Estado Islâmico. A derrocada pode não o ser

O suposto califado está a esvair-se, o alegado califa pode estar já morto, mas o grupo tem tudo para se preservar sob outras encarnações e aproveitar o fosso sectário que só se deve agravar

O fantasmático califado do Estado Islâmico está em vias de desaparecer e não há muito que o contrarie. As dezenas de combatentes que ainda sobrevivem em Mossul lutavam ontem num retângulo com à volta de 300 por 500 metros. A mesquita em que Abu Bakr al-Baghdadi anunciou há três anos que o califado do Império Otomano havia regressado e que ele era o seu líder por aclamação foi arrasada. O seu próprio grupo dinamitou-a há pouco mais de uma semana, receando que os iraquianos fossem declarar a sua maior vitória territorial e simbólica no local mais frequentemente associado à sua meteórica ascensão.

A centenas de quilómetros para leste, na Síria, forças apoiadas pelos Estados Unidos avançam para Raqqa, onde parecem já ter atravessado as barreiras externas da cidade. Não há como contornar a evidência de que os jihadistas estão a perder os seus domínios urbanos. Se o mundo estivesse convencido que o grupo era de facto um Estado, a sua capital seria Raqqa e a sua cidade mais próspera e populosa seria Mossul.

No Iraque vai-se preparando uma semana de celebração e o primeiro-ministro quer ir até a Mossul para declarar o fim do califado iraquiano nos escombros da segunda maior cidade do país. Já o fez na televisão, mas os combates prosseguem.

O Estado Islâmico vai-se esvaindo no terreno há bastante mais tempo do que o início da letal batalha por Mossul, em outubro. A sua derrocada começou quando al-Baghdadi discursou na mesquita de al-Nuri, terminada a surpreendente conquista de Mossul e num momento em que a organização detinha um terreno sensivelmente da área do Reino Unido entre a Síria e o Iraque – para o simbolizar, destruiu a fronteira entre os dois países.

A sua derrocada começou quando se introduziu à força na consciência ocidental. Até lá, a organização avançara sem praticamente oposição por várias cidades iraquianas. Mesmo depois da sua conquista de Faluja, ainda por cima a cidade onde morreram mais americanos durante a ocupação do Iraque, o então presidente Barack Obama insistia em comparar o Estado Islâmico a uma equipa juvenil no mais sério campeonato da jihad global. As decapitações de James Foley e Steven Sotloff, meses depois da tomada de Mossul, só aumentaram a urgência de mais ações. O mundo avançou sobre o Estado Islâmico e desde então o grupo perdeu 60% dos domínios territoriais e cerca de 80% das receitas. Depois de Raqqa, controlará acima de tudo áreas desertificadas e pequenas aldeias.

É mesmo o fim?

Todos os sinais antecipam o fim do califado e muitos outros sugerem que isso não será o fim do grupo que tomou o manto da Al-Qaeda na jihad global. Só com muita dificuldade a sua inevitável derrota territorial significará o seu desaparecimento. A própria história do grupo assim o indica. A sua morte foi decretada pela primeira vez em 2007, quando ainda era conhecido como o Estado Islâmico do Iraque e acabava de ver morrer o seu líder jordano, Abu al-Zarqawi, atingido por um bombardeamento americano. Os reforços enviados pelos Estados Unidos para o Iraque declararam vitória, numa primeira aliança com tribos sunitas desencantadas com o grupo radical, e fizeram-no outra vez em 2011, quando morreu outro líder, Abu Suleiman al-Naser.

Nas duas ocasiões, a morte do grupo foi um erro de cálculo dispendioso. A organização sobreviveu longe das cidades e ordenando aos militantes que se mantivessem discretos. O mesmo parece estar prestes a acontecer uma terceira vez. Como sublinha o colunista Patrick Cockburn, no “Independent”: “O inimigo também tem um plano.”

Prioridades 

Esse plano pode nunca ter passado por continuar em cidades como Raqqa ou Mossul. Segundo Cockburn, um jornalista veterano em assuntos do Médio Oriente, o Estado Islâmico pode ter à volta de 36 mil combatentes distribuídos pelo deserto e com ordens para sobreviverem mesmo à derrocada da própria liderança. Estes números tornam-se especialmente relevantes assim que se tem em conta a defesa jihadista de Mossul. Não se sabe ao certo quantos soldados iraquianos morreram nas operações em Mossul – os números são secretos –, mas informações publicadas por Cockburn com base em fontes governamentais sugerem que, até ao final de Maço, tinham morrido 774 soldados. O executivo reclama a morte de cerca de 3500 extremistas desde outubro, mas grande parte parece ter morrido em bombardeamentos e menos de 800 podem ter entrado em combate direto com as melhores forças iraquianas. A cidade chegou a ter milhares de combatentes e se é verdade que muitos podem ter morrido em ataques aéreos, não deixa de se colocar a hipótese de uma maioria ter recuado para linhas mais preciosas.

“O Estado Islâmico sempre soube que não conseguiria preservar-se em Mossul ou noutro centro urbano com os bombardeamentos aéreos”, escreve Cockburn. “Ao combater em cidades como Tikrit, Baiji, Ramadi ou Faluja, estes dois anos, o grupo não combateu até ao seu último homem, deixando comandos que infligissem o máximo número de mortos entre militares iraquianos antes de desaparecerem. O Estado Islâmico pode não ter escrúpulos no seu uso de militantes sem treino como bombistas suicidas, mas tem muito cuidado com o núcleo de veteranos, difíceis de substituir.”

Estará então o Estado Islâmico longe de ser derrotado? A organização diz ter satélites em 32 países – um exagero – e os confrontos sectários regionais que em parte alimentaram o seu crescimento só devem agravar-se com a guerra civil síria e as crise iraquianas – os curdos, por exemplo, preparam um referendo para a sua independência em localidades sunitas. A sua presença na Internet, de resto, mostra-se incontrolável e parece não perder o encanto para uma série de terroristas de oportunidade. Os ataques à bomba, disparo ou atropelamento repetiram-se na Europa nos últimos meses, apesar da derrocada territorial do grupo no Médio Oriente. E só não aconteceram em maior número porque a organização, apesar de tudo, já não tem a mesma capacidade para instruir atacantes. Em dois dias de junho, por exemplo, um homem lançou-se contra uma carrinha da polícia nos Campos Elísios mas não conseguiu acionar os explosivos; e um outro falhou ao detonar-se com botijas de gás na estação central de comboios de Bruxelas. Acabaram ambos abatidos pela polícia, mas são prova da resiliência com a marca Estado Islâmico.