Uma elegância que dispensava bigode

Carregal, filho de pai português branquela e de mãe negra retinta, foi o primeiro jogador de cor do futebol brasileiro.

Recuemos a 1907. O Rio de Janeiro já era lindo antes de Gilberto_Gil e daquele abraço. Ah! O Rio! Já leram Carnaval no Fogo de Ruy de Castro? Leiam, leiam. É tão indispensável ler Carnaval no Fogo como para o Ega, de Os_Maias, conhecer o Craft.

Rio de Janeiro, portanto. Zona Oeste. Bairro de Bangu. Local onde surgiu a Fábrica de Tecidos Bangu. Primeiro chamou-se Companhia Progresso Industrial do Brasil. Foi lá que se instalou um inglês: Andrew William Procter. Mário Filho: «As ligas pretas chegam a ferir os olhos na perna branca de_William Procter._Parece até que ele não acabara de se vestir, que viera correndo, lá de dentro, para a pose fotográfica, sem calças, de cuecas. Principalmente porque está ao lado de_Francisco Carregal, todo vestidinho, entre Francisco Carregal e James Hartley que, além das meias de lã, botou, cobrindo as pernas, as caneleiras. caneleira era coisa rara, não havia por aqui, só vindo da Inglaterra, como um verdadeiro requinte». Mas havia também o requinte de_Francisco Carregal.

Filho de português branquela e mãe brasileira negra retinta. Havia dois portugueses no Bangu, não bairro, que nesse havia vários, mas na equipa, na altura The Bangu Athletic Club, bem britânico como se percebe: Francisco de Barros e Justino Fortes. Barros, o Chico Porteiro, guarda da fábrica, era bruto de bater com a cabeça na trave da fome de bola; Fortes era grande como o Pico da Pedra Branca; Carregal era misturado, mulato. Os outros eram ingleses – Frederick Jacques, John Stark, William Hellowell, William Procter e James Hartley – e italianos – Cesar Bochialini, Dante Delocco e Segundo Maffeu. O Bangu tinha orgulho nessa mistura.

Mas o grande orgulho do Bangu era mesmo Francisco Carregal. No dia 14 de Maio de 1905, o Bangu venceu o Fluminense por 5-3. O Flu-mi-nen-se… Assim, soletrado do alto de toda a sua aristocracia. O jogo teve lugar no jardim da Fábrica de_Tecidos Bangu._Pela primeira vez um rapaz de cor jogava futebol nesse Brasil de todas as cores. «A franja na encosta cor-de-laranja, capim rosa-chá…».

Carregal era vaidoso, de uma vaidade cuidada a preceito. Trabalhava na fábrica, como tecelão. Aprumava-se pela manhã e era como se o dia não tivesse fim nas margens da sua elegância. Mário Filho outra vez: «No meio de ingleses, de portugueses, de italianos, sentia-se mais mulato, queria parecer menos, quase branco. Passava perfeitamente. Pelo menos não escandalizava ninguém».

Bem, escandalizar, escandalizava. Tanto que a Liga Metropolitana, instada pelas equipas que defrontavam o_Bangu, proibiu a utilização de jogadores negros.

Francisco_Carregal, como meio-português que era, estava-se nas tintas. Ao domingo, pontapés na bola; segunda, pela fresca, embrenhava-se nos teares até à hora da saída, pelas quatro da tarde.

A equipa do Bangu era um universo de bigodes. Carregal não usava bigode. Contentava-se com a sua molenga elegância de dândi. «Olha-se para a fotografia e só vêm bigodes. Bigodes caídos, como o de_Frederick Jacques, enrolados como o de José Villas-Boas, diretor de esportes, torcidos como o de João Ferrer, presidente de honra do Bangu. Somente três jogadores não usavam bigode: o porteiro Justino Fortes, o inglês William Hellowell, de cara muito branca, sem sinal de buço, lisa e macia feito rosto de menino, e o brasileiro Francisco Carregal».

Está tudo lá, n’O Negro no Futebol Brasileiro.

E na foto, formidável. Afinal, Formidável é sinónimo de foto.

Bocchialini: bigodinho maroto, pontas para cima, italianíssimo! Chico_Porteiro: bigodão pesado de pai de família com um rancho de filhos trotando-lhe nos calcanhares. John Stark: bigode espesso de quem precisa de o cofiar para passar o tempo.

Francisco Carregal está na frente. Orgulhosamente colorido na sua pele trigueira. A bola é dele. Isto é, segura-a ternamente, numa ternura de cachorrinho abandonado, a data da fotografia desenhada a giz: zero-cinco-traço-cinco-traço-catorze.

Lá está – 14 de Maio de 1905.

O Fluminense humilhado na sua superioridade nobre e frondosa de Laranjeiras.

E Mário Filho sentenciando: «Não havia o perigo de que um_Francisco_Carregal, apesar de mulato limpo, ou um Manuel_Maia, apesar de bom preto, respeitador, entrasse no Fluminense».

Francisco_Carregal está com um ar sério, introvertido, ensimesmado. Tinha aquela coisa de ser diferente que o fazia comprar botinas, calções, meias, tudo de novo em folha. A camisa, às risquinhas vermelhas e brancas, dava o_Bangu. Essas eram iguais para todos. Ao domingo, entrava em campo como se entrasse na igreja, para a missa do meio-dia. Quando se fartou, tornou-se tesoureiro do clube. Nunca quis usar bigode. A sua vaidade estava no traje.

afonso.melo@newsplex.pt