Um livro muito mau, que vale a pena ser lido!

O que me atraiu foi a descrição das mirabolantes operações financeiras usadas para viabilizar negócios complexos

Com enorme sacrifício passei as últimas semanas a lutar para avançar na leitura das quase 600 páginas de um livro mau: Patrick Monteiro de Barros – Uma Vida à Bolina. A vontade de desistir era enorme, mas cada página revelava-me mais e mais aspetos do estranho mundo dos estranhos negócios internacionais. No caso, dos produtos petrolíferos. Mas não seria diferente se fossem outras as matérias-primas em circulação dos países produtores para os transformadores. 

Tudo no livro me afasta: o mau português, as incongruências da narrativa, a jactância do biografado, a quem assenta na perfeição o remoque de Pessoa: «Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos são campeões em tudo!». 

O protagonista é campeão em tudo: do trading de crude ao dos refinados, da vela ao ténis, da caça à pesca, da produção de gado ao recorde de milhas aéreas, acumuladas em milhares de viagens. 
Pelo caminho, lugar para insistentes referências ao convívio com reis e sultões, líderes de repúblicas de África e América do Sul, chefes de guerrilha, intermediários, traders, dealers, lobbystas, corruptos, corruptores e trafulhas de todos os matizes. Cereja em cima do bolo, a intimidade com presidentes e congressistas dos EUA, homens de negócios de Wall Street e da City, banqueiros suíços, ingleses e franceses. Uma overdose!

Fique claro que nada tenho contra o biografado, pessoa com quem nunca me cruzei, e de quem nunca ouvi dizer nada que ponha em causa o seu caráter, as qualidades pessoais ou os méritos profissionais. Maledicência, inveja, despeito, tem-nas na mesma quantidade que todos os que triunfam, pouco importando se no futebol ou nos negócios. 

Não foram os feitos do herói do livro que me levaram a vencer as resistências à leitura de uma obra que tem tudo para me afastar. O que verdadeiramente me atraiu foi a descrição das mirabolantes operações financeiras necessárias para viabilizar negócios muito complexos, envolvendo vários países em vários continentes e com várias moedas. 

Completada a leitura, estou grato ao biografado por tudo o que aprendi sobre negócio bancário internacional — uma área que, em 35 anos de atividade bancária, foi sempre para mim uma misteriosa ‘caixa negra’ que guardava as explicações para o prodígio de operações que dão lucros todos os dias, mas prejuízos crónicos nas contas trimestrais e anuais. 

Num dos bancos em que trabalhei, havia um diretor da área internacional que tinha o hábito singular de se passear pelos corredores da administração até conseguir cruzar-se com todos, para dar a notícia do dia: «Ganhámos duzentos mil contos…». O problema era que, fechadas as contas do mês, invariavelmente, a Direção Internacional exibia prejuízos. 

Um dia levei a rábula preparada. Com o ar mais sério que consegui, interpelei o administrador que apresentava as contas: «Não pode ser, as contas têm de estar erradas». Como? Não podia ser! A contabilidade é feita de somas e subtrações, que não consentem erros aritméticos. Aí rapei da folha onde tinha registado os ‘ganhos’ de todos os dias, virei-me para o colega da Área Internacional e comecei a enumerar: «Dia 1… ganho X, dia 2… ganho… Y, dia 3… ganho Z… Como pode a soma de tantos ganhos dar um prejuízo?». Com a paciência que se tem para os ‘não iniciados’, o colega explicou-me que aquelas operações têm uma sofisticação: «o sistema das duas pernas». Uma, é a do dia em que são contratadas, onde há sempre lucro; outra, é a do dia de fecho, uns meses depois, em que uma coisa chamada ‘contrapartida’ pode trazer ganhos ou perdas — mas, por insondáveis razões, trazem mais perdas que ganhos.

As descrições de Monteiro de Barros ajudaram-me a esclarecer o enigma. Na complexidade das operações financeiras que descreve, só muito dificilmente poderiam ser ponderados (e acautelados) todos os riscos envolvidos: de crédito, cambiais, de taxas de juro. E isto para falar só do lado formal do negócio, porque o informal é ainda mais indecifrável. 

As ‘artes’ desvendadas pelo livro são dignas da imaginação de um Emilio Salgari e da valentia do destemido Sandokan: por exemplo, fazer chegar crude do Irão dos ayatolas à África do Sul do apartheid, envolvendo swaps com petróleo soviético ou nigeriano, um emaranhado de empresas de fachada, on-shore e off-shore, distribuídas entre a respeitável Suíça, o duvidoso Panamá, que deveriam ser titulares das cartas de crédito, subscritoras dos financiamentos e prestadoras de garantias necessárias à viabilização dos negócios. E, claro, luvas, muitas luvas, mais um par de meias verdes fluorescente. É obra!