Prémio UCCLA. A Dona Glória e a soberba dos inimputáveis

Na sua segunda edição, o prémio da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa distinguiu um livro que trata com os pés o português

A União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) diz-se surpresa por, logo na sua primeira edição, em 2016, o seu prémio literário “Novos Talentos, Novas Obras” ter-se tornado no “maior de todo o espaço de Língua Portuguesa, em número de candidaturas de escritores nunca antes publicados”. O vencedor da edição deste ano, Thiago Rodrigues Braga, explicou ao i que tinha descoberto o prémio através de um site que lista uma série de prémios a que um escritor com intenções de ver uma obra reconhecida pode candidatar-se.

Em 2017, foram 520 os candidatos, e a organização destaca ainda a “diversidade e abrangência de outras nacionalidades – Inglaterra, Holanda, Espanha, Itália, Argentina, EUA e Canadá – de onde chegaram textos em português. Numa distribuição estatística, a organização apurou ainda que cerca de 1/3 dos candidatos são mulheres, e o prémio teve sucesso entre os “jovens”, uma vez que 55% dos autores tinham menos de 40 anos. Onde já vai a juventude…Por outro lado, a UCCLA gaba-se ainda de um “diálogo de gerações”, dado que 10% dos candidatos entram nessa faixa que o calão institucional classifica como “autores seniores” – dos 60 aos 90 anos. Por fim, a organização congratula-se por ter reunido no júri do prémio um eminentíssimo plantel que conta com “membros da Academia de Letras, Professores Catedráticos de Literatura, escritores famosos, a Biblioteca Nacional de um país…” Contudo, dado o elevado número de obras a concurso, a UCCLA diz ter sido obrigada a formar “uma equipa de críticos literários, dirigida pelo nosso consultor António Carlos Cortez”.

Entretanto publicado entre nós com o selo A Bela e o Monstro e estando prevista a distribuição com o jornal “Público”, o prémio garante que a obra terá uma edição em cada um dos países de língua portuguesa, mas só por forçada conveniência se dirá que “Diário de Cão” vem assinalar uma promissora estreia no campo das letras lusófonas.

Nascido em Goiânia, no Brasil, em 1981, Thiago Rodrigues Braga contou na entrevista a este jornal que os textos coligidos neste volume foram retirados de uma série de cadernos para onde foi atirando tudo, depois de ter abandonado o trabalho enquanto professora dando aulas de literatura para alunos em preparação para o vestibular – exames que dão acesso ao ensino superior no Brasil. Admite que só tardiamente – aos 24 anos – descobriu a “paixão pela leitura”, crescendo numa casa onde os livros não participavam do quotidiano nem mereciam grande culto. Mas este é, segundo Thiago, um dos aspectos que mais encorajamento lhe traz no seu esforço de escrever uma obra à altura de “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge” ou “Grande Sertão: Veredas”, obras ímpares de Rainer Maria Rilke e João Guimarães Rosa respectivamente, aqueles escritores que o jovem mais admira. O facto de nunca ninguém o ter empurrado para os livros, de não ter tido um guia, mas de ser este um acidente inteiramente seu, dá-lhe a confiança de ter o seu destino agarrado nem que seja pelo rabo.

Bem como correu, face à inebriante simpatia e ao entusiasmo do vencedor do prémio, um tipo que sempre teve a coragem de largar da mão fria que a vida a todos nos estende, apontando um caminho seguro, deixaria qualquer crítico com um dardo lento a escarafunchar-lhe a consciência até entrar e envenená-lo, tirando-lhe a vontade de lembrar que muita vontade só não basta. Thiago escreveu entre 2015 e 2016 a maioria dos textos reunidos em “Diário de Cão”. São fragmentos, não os liga nenhum enredo ou qualquer estrutura que não uma arrumação temática. Começamos pela secção “Arte e Artistas”, depois vem “Diário”, “Livros e Leituras”, “Estórias”, “Infância”, “O escrever”, e terminamos com “O Filósofo”, seguindo-se depois um glossário de termos mais espinhosos (?) da língua ou regionalismos e apropriações feitas noutras geografias. O certo é que raramente um índice foi tão explícito quanto ao conteúdo de uma obra. E se José Pires Laranjeira, um dos membros do júri, logo assinala aqui “a tendência pós-moderna de misturar tipos de discurso, cruzando, num mosaico variado, o ensaísmo culturalista com a meditação existencial, passando pelo fragmentado memorialismo da formação infanto-juvenil e adoptando inclusive um neo-romantismo em defesa de uma arte absoluta”, o que temos neste livro mais não é do que uma série de falsas partidas.

Nenhum género alcança aqui maturidade, ameaçando-se tantas vezes a crónica, num saco que apanha ou deixa cair as coisas enquanto o vento o empurra, ficando-se cada texto pela natural indefinição de um escritor que ainda sabe só que quer escrever, quer muito, e chamou a si a hercúlea e, por isso, admirável tarefa de confrontar-se com alguns dos nomes maiores da literatura. Braga vai-se interessando ainda por exemplos dos recorrentes mestres de outras artes, como a pintura, (havendo páginas que cheiram a narrativas arquitectadas a partir de informações colhidas na wikipédia ou manuais para iniciantes) mas são sobretudo os escritores os seus “anjos” e, além de Rilke e Rosa, há inúmeras referências a Nietzsche, Tolstói, Dostoiévski, Proust, Rimbaud e outros. Se muitos dos textos funcionam enquanto meditações e exercícios de estilo, as aproximações aos escritores só triunfam enquanto exemplos de crítica petulante, saborosa exactamente por não saber do que está a falar e, nem por isso, enevoar o discurso apenas para fingir uma falsa segurança.

Se está longe de escrever bem, no sentido em que muitas vezes as regras de construção das frases são atiradas pela janela, o estilo não chega a recuperar disso, a compensar-nos do seu vandalismo com soluções melhores, se a prosa é demasiado tosca para não sabotar a confiança do leitor – sendo gritante a este nível o quanto a revisão de António Carlos Cortez não apenas falha num livro pejado de gralhas como em observar alguma ordem gramatical –, Thiago revela o talento de uma ignorância sensível, desabrida, aquela que é própria de todos nós quando, sem observar grandes cautelas, avançamos da forma mais aventureira pelo território denso e nebuloso da literatura, esse que se tem diante de nós como um horizonte fabuloso, mitológico até. Estes são textos corajosos tanto quanto ingénuos, cheios do tipo de momentos eureka que afinal redundam nas banalidades à volta das quais a crítica geralmente alcança algum nível de consenso ou resvalando para desatinos que são próprios das três da madrugada e por aí além, quando o leitor apanha aqueles comboios alucinados. No entanto, há um ânimo, uma liberdade que não deixa de recordar o encanto com que, em tempos, líamos um desses semi-deuses sem nenhum temor.

São primeiras impressões, primeiros equívocos, expressos com atrevimento e ligeireza, mas directos, assumidos: “Penso um pouco: eu gosto de ler assuntos filosóficos, que versam sobre o cosmo, a vida morta dos ancestrais que permanece viva nos genes. Não gosto muito de elaborar frases só para o prazer dos ouvidos; não sou francês, e me distancio de Rilke quando percebo que até ele encheu um livro inteiro com palavras mornas: Malte Laurids. Por que publicar coisas que possuem apenas interesse íntimo? Ele se exercitava naquelas páginas, e forçava a memória a se lembrar de cenas doloridas, que há muito foram encobertas pela vida do adulto preocupado em se tornar um poeta. Não teria sido melhor deixar no escuro o que apenas refletem experiência… Mas ele acreditou ser útil para outro poeta futuro, com as suas páginas de Malte Laurids. Vejam: Não façam o que eu fiz, façam diferente.”

Esta passagem transcrita vai com erros e tudo. Nela, quem escreve contraria até o que disse na entrevista Thiago sobre a sua “ambição impossível” de escrever um romance como aquele de Rilke. É um pouco o resumo de um livro que exige paciência e empatia. Mas se do autor não podemos pedir satisfações, em relação ao júri deste prémio a conversa é inteiramente diversa. Na orelha do livro, António Carlos Cortez arranca a sua nota crítica a esta obra dizendo que “[o] estilo lembra Rubem Fonseca, não porque haja aqui a violência vocabular que reconhecemos no criador de Mandrake, mas porque há um cuidado com o apuro frásico, com a descrição e com aquilo a que na teoria do texto narrativo é a garantia de romances equilibrados e desafiantes: o equilíbrio entre o showing e o telling.” Ao contrário do que acontece com quem lê este parágrafo na badana do livro, o leitor deste texto não tem a mesma possibilidade de comprovar nas páginas seguintes o quanto este resumo ultrapassa a linha entre uma avaliação crítica grosseira e se torna um logro absurdo. Este é precisamente o livro onde não se encontrará um grande apuro frásico ou os elementos de uma narrativa equilibrada. Talvez até se encontrem nele ousadias várias, atropelos de toda a ordem, sendo que, alguns deles, acabam por castigar a fluência da língua, num português do Brasil sofrido que nos obriga a perceber a estranheza desta língua que já não aparece nossa embora não tenha perdido o ânimo.

Comparar o que Thiago fez neste livro com Rubem Fonseca é o tipo de imbecilidade que, infelizmente, já não nos espanta nas figuras que parasitam as instituições e tomam sobre si a responsabilidade quer da crítica quer da atribuição dos prémios literários. Rubem Fonseca cerceia de todos os modos a tentação actual nesta língua para a tagarelice, ademanes, salamaleques… A sua prosa é um exercício de eficácia quase cruel, o ritmo funciona como um regime de violência psicológica em si mesmo, curto e seco, como se em vez de escrever apunhalasse.

O texto em que Cortez nos apresenta a esta primeira obra de Thiago Rodrigues Braga é o exemplo acabado do modo fraudulento como certas figuras com responsabilidades – no caso um professor de Português no Colégio Moderno, alguém que intervém na esfera pública, nomeadamente no debate sobre os modelos de avaliação da escola que temos, um crítico promocional com lugar cativo nas páginas do “Jornal de Letras” – se tornam os executores da grande ordem de despejo contra todos os que actuam no campo cultural de forma empenhada.

De resto, é curioso notar que se o jurista der um parecer delirante, ou se o médico fizer um diagnóstico que atire o paciente pela ribanceira dos cuidados de saúde quando deles mais precisa, espera-se que algum tipo de responsabilidade lhe seja assacada. Até o médico legista, se no seu relatório registasse este nível de disparates, mesmo se a coisa não saísse da morgue, talvez ainda tivesse o receio de que o fantasma do corpo estendido na sua mesa se lhe colasse e não mais o deixasse dormir. Ora, estes críticos parecem não acordar nunca desse absurdo sonho em que constroem reputações a partir da ignorância daqueles que os lêem, promovendo necessariamente o desinteresse dos demais. Esse sonho que se parece cada vez mais com a triste realidade do nosso meio literário. Só resta esperar que Thiago Rodrigues Braga não se fie e corra para Goiânia mantendo-se fiel ao juízo paciente dos seus anjos em vez de confiar na Dona Glória, a porteira cheia de varizes no prédio da nossa instituição literária, onde vivem paredes-meias os nossos génios descobertos a cada hora com estes inimputáveis críticos.