Rui Nunes. Contra os deuses que ainda perdoam o Homem

Rui Nunes carrega a consciência de uma segunda geração das vítimas dos genocídios, dos filhos que tiveram de aprender a falar a partir do silêncio dos pais, e que se tornaram eternas testemunhas de acusação

A perda confunde-se com o verdadeiro e, talvez, até único momento de posse. A sua dolorosa contradição faz-nos muitas vezes senti-la como um triunfo, já que nunca antes nos foi dada a hipótese de sentir a diferença que uma coisa, uma presença ou um estado nos traz. “Quando os sons se apagam, é que se ouve melhor”, nota Rui Nunes, em “Baixo Contínuo”. O rapto de uma sensação pode significar menos uma violência do que um singular momento de compreensão e clareza, há nele um transe extático, no duplo sentido sonoro em que provoca um êxtase e, na mesma medida, parece alterar a relação do tempo, imobilizando-o.

O vigor de uma impressão raramente é tão forte como nesse instante em que algo nos diz que começou a esvanecer-se, num processo irrecuperável. É aí que a memória entra em campo e se dá conta do que será impossível às suas faculdades de reconstituição. A uma página do fim de “A margem de um livro”, o outro título que Rui Nunes acaba de publicar, diz como a cegueira não passa por um corte gradual na luz, mas que há uma transformação daquilo que se vê. “O que vejo é o estremecimento de uma mancha: sou um cão pisteiro.”

Entre aquilo que falha e o modo de compensar-se, quando os outros sentidos ocupam o espaço de algo que chamou mais cedo o vazio, a sensação que fica não é apenas a de os olhos já não verem, mas a de uma morte percutida: “Nunca mais. Ou. O que vêem é. Que nunca mais. Anunciam manchas. Anunciam o seu desaparecimento. Por fim, nem a mancha.” E fecha assim o parêntesis em que tenta traduzir a sensação do que é perder o mais imediato, constante e, por vezes, esgotante dos sentidos. Aquele com que os restantes parecem bater-se, na hierarquia que domina as impressões. Este sentido que às vezes nos preenche tão avassaladoramente que quase nos derruba, pouca margem deixando para impressões que o contradigam. De tal modo que o pensamento muitas vezes parece simplesmente uma máquina de fazer legendas, tentando não tropeçar face ao ritmo em que pinga ao longe e ao perto o mundo, explodindo em visões.

A literatura, como a generalidade das artes, no consumo meio desalmado que hoje nos é imposto e a que nos submetemos, elegeu como princípio organizador a narrativa. Assim, Rui Nunes participa do lado de fora, como um desordeiro, um vândalo quebrando os vidros, os vasos, um homem do saco que surge malvisto, um exemplo para completar o aviso, ameaçar com castigo as criancinhas à mesa, na hora em que recebem as boas lições atrás do prato da sopa. Levamos décadas já do divórcio que vai entre os integrados e os autores que há muito deixaram de ir até à linha, de dar para o peditório das estorinhas. E Rui Nunes foi dos que mais malcriadamente se pôs à margem da fila, não nessa espécie de piquete de greve dos candidatos a malditos, mas realmente de costas, recolhendo no seu saco os objectos do desuso desta época, a sua opulência de dejectos, corpos desconjuntados… (“Como se tece um fio por entre destroços? Como tecem os destroços um fio?”) À entrada de “Baixo Contínuo”, uma inscrição remete-nos para outra ordem de princípios: “A desintegração da melodia/ A desintegração do corpo/ A desintegração da palavra”.

Neste país há coisas que são giras (vá lá)… No “convidativo tamborilar de circunstância” que se desencadeou com vista a celebrar Raul Brandão – neste ricto normalmente pobre ou, se passou tempo suficiente, faustoso, quando o cadáver já nem de um peido é capaz, as efemérides vão engordando e começa a “reparação atormentada” –, os 150 anos do nascimento do génio não foram, no entanto, suficientes para que alguém arriscasse atribuir-lhe uma linhagem descendente. Teria sido bom perceber como o “desvio de onanismo parasitário em que o milieu das letras se deleita” (já é a terceira citação de um só parágrafo do Pacheco neste meu[?]), não ficou margem a esse tipo de justiça a um autor feito por aqueles que, chegados depois, lhe fizeram a homenagem de o terem acolhido como incontornável influência. Ora, à cabeça ou, pelo menos, ao ombro de qualquer lista que se quisesse fazer, teria de encontrar-se o nome de Rui Nunes, que não foi tido nem achado enquanto Guimarães fazia as celebrações de Raul Brandão com os macacos que mais alto trepam a árvore do hábito.

Voltando ao que interessa, Rui Nunes tem nestes dois mais recentes capítulos da sua obra – que, se parecia ameaçada por o autor ter caído na escuridão, ao ponto de não ser mais capaz de ler sequer a mais garrafal das suas letras, continuou a desenhar-se no escuro, agarrada à corda da memória, sendo-lhe lidos mais tarde os estragos que fizera – mais alguns passos num trabalho de vigilância e denúncia, em muito marcado pela aguda consciência de que é do Homem de quem podemos esperar o pior. Depois de Auschwitz não é que já não se possa escrever poesia, mas que a poesia deve despedir-se tão cedo quanto possível de todos os quadros de falsa pureza e razões idílicas, para se apegar ao que restar de amável na humanidade depois da sua execração. E esta é uma obra que está agora realmente num limite de forças, num estado exasperado daquele sufoco existencial com que tínhamos já sido confrontados nos momentos mais angustiados do autor de “Húmus”.

Fortemente implicada numa mais afectada reflexão da actualidade e da própria crise e tensão que significa reunir os estilhaços de um momento contemporâneo, a obra de Rui Nunes rejeita a superfície, e cose-se num nível em que cada um dos elementos que participam na sua materialização da linguagem estão sensíveis, feridos e frágeis tanto como truculentos. Não lhe cabendo sequer a assistência das frases que escreveu antes, o escritor fez-se acompanhar de um gangue requintado de gente que faz barulho nos andares de cima, para os velhos que pousavam a agulha como aviso para a morte de que faltava pouco, mas ainda assim o mais difícil: J. S. Bach, Beethoven, Boulez e Stockhausen. A música atonal vai aqui impor outro firmamento, furos nesse manto negro sobre as nossas cabeças, estrelas para alguém que não busca uma direcção mas empreende uma escavação através dessa vertigem da qual não há regresso.

Como esses autores de deuses que já não lá estão apenas para nos servirem de cúmplices morais, para nos perdoarem, mas que antes nos falam numa língua de sublime juízo, o escritor busca a instrução rítmica de impulsos como o da fome, a força de “um som que cria a sua raiz, que é único. Interminável. Uma pedra a bater.” Esse som único que “vibra até se tornar íntimo, até mostrar a névoa da sua intimidade”. E Rui Nunes deixa claro que uma escrita assim não é outra dessas criações para agradar a um treinado apetite estético. Numa obra feita de fenómenos de transfiguração, que se faz valer de “sons em desequilíbrio”, não se trata aqui de gostar. “Gostas muito de Karlheinz? Ninguém gosta de Karlheinz, é outra coisa.”

É outra coisa esta escrita. E tanto num livro como no outro – o primeiro denotando formalmente um parentesco com a prosa, que sempre vai atraiçoando, por levantar as maiores barreiras à fluência, e o segundo mais denunciado na sua concentração poética –, os dois deixam claro como Rui Nunes está muito sozinho entre nós, e especificamente neste tempo, numa actuação que, para lá da desobediência, o coloca do lado do Mal, no esforço de evidenciá-lo.

O Mal que continua a ser um tabu absoluto na nossa literatura e desde as desumanidades que afinal se encontram no íntimo das nossas sociedades quando esta actuou inspirada pela paixão das suas convicções. Não o mal nas intenções ou sequer nos actos, mas como natureza inescapável, na forma como respira, como põe os olhos no mundo, começa a raciocinar. Rui Nunes é, nesse sentido, o oposto de um ilusionista. A sua escrita avilta, inventa o discurso que torna natural o processo de maldades sobre os quais alegamos sempre essa incompreensão terrível. Apresenta-nos a nós, os sempre presumidos inocentes, à obra secreta dos nossos comportamentos, ao vício de consequências para as quais criámos uma cegueira à medida da inconsciência que nos serve de álibi. “Leio o que lá não está, ou o que talvez não esteja. E que texto é este? Que deformidade? Leio a minha própria deformidade. Não sou eu quem lê, são os meus olhos: eu sou tudo o que sobra deles. Lêem a sua anomalia, cegam uma ou outra palavra, transformam uma ou outra letra, desviam: e o texto fica grotesco. É uma doença que o escreve. Porque há os olhos e o mal que há neles. Há portanto uma guerra: a do sentido contra a insensatez. Mas a insensatez, por vezes, é a fracção mínima de um desvendamento.”