Cova da Moura. O que se disse em fevereiro de 2015 e o que se diz agora

Em fevereiro de 2015, quando vieram a público os relatos de tortura na Cova da Moura, várias entidades expressaram a sua preocupação. A PSP falou de invasão de esquadra

É um caso inédito no país. O Ministério Público acusou 18 agentes da esquadra de Alfragide, todo o corpo da esquadra, pela prática dos crimes de falsificação de documento agravado, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado. Em causa, a detenção de seis jovens do bairro Cova da Moura entre 5 e 7 de fevereiro de 2015. Recuamos dois anos para relembrar o que foi dito na altura.

"Uma dezena de jovens tentou invadir a esquadra da PSP de Alfragide pelas 14h de quinta-feira". Corria o dia 5 de fevereiro de 2015 e foi esta a notícia veiculada por diferentes órgãos de comunicação. A versão dos acontecimentos relatados pela polícia era que o jovem fora detido no bairro Cova da Moura depois de ter atirado uma pedra contra a carrinha da polícia, partindo um vidro. Foi levado para a esquadra de Alfragide e seguiram-se desacatos. 

As explicações foram dadas então à Lusa pelo subcomissário Abreu, porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa (Cometlis) da PSP. A polícia chegou a disparar um tiro de 'shotgun' para o ar para dispersar o grupo, referiu a mesma fonte. Na sequência da detenção, os restantes jovens, com idades entre os 23 e 25 anos, "tentaram invadir" a esquadra, tendo sido disparado um novo tiro para o ar, segundo a PSP. Foram detidos cinco elementos do grupo e os restantes fugiram. Os detidos, todos do sexo masculino, permanecem na esquadra e serão notificados para serem ouvidos em tribunal, explicou o porta-voz do Cometlis.

Dois dias depois, os jovens sairiam em liberdade com termo de identidade e residência, dizendo que só tinham ido à esquadra saber do amigo e foram torturados e humilhados pelos polícias.

Segundo a acusação deduzida pelo MP, conhecida hoje, o que aconteceu nestes dois dias configura mais de cinco crimes diferentes. “No essencial está indiciado que os agentes da PSP, em fevereiro de 2015, com grave abuso da função e violação dos deveres que lhes competiam, fizeram constar de documentos factos que não correspondiam à verdade, praticaram atos e proferiram expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos, prestaram declarações que igualmente não correspondiam à verdade e privaram-nos da liberdade.”   

Os acontecimentos foram condenados na altura pela Amnistia Internacional Portugal, que enviou uma carta ao provedor da Justiça sobre este caso. “A Amnistia Internacional acaba de lançar a campanha Jovem Negro Vivo, com enfoque especial em países como o Brasil, onde se entende ser urgente mobilizar a sociedade e romper com a indiferença. De facto, para a organização de direitos humanos, as consequências do preconceito e dos estereótipos negativos associados a estes jovens e aos bairros onde vivem devem ser amplamente debatidas e repudiadas.” A Amnistia assinalava que, a confirmarem-se os relatos, “estes serão tanto mais graves pelo facto de Portugal ter iniciado este ano o seu mandato no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas para o triénio 2015-2017.”

O caso atravessou fronteiras, a organização não-governamental Islamic Human Rigths Commission (IHRC) emitiu um comunicado que assinalava que a dependência de Londres condenava veementemente o recente raide policial no bairro Cova da Moura e a “brutalidade policial” durante e depois.

“Estes acontecimentos não podem ser vistos de forma isolada no contexto europeu. Na realidade, revelam o clima contemporâneo de criminalização e perfil racial da juventude negra na Europa e o ortalecimento da vigilância”. Islamic Human Rigths Commission (IHRC)

A plataforma SOS Racismo e a Associação Cultural Moinho da Juventude, que condenaram desde a primeira hora a violência, dizendo que esta não era inédita no bairro, organizaram um protesto junto ao Parlamento. Além dos moradores, Boaventura Sousa Santos foi um dos manifestantes. Na altura, o investigador defendeu ser preciso perceber o que está errado na conduta policial.

No parlamento

Os acontecimentos motivaram logo em fevereiro perguntas do PCP e Bloco de Esquerda.

O PCP quis saber que diligências tinham sido tomadas pelo MAI, quer a nível interno pela PSP, que junto do IGAI. O Bloco de Esquerda dirigiu questões no mesmo sentido ao MAI. As respostas do governo chegaram quase dois meses depois, em abril, sem fazer juízos de valor sobre o caso.

O MAI informava que no seguimento da ocorrência policial foram detidos seis cidadãos, por motivos constantes nos autos que foram entregues ao tribunal da Comarca Lisboa Oeste. Fora também entregue a queixa de uma mulher que referia ter sido atingida com bagos de borracha. “Todas as ocorrências policiais que envolvam o recurso a arma de fogo são cuidadosamente analisadas pela Inspeção da PSP, no sentido de se avaliarem as circunstancias e os factos referentes a cada situação, a luz da legislação em vigor, tendo sempre como referencia os limites da atuação policial, sustentados na legalidade, necessidade, proporcionalidade e adequação”.

Em março daquele ano, o MAI viria a criar uma comissão de alerta precoce, com vista a “ identificar as situações que possam estar na origem de conflitos com as autoridades e/ou intracomunitárias, alertar as entidades e autoridades competentes para essas situações e, através do diálogo e da cooperação, procurar as soluções mais adequadas para prevenir conflitos e para contribuir para a definição de soluções”, lia-se na nota divulgada pelo ministério. Segundo avança hoje o “DN”, não existe um balanço da atividade desta estrutura.

No verão de 2015, o MAI informou que tinham sido instaurados processos disciplinares contra nove elementos da PSP e arquivados os casos relativos aos outros polícias. Hoje, fonte oficial da PSP referiu que tanto os meios disciplinares internos quer a IGAI concluíram, tempestivamente, pela condenação de dois polícias e pelo arquivamento dos processos relativos a outros sete agentes. O MP faz uma leitura diferente. “No essencial está indiciado que os agentes da PSP, em fevereiro de 2015, com grave abuso da função e violação dos deveres que lhes competiam, fizeram constar de documentos factos que não correspondiam à verdade, praticaram atos e proferiram expressões que ofenderam o corpo e a honra dos ofendidos, prestaram declarações que igualmente não correspondiam à verdade e privaram-nos da liberdade.”