A arte e o horror de mãos dadas

Até 4 de setembro uma exposição na Gulbenkian mostra o impacto da I Guerra Mundial na cultura portuguesa. Há cartazes, filmes, pinturas e desenhos feitos na linha da frente.

Uma fotografia de uma locomotiva descarrilada, resultado de um atentado bombista em Portugal em 1919; uma página de jornal com colunas em branco, imposição da Censura; um estojo de amputação; desenhos de soldados feridos na Frente Ocidental; cartazes, postais, filmes projetados e pinturas. Estes são alguns dos objetos e materiais que podem ser vistos na exposição Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal, patente até 4 de setembro na galeria do piso -1 da sede da Fundação Calouste Gulbenkian.

Mas, antes, um pouco de contexto. «Este foi um período de fortes confrontos sociais e de enormes dificuldades de natureza social e financeira», explica Pedro Aires de Oliveira, um dos curadores. «Deram-se aqueles surtos inflacionários, o país estava tremendamente endividado e o regime político republicano ainda se estava a recompor dos sucessivos choques pelos quais passou exatamente desde que a guerra começou a ter efeitos disruptivos na política portuguesa. As tropas portuguesas começam a embarcar em finais de 1916 e rapidamente se tornam patentes os problemas do Corpo Expedicionário Português [CEP]. A natureza vulnerável da economia portuguesa ressente-se muito com o intensificar da guerra submarina no Atlântico, que leva a que as comunicações e os abastecimentos sejam muito afetados, com todas as consequências que daí decorrem para os centros urbanos. A primavera de 1917 é um período particularmente crítico, ocorrem muitos tumultos sociais, há revoltas de fome e a frente doméstica, que deveria suportar a própria participação de guerra, começa a dar sinais de ceder».

A exposição – cujo título alude ao poema do irlandês W. B. Yeats, The Second Coming, que «foi escrito em 1919 e tem umas ressonâncias um bocado apocalípticas» – está dividida em seis partes. A primeira fala de ‘Guerra Cultural e Mobilização Cívica’. «Hoje é difícil recuperar isso, mas na altura houve grandes clivagens na sociedade», refere Ana Vasconcelos, também curadora. «O pintor Robert Delaunay recusa-se a combater e isso vale-lhe algumas inimizades, nomeadamente com o poeta Blaise Cendrars, um amigo de casa, que é dos primeiros a ir para a guerra e rapidamente perde um braço em combate. O Amadeo [de Souza-Cardoso] também evoca a beleza da guerra mas não vai combater».

Durante o conflito, o artista refugiou-se na casa da sua família em Amarante. Ali pintou uma das suas obras-primas, Entrada, que está patente na exposição. Ana Vasconcelos explica alguns dos símbolos que integram esta pintura, que faz parte de um conjunto de telas realizado «já depois das exposições em Lisboa e Porto de 1916». «A palavra ‘entrada’ é uma evocação da entrada na guerra. Depois temos o barco Lusitania que foi afundado [a 7 de maio de 1915]. E os discos órficos de Sonia Delaunay, artista russa que foi acusada de espionagem pró-alemã, dizendo-se que esses discos colocados à porta de sua casa em Vila do Conde fariam sinais aos submarinos ao largo».

Um pintor na linha de fogo

Um dos núcleos mais surpreendentes, no entanto, é o conjunto de desenhos a carvão da autoria de Sousa Lopes feitos na frente de combate. «Sousa Lopes por sua iniciativa propõe ao Governo ir para França como artista oficial do CEP. Ele era muito bem relacionado ao nível das cúpulas políticas e conseguiu ser nomeado», nota Carlos Silveira, o terceiro curador. «É um caso único em Portugal de um artista que está a desenhar na linha de fogo. Tinha uma residência-ateliê própria, perto da frente, e deixou centenas de desenhos da Grande Guerra». Por exemplo, um «retrato de um soldado português, com uma ligadura na cabeça, ferido na batalha que destroçou quase definitivamente o CEP, em 1918».

De Sousa Lopes está também exibido um estudo para um dos seus quadros principais, A Rendição, inserido no ciclo dedicado à Grande Guerra no Museu Militar, de Santa Apolónia. «Trata-se de uma das pinturas de maiores dimensões realizadas por um artista participante na Grande Guerra em todo o mundo. É uma obra com mais de 12 metros de comprimento, um friso de quase 23 soldados, pintados em tamanho natural».

‘O remédio é cortar’ 

Os horrores da guerra surgem também nas fotografias de homens que foram feitos prisioneiros de guerra e libertados após o Armistício. «Temos muitos testemunhos escritos dos prisioneiros em que está patente a miséria que eles enfrentaram, a violência, a fome», continua Carlos Silveira. De regresso a Portugal, foram recebidos e tratados em sanatórios, mas nem sempre com as terapias adequadas. Um exemplo disso é um estojo de amputação exibido numa vitrine. «Na altura, o remédio é cortar». Mariano Piçarra, o autor do projeto museográfico da exposição, comenta: «Nesta guerra temos o poder de destruição do século XX, da máquina. Mas a medicina ainda era medieval».

A exposição termina com um gesso de Teixeira Lopes (autor dos relevos na fachada do Museu Militar e do monumento a Eça de Queiroz no Largo do Barão de Quintela), um estudo para um monumento aos soldados portugueses que combateram em França, inaugurado em 1928 em La Couture, Pas-de-Calais. O escultor representou de forma realista um soldado a ser visitado pelo esqueleto da morte – um momento dramático e macabro que não deixa nenhum visitante indiferente.