Rosa Oliveira. Poesia de “alto saturno”

“Tardio” é o seu segundo livro de poemas, ora elipticamente narrados, ora presos em descrições cifradas. Move-se longe daquele confessionalismo escancarado que não deixa pedra por virar nem ponta por unir.

Surgem amiúde pelo impulso dos estimuladores de talentos e dos aceleradores de vocações, vendem-se a bom preço e ocupam nas livrarias um espaço muito alargado quando comparado com aquele que é destinado à poesia, que veio a este mundo bater a má porta. Há-os de vários tamanhos e tipos. Apresentam-se nus, envolvidos no traje mínimo da cinta que promete ou enfiados em saquinhos que dão um jeito tremendo lá em casa. Um romance enche a vista, atrai as massas e pode bem vender às resmas. A poesia, com baixíssimos valores de mercado, passa ao lado, discreta, invisível.  

 “Um romance é que era!…/dizem-me olhando de lado/ os poemas […] um romance é que faz/ virar as cabeças na rua/ calça mesas/ duplica escaparates/ expande a crítica/ constipada/ no seu casulo refinado” lê-se num dos poemas deste segundo livro de Rosa Oliveira, nascida em Viseu, em 1958. O tom, mais próximo da ironia ágil, friamente distanciada, desarmante, que daquele sarcasmo bilioso à Jorge de Sena, a quem a autora dedicou já uma tese, marca uma paisagem poética que nos coloca desenganadamente perante a prosa do mundo, frequente carburante da sua ironia crítica. Mas há outros: o nosso meio social e literário, as grandes figuras da “teoria”, sobre as quais recai uma acentuada desconfiança, como fica claro no poema “Pirotécnica”: “e então vieram os news critics/ dizer-nos que as coisas já estavam lá ali além / antes de as conhecermos […] era o leitor verdadeiro / mero efeito do livro / nós pequenos projectores / incandescentes”.

Muito embora os começos literários de Rosa Oliveira surjam habitualmente associados ao arranque da colecção de poesia da Tinta-da-China, foi, curiosamente, com um romance que, depois de algumas experiências no campo da poesia, se apresentou a um prémio de revelação. O primeiro lugar foi para Lídia Jorge; o segundo, teve de o dividir com cinco autores, entre eles Hélia Correia. Corriam em Portugal os anos 70 e era já depois de ter ouvido Alexandre O’Neill a dizer “poèsia” em Viseu, uma cidade então soturna, perante uma assistência desiludida. O episódio, vivido com Luís Miguel Nava, é relatado em “Tardio” num misto de ironia melancólica e deceptiva: “era o Alexandre o’neill / a falar dos poemas que ninguém lera / no meio do ginásio / ele era uma voz clamorosa / a plateia em pé ouvia decepcionada / afinal ele não era um contador de pilhérias/ era um reles intelectual/ a fazer de conta que não era nem deixava de ser/ estava ali para conhecer o país real/ em campanha individualista/ de alfabetização poética”.

Quando, em 2013, publica o seu primeiro livro de poemas, “Cinza”, a crítica, por vezes tão sensível à jovialidade de uma pele de pêssego como às rugas, não hesitou em lançar sobre ele a etiqueta catalogadora: “tardio”. Estava assim achado o título – secamente afirmativo, ensombrecido  – que agora vem a lume no grafismo sóbrio da mesma colecção da Tinta-da-China. Mais do que um título, “Tardio” é a expressão de uma perplexidade, até porque se sabe que a juventude, mesmo quando acompanhada da técnica (ou da pirotécnica) não é um valor literário seguro, que há por aí carne esticada – e muito limpa – sem qualquer tutano. Rosa Oliveira hesitou e chegou “tarde”, ficou retida no trânsito dos poemas, “longos/ magros/ enguias pensantes/ agarradas ao papel / do centro de reabilitação”.

No limiar deste “Tardio”, ergue-se uma epígrafe que é, sem dúvida, um bom caminho para que à sua luz sejam lidos estes poemas, avessos à solenidade e ao pedantismo, sujeitos à turbulência da sabotagem (auto)irónica, mas também à poesia entendida como número de circo, com os seus cuspidores de fogos fátuos, as suas apresentações regulares. Foi tomada ao conto “Relação para uma Academia», de Kafka: “Foi uma honra que me concederam ao pedirem-me que apresentasse à Academia a relação da minha vida anterior de símio.” Aqui se condensa um universo temático e estilístico: o tempo e suas camadas, o lastro da memória, a metamorfose, a encenação de uma vida, o estilo sarcástico.

Sem dar as costas ao presente e ao acontecer contemporâneo, a autora de “Tragédias sobrepostas: sobre "O Indesejado" de Jorge de Sena” (Angelus Novus, 1991) surge-nos aqui entre duas memórias, para usar um conhecido título de Carlos de Oliveira: a memória íntima, familiar, por um lado, que a levou a incluir neste livro fotos da sua infância e juventude, numa espécie de crónica tantas vezes deceptiva do tempo passado que não deixou de a habitar; a memória cultural e literária, densa e repercutida, ora em referências mais ou menos oblíquas, ora numa série de alusões e variações, por vezes de pendor parodístico, que acabam por desviar o poema do seu curso inicial e de fracturar as imagens ou o sentido das palavras.

O pendor biográfico, existencial que transparece neste livro remete para imagens de uma realidade composta de objectos do quotidiano doméstico, de factos, nomes e lugares, referências, vistos por um olhar que os capta em perspectivas singulares, criticamente inquietas, mas muitas vezes animadas por um sentido forte de ironia, de enigmática encenação, de sabor lúdico até, que os decompõe nas faces possíveis de uma realidade que teima em não se dar senão a um olhar que a desconstrua e desfigure.

A poesia de Rosa Oliveira, que gosta de se deixar deslizar para a prosa, mantendo sempre a sua prosódia sob rigorosa vigilância, não é uma poesia de aquecer corações, como a secção “Meteóricas e sentimentais” se apressa a demonstrar. Nem de dramas de efeito, que não poupa aos seus sarcasmos nem sempre contidos e de um di-vertimento que faz reverter o humor em ponderada reflexão: “ olha a joana francesa/ publicou na avisrara/ e convidou-me para/ a apresentação/ esta gente não trabalha …”. Na sua dicção bem respirada, move-se longe do confessionalismo sentimental. Os poemas não são um equipamento transmissor de alta fidelidade, preferem distorcer o real, cifrá-lo, devolvendo-nos ecos de uma biografia reencenada, espécie de galeria revisitável onde a poeta entra e sai com a agilidade de um símio. Atenta, na construção rigorosa, serena na espera, às vezes acutilante no golpe: “a mulher símio come/ garras afiadas/ o olho/o scanner letal/ a boca rapace/ os movimentos rápidos/ de predador acossado// e mulheríssimo/ sentou-se na ex.planada / a desmontar a língua/ estraçalhou o acordo/sulcou de lâminas/ o vale das pupilas/cuspiu/ os ossos/ e lambeu/ a pele crestada/ pelo factor 50+//dispara em volta/quem? o quê/ a eternidade?”.