A negação do Estado

O que aconteceu numa base militar de elite, supostamente bem vigiada, é do domínio kafkiano

Marcelo Rebelo de Sousa tem um problema sério entre mãos. O Estado corre o risco de desagregação, por incúria e grave irresponsabilidade, e o Governo ausentou-se para parte incerta, com o primeiro-ministro de férias, como se nada de anormal se passasse. A hierarquia foi a banhos.

Desde os incêndios de Pedrógão Grande que ficou patente o ‘estado de negação’ em que se encontra o Governo. O ‘golpe de Tancos’ apenas piorou um quadro já deveras sombrio. 

Desde as emoções avulsas da ministra Constança Urbano de Sousa – incapaz de meter na ordem a ‘guerra civil’ instalada no MAI – à originalidade do ministro Azeredo Lopes, que anunciou assumir «a responsabilidade política» do sucedido em Tancos sem se mexer do lugar, o Governo inexiste, embarcado numa ‘geringonça’ em aflitiva degradação. Até Francisco Louçã, não menos aflito, escreveu que «é tempo de o Governo acordar»…

A nível político, ninguém tira as consequências de nada. Arranja-se um focus group para avaliação dos danos de popularidade e adota-se a tática de produzir ruído, com cartas e inquéritos que se contradizem, para desaguar em coisa nenhuma. Baralha-se e torna-se a dar. É um jogo descarado e impudico. 

O que aconteceu numa base militar de elite, supostamente bem vigiada, é do domínio kafkiano. Desapareceu um arsenal de armamento e de munições sem que ninguém desse por isso. E o ministro da Defesa teve o topete de deslocar-se à SIC para enrolar conversa e antecipar que, dias antes do assalto, aprovara uma verba (ridícula…) para a reparação do sistema de videovigilância, há muito avariado. 

Após o desnorte operacional na zona mártir de Pedrógão Grande, o Estado voltou a falhar em Tancos. O amolecimento da estrutura militar, que tem vindo a fechar-se nos gabinetes, não explica tão alarmante falta de segurança.

O chefe de Estado-Maior do Exército – cujo antecessor foi demitido pelo mesmo Azeredo Lopes, após um fait-divers no Colégio Militar – exonerou os cinco comandantes dos regimentos sediados em Tancos, mas ele próprio não pôs o lugar à disposição. Permaneceu sentado.

Ora, no dia seguinte ao assalto de Tancos, já um oficial general na reserva, conhecedor do local, explicava no DN online que o acesso aos paióis «é complicado», exigindo que «alguém soubesse o que estava ativado e tinha o material desejado» para «estacionar uma viatura e carregar o material». De facto, o material pesado não saía debaixo do braço pela ‘porta do cavalo’… 

Marcelo Rebelo de Sousa também comparou o roubo com outros ocorridos em países terceiros da Nato. Porém, ao visitar Tancos descaiu-se a dizer que «é muito diferente ir ao terreno». Talvez se tenha inteirado daquilo que o jornal espanhol El País descreveu: sistema de videovigilância avariado há cinco anos e 25 guaritas degradadas, onde há muito não subiria nenhum militar. 

Ironizava o jornal espanhol que, «depois de conhecer o Exército que cuida de Tancos, se Portugal não ficar em primeiro lugar no índice Global de Paz em 2018, será uma injustiça de pegar em armas». O tom das palavras deveria envergonhar o Governo e os responsáveis militares. O texto é um gozo. 

Depois de interpelar El Mundo, talvez seja agora a vez de o Sindicato dos Jornalistas questionar El País pelo que publicou, já que não pode falar com António Costa, imperturbável na sua sagrada vilegiatura (seguindo, aliás, o exemplo de Sócrates, quando em 2005 se passeava pelo Quénia com o país a arder). 
Então como hoje, os media portugueses são benevolentes. E quanto maior é a desgraça mais se esquecem outros casos na gaveta. 

Um deles foi o desaparecimento, há meses, de um lote de 50 pistolas, debaixo do nariz da direção nacional da PSP. Quis o acaso que uma das armas fosse apreendida numa operação policial de rotina no Porto. 
A ministra Constança explicaria depois no Parlamento que o roubo se devera a «falhas de controlo e supervisão» – e adormeceu descansada. 
O caso de Tancos é mais delicado. A impunidade e o laxismo tomaram conta de segmentos importantes da vida portuguesa, enquanto as corporações se aproveitaram do vazio para reforçarem a sua influência. 
A vulnerabilidade da Base de Tancos ficou à vista. A lista do armamento que se ‘evaporou’ ilustra o descalabro. E o efeito das ‘cativações’. 
A negação do Estado corrói a Nação. Com centenas de dramas em Pedrógão Grande por resolver, as armas roubadas ao ‘deus dará’ e as chancelarias nervosas, António Costa entregou-se ao desfrute de Palma de Maiorca. Marcelo, sibilino, diria que «mais complicado seria se o Presidente da República estivesse em férias».
Tem razão. De facto, o Presidente fez o que competia ao primeiro-ministro em exercício. Definitivamente, este Governo não tem emenda. Foge aos problemas como o ‘diabo da cruz’. É um bluff.