Mais pobres têm cinco vezes mais dificuldades de acesso à saúde

Saúde mental, saúde oral, consultas de especialidade e compra de medicamentos são as áreas em que mais se notam desigualdades

As limitações no acesso à saúde em áreas como psicologia e psiquiatria, dentistas e comparticipação de medicamentos afetam de “forma desproporcional os mais pobres”. O alerta surge na edição deste ano do Relatório da Primavera, a análise anual do Observatório Português dos Sistemas de Saúde ao que se passa no país nesta área. O estudo é apresentado hoje e tem como tema “Tempos incertos – Sustentabilidade e Equidade na Saúde”. A partir dos dados recolhidos no último Inquérito Nacional de Saúde, que começaram a ser divulgados no ano passado, os autores traçaram um retrato das desigualdades entre os portugueses quando se têm em conta cinco patamares de rendimentos. Os portugueses no grupo dos mais pobres chegam a ter cinco vezes mais probabilidades de reportar necessidades de saúde por resolver por falta de dinheiro do que os que estão no grupo dos mais ricos.

A diferença é particularmente marcada nas áreas em que o SNS apresenta mais dificuldades de acesso. No caso de tratamentos de saúde mental, os autores concluíram que só 9% dos portugueses do grupo dos mais ricos indicava ter alguma necessidade de consulta de psiquiatria, psicologia ou psicoterapia ou tratamentos de saúde mental não satisfeita por dificuldades financeiras nos últimos 12 meses anteriores ao inquérito, que teve lugar em 2014. Já quando foram analisar a percentagem de resposta entre os 20% da população com menores rendimentos, a probabilidade de reportar necessidades não satisfeitas dispara para 48%. O cenário repete-se nas consultas dentárias, com apenas 9% dos mais ricos com dificuldades de acesso contra uma percentagem de 53% entre os mais pobres. Nos cuidados em geral, consultas e tratamentos, o problema é menos notório, mas a diferença continua a ser expressiva: só 4% dos portugueses do grupo com mais rendimentos terá necessidades por satisfazer, contra 19% dos mais pobres.

José Aranda da Silva, porta- -voz da coordenação do estudo – que envolveu peritos da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, da Universidade de Évora e da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa –, sublinha que apesar de estes dados resultarem de um inquérito a uma amostra da população, trata-se de uma análise que divide os residentes no país em quintos, pelo que se aponta para cerca de 2 milhões de portugueses numa situação de maior vulnerabilidade. A insuficiência económica é um dos critérios para ter isenção de taxa moderadora no SNS, e em áreas como a saúde oral tem havido um reforço da resposta nos centros de saúde, mas há despesas que não estão cobertas, nomeadamente a parte dos medicamentos que não é comparticipada, que compõe a maioria dos gastos com saúde das famílias. Num capítulo que traça comparações europeias assinala-se que, em Portugal, apenas 55% da despesa com medicamentos é pública, o que contrasta com 83% na Alemanha, 71% em França ou 66% no Reino Unido. Os autores alertam ainda, com base num estudo publicado em 2016, para que os portugueses mais pobres têm menor utilização de consultas de especialidade face a necessidades iguais.

O relatório percorre diversos temas que têm estado ciclicamente em debate nas análises sobre as políticas de saúde, do problema da sustentabilidade do SNS às reformas em áreas como os cuidados primários ou hospitalares. Sobre os cuidados primários, fica um aviso. Atualmente, apenas metade da população é abrangida pelas chamadas unidades de saúde familiar (USF), criadas em 2005 e que garantem a todos os utentes inscritos um médico de família, mas também um acompanhamento personalizado pela equipa de enfermagem. A outra metade dos portugueses faz parte dos centros de saúde convencionais, onde uns utentes têm médico de família e outros não, acabando por ter de sujeitar-se a consultas de recurso.

O observatório conclui que é expetável que o “compromisso modesto e cauteloso” do governo de criar 100 novas USF até ao final da legislatura venha a ser concretizado, mas sublinha “que, mantendo-se a estratégia e ritmo atuais, a reforma e as iniquidades atuais nos cuidados de saúde primários arrastar-se–ão até 2030 – 25 anos após o seu delineamento e impulso de arranque em 2005”. No que diz respeito aos hospitais, denunciam que os conselhos de administração enfrentam hoje “um espartilho centralista que os impede de gerir as suas organizações, criando condições para a ineficiência, para a deterioração das condições de trabalho e da qualidade dos cuidados prestados.” Defendem por isso o aumento da autonomia dos gestores, acompanhado de “uma avaliação sistemática e objetiva dos conselhos de administração.”