Portugal – Chile. E veio a noite que apagou a estrela…

A felicidade portuguesa não resistiu aos penaltis. Tudo parecia vir do céu para o caminho da final, mas a derrota acabou por ser irremediável

KAZAN – É o diacho do hino do Chile tão comprido, mais os seus campos de flores bordados e por aí fora, que nos vimos em sarilhos para que a rapaziada que veio lá do sopé dos Andes acompanhar a sua selecção o parasse de cantar, já muito depois do sistema sonoro do estádio ter posto um ponto final aos acordes. Enquanto eles iam acabando de gritar “que o la tumba seras de los libres/o el asilo contra la opression” e nós já estávamos metidos num tu-cá-tu-lá de oportunidades de golo, primeiro com Vargas e depois com André Silva, ambos isolados frente aos guarda-redes e a obrigarem-nos àquelas saídas que têm um tempo só, o do repentismo instintivo e felino que marca a categoria de cada um.

O público ia a pouco e pouco invadindo a Arena de Kazan, nesta sua despedida da Taça das Confederações, a partir de logo à noite confinada à ditadura de Moscovo e São Petersburgo, e ficávamos presos a um vaivém meio enlouquecido ao qual não faltaram, desde logo, as tranquibérnias de Vidal, especialista na matéria, aos encostos em Bruno Alves, e logo com quem ele se foi meter. Se Bernardo Silva esteve em dúvida nos últimos dias, por via de uma pancada neo-zelandesa muito à abana-pinheiro mas definitivamente sem maldade, já não tropeçámos em dúvidas quando o vimos saltitar de um lado para o outro do ataque, vindo lá do lado direito, procurando criar na zona defensiva chilena espaços mais anchos do que a Avenida Bernardo O’Higgins, lá em Santiago.

A coisa promete!, terão pensado todos os que esbugalhavam os olhos sobre o relvado à moda daquele figurão sinistro chamado Rasputine e que encantava czarinas no tempo dos Romanoff. Sente-se melhor, como sabemos, esta selecção de Fernando Santos, na sua versão desdobrável. Isto é, resguardando-se para disparar depois em correrias que costumam provocar nos adversários incómodos dignos de uma doença de São Vito. E assim se estabilizaram os acontecimentos após os tais minutos iniciais tresloucados.

Lembrei-me, ao teclar no qwert aquilo que para aqui rabisco, e porque até vem a propósito, que Neruda costumava dizer sobre a escrita. Algo como: “Escrever é fácil. Começa-se com uma maiúscula e termina-se num ponto. Pelo meio põem-se ideias”. Ora muito bem: duas ideias distintas de jogo se chocavam entretanto. Uma mais activa, outra mais expectante. E, na activa, a dos chilenos, um toque de agressividade que também é muito latino-americano, baseado na filosofia de que cada espaço de terreno é para ser conquistado à custa de muita gana, muito suor, e se necessário de meia-dúzia de lágrimas e equimoses. Sem Pepe (castigado), a defesa lusitana perdeu não apenas agressividade como velocidade. Um dado que os chilenos não deixaram passar em claro.

A nêspera.

À medida que o tempo foi passando, o jogo foi ficando como a nêspera do Mário Henrique Leiria: meio quieto, a ver o que acontece. Claro que não havia nenhuma velha para lhe dar um final inesperado e surrealista, pelo que nos cabia esperar a ver quem fazia o papel dela e tratava de o tirar daquelas tamanquinhas em que parecia confortavelmente calçado. Sabe-se, de sabedoria velha, daquela dos avós, que o respeitinho é muito bonito. E íamos atingindo aquela fase na qual um erro pode deitar a perder a mais consistente das filosofias, quanto mais uma equipa de futebol. Fernando Santos, com grau académico de engenheiro, de romântico tem pouco, com perdão da sua senhora. Percebeu que o primeiro passo para ganhar era manter o conjunto o mais cimentado possível. E, quando assim é, exige-se mais de Ronaldo, pois então. Trocar André Silva por Nani reforçou a estratégia do contra-golpe. Por seu lado, Pizzi, o treinador, terá sentido a sua equipa mais perto de marcar um golo do que de o sofrer. Por isso não mexe. Não deixamos de lhes dar razão, a um e a outro. Não era de apostar, singelo contra dobrado, como nos velhos livros do Texas Jack, na vitória de quem fosse.

Se, ao começar, havia a sensação de que poderíamos ver vários golos, assentava agora a convicção de apenas um pôr fim às dúvidas quanto ao vencedor.

O prolongamento fazia parte da equação. Quem se até os sempre inquietantes penaltizinhos…

Última mudança: com Moutinho, meio-campo a três. Habituou-nos esta selecção portuguesa a um sangue frio bem pouco habitual na idiossincrasia lusitana. Valeu-lhe, nos últimos dois anos, triunfos arrancados lá do fundo do vale tristonho de todas as descrenças. Como vai teimosamente em busca da fortuna, também a vê, de quando em vez, cair-lhe aos pés, do céu, aos trambolhões. Foi assim naquele minuto 94 da cabeçada de Alexis Sanchez. Foi assim no penálti poupado a Fonte. Foi assim com as duas bolas nos ferros. É, como dizia o Torga, um barco que se nega ao destino de ter cais.

Uma estrela acesa no pico da noite.

Apagada a pouco e pouco enquanto os portugueses falhavam os seus remates decisivos.

Nada mais a fazer na hora da derrota.