (USS Indianapolis: Men of Courage, no original) baseia-se num caso verídico: o afundamento, por um submarino japonês, do cruzador pesado, da classe Portland, USS Indianapolis. Dos 1197 elementos da sua tripulação, apenas 317 sobreviveram, na mais mortífera tragédia na marinha dos EUA pós-ataque a Pearl Harbor.

Lançado às águas em 1931, no momento do seu afundamento o navio regressava de uma missão secreta, ordenada pelo Presidente dos EUA: o transporte do núcleo de urânio das bombas lançadas em Hiroshima.

Roosevelt, antes dessa missão, já o conhecia, tendo embarcado nele a 18 de novembro de 1936, e estado quase um mês na embarcação, para uma visita de cortesia às cidades do Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevideo.

Dadas as características do navio, nomeadamente a sua velocidade, blindagem e a capacidade demonstrada na guerra do Pacífico, foi escolhido para uma missão secreta. A 16 de julho de 1945, o USS Indianapolis sai de São Francisco, rumo a Tinian, a 4 445 quilómetros de distância, onde chega a 26 de julho, batendo todos os recordes de velocidade com uma carga secreta de urânio 235 e de elementos que vão formar a bomba Little Boy, que é largada a 6 de agosto de 1945 sobre a cidade japonesa de Hiroshima.

Depois de largar a carga, o navio abandona Tinian e aporta em Guam, onde os marinheiros têm uma curta licença e novos recrutas juntam-se ao navio. A 28 de julho o cruzador levanta âncora. O objetivo final é vir a juntar-se à task force do almirante Jesse B. Oldedorf. O primeiro destino seria a ilha de Leyte (Filipinas), para completar o treino dos novos recrutas, antes de se juntar à força de ataque que iria invadir o Japão. Apesar de o comandante do Indianapolis, Charles McVay, ter solicitado várias vezes navios de escolta, dada a enorme vulnerabilidade a ataques de submarinos, essa escolta não lhe foi concedida. No filme insinua-se que a razão era deixar em segredo a missão anterior do cruzador. Mas a explicação não é convincente. E, semanas antes, um outro navio dos EUA tinha sido afundado na rota que ele ia agora percorrer.

Partido ao meio

No dia 28 de julho, o cruzador sai de Guam rumo à ilha de Leyte, atravessa o mar das Filipinas, quando, às 00h05 de 30 de julho, se ouvem duas explosões sucessivas. O submarino japonês I-58 tinha lançado dois torpedos. Um deles pulveriza a proa do cruzador, o outro atinge uma zona perto de onde está armazenado o combustível e as munições. As explosões que se seguem partem em dois o navio. A embarcação afunda-se em 12 minutos. Dos 1197 homens, 300 morrem nas explosões e na destruição da embarcação. A tripulação tem tempo de lançar um SOS. Apesar disso, nenhuma embarcação os vai socorrer. Os 800 sobreviventes encontram-se sozinhos no meio do Oceano Pacífico, alguns nos botes salva-vidas, a maioria deles no mar, apenas equipados com os seus coletes. A maioria dos sobreviventes sucumbe vítima de tubarões, desidratação e dos ferimentos. Só quatro dias depois os sobreviventes são avistados por um avião de reconhecimento. São resgatados cerca de 321 marinheiros, mas ainda menos sobrevivem aos ferimentos: 317 homens.

O número de vítimas do naufrágio não vai ficar por aí. O comandante do navio é levado a tribunal militar, acusado de não ter dado ordem para os homens abandonarem o navio e não ter executado as manobras de ziguezague requeridas, pelo manual, para dificultar a ação de um submarino inimigo. Charles McVay foi a julgamento quase de mãos e pés atados. Não podia revelar a natureza secreta da sua missão, foi-lhe dado um advogado inexperiente, e foi omitido do processo que o navio tinha pedido socorro, e que esses pedidos não tinham sido considerados. Dado que estava numa missão secreta, O USS Indianapolis foi falsamente registado num porto da marinha dos EUA. Quando o pedido chegou, os militares que o receberam julgaram ser uma comunicação emitida pelos japoneses para atrair navios para uma emboscada. O comandante do navio norte-americano foi condenado em tribunal marcial e serviu como bode expiatório da catástrofe, tendo vindo a suicidar-se em 1968.

Os sobreviventes nunca se conformaram com a sentença. Depois de uma campanha continuada, conseguiram que em 2000 Bill Clinton retirasse todas as acusações que foram feitas contra o comandante.

Postal ilustrado

Homens de Coragem insere-se nesse processo de valorização do esforço heroico da tripulação do malogrado cruzador e de reavaliação do papel do seu comandante. As suas intenções são portanto benévolas. A realização é escorreita, os planos profissionais, a banda sonora é heroica. Mas tal como muitos dos filmes comerciais, como Pearl Harbor, sofre da estética de verniz e da moral de pacotilha que os produtores obrigam. Os personagens são uma espécie de cromos. As relações entre negros e brancos parecem ser vistas à luz dos valores de hoje, e não com a discriminação racial que se vivia na época. Tudo parece brilhar como aquelas imagens de postal ilustrado, até as mortes nas boquinhas dos tubarões. Falta-lhe a sujidade e a densidade das histórias reais.

Nicolas Cage faz uma representação como nos habituou nas últimas dezenas de filmes. Quem o viu em Rumble Fish, do seu tio Francis Ford Coppola, poderá ter uma apoplexia. Mas a maior parte dos espetadores não se lembra que ele já foi um ator promissor.