Diplomacia Qatari: Doha a quem doer

Doha vai aos limites porque opera debaixo do chapéu de segurança americano

Imagine um território com um terço da área do Alentejo, a população da área metropolitana de Lisboa, as segundas maiores reservas de gás do mundo e a ambição diplomática de um grande país. Se pensou no Qatar, está certo. 

Como já deve saber o pequeno emirado do Golfo Pérsico, controlado pela dinastia Al Thani desde meados do século XIX, está no centro da última tempestade política no Médio Oriente. A Arábia Saudita, superpotência sunita na região, lidera um quarteto (com Egito, Emirados Árabes Unidos e Bahrain) que impôs um doloroso embargo económico a Doha, a quem aponta o dedo por patrocinar o terrorismo e desestabilizar a região cortejando o Irão xiita e Israel. Com uma única fronteira terrestre com a Arábia Saudita, por onde circulam a esmagadora maioria dos bens alimentares, a península do Qatar está virtualmente isolada depois do corte das ligações terrestres, marítimas e aéreas por parte da vizinhança. Mas Doha não dá sinais de cedência e as grandes potências estão a posicionar as suas peças no tabuleiro: a Turquia, invocando os valores islâmicos, aprovou envio de tropas para a região; a Rússia, com quem o Qatar tem fortalecido relações – o fundo soberano do emirado comprou 20% da Rosneft – tem mostrado simpatia com a causa de Doha; já os Estados Unidos tratam um aliado com ambiguidade, colocando James Mattis, secretário da Defesa, a vender 35 caças F-15 e elogiar o «compromisso do Qatar com a segurança regional», ao mesmo tempo que Donald Trump valida e apoia a posição saudita.

Como é que chegámos até aqui? Há quem diga que a gota de água que fez transbordar o copo foi o resgate que o Qatar pagou (de centenas de milhões de dólares) a um grupo terrorista que raptou parte da família real qatari durante uma excursão de caça no Iraque. Outros sugerem que as declarações do líder do Qatar a elogiar o Irão e a condenar a Arábia Saudita, que Doha garante terem sido forjadas por um ciberataque (naturalmente atribuído à Rússia pelo FBI), são a prova de que não se pode confiar no país. Tudo epifenómenos de uma crise mais profunda. Desde a década de 90 que o Qatar adotou uma ‘política externa aventureira’, comportando uma dose de risco inversamente proporcional ao estatuto do emirado. A diplomacia qatari quer sair da sombra de Riade. A Al-Jazeera, que os sauditas tentam silenciar, é a principal peça ao serviço de afirmação regional de Doha e amplificou o papel das oposições aos regimes totalitários durante a Primavera Árabe. O que é consistente com as posições de política externa do Qatar: o apoio à Irmandade muçulmana no Egito, à revolução tunisina, às forças anti-Kadafi, ou financiamento (e armamento) da oposição a Bashar Al-Assad na Síria. Mas nenhuma destas posições enfurece tanto os sauditas, guardiães da solidariedade sunita, quanto o desejo de Doha em despressurizar as relações com o Irão xiita. 

O Qatar não pisa o risco só porque quer ser um ator regional ou tem dinheiro para luxos. Doha vai aos limites porque opera debaixo do chapéu de segurança americano. Lembremos que Al Udeid, no Qatar, é uma das mais importantes bases militares na região, a partir da qual 10 mil soldados americanos se envolvem na luta contra o Daesh no Iraque e na Síria. Apesar das divergências entre Mattis e Trump, uma coisa parece certa: a política externa dos Al Thani tem tido a bênção de Washington. Ela permite aos americanos estabelecer canais de intermediação valiosos com grupos como os Talibã ou Hamas.

O desfecho para a crise é incerto. Mas o mais provável é que o Qatar peso pluma continue a socar como um peso pesado.