Cova da Moura. Queixa de violência policial chegou à ONU em 2011

Associações e defesa das vítimas falam de momento histórico na luta contra a intimidação e agressões arbitrárias no bairro. Pelo menos em  2013 houve três queixas. Até agora, nenhuma tinha tido reconhecimento público. Até esta semana, os seis jovens agora considerados vítimas pelo MP eram arguidos 

As queixas de violência policial na Cova da Moura, agora reconhecidas num despacho de acusão do Ministério Público, chegaram às Nações Unidas em 2011. Neste ano, um grupo de trabalho do Conselho de Direitos Humanos centrado nas problemáticas dos descendentes africanos esteve no país em maio e o bairro nos arredores da Amadora foi um dos locais visitados. O alerta das organizações não governamentais ficou patente no relatório final: de acordo com a consulta feito pelos peritos da ONU às associações, a polícia selecionava imigrantes afro-descendentes e levava a cabo operações de larga escala nos bairros onde vivem. 

“São identificados pela raça pela polícia e estigmatizados. Vários membros de uma comunidade predominante afro-descedentes informaram o grupo de trabalho de incidentes de brutalidade policial e casos em que a polícia invadiu casas no bairro da Cova da Moura sem um mandado de buscas sob o pretexto de estar à procura de alguém”, lê-se no relatório. “De acordo com os entrevistados, os jovens de ascendência africana da comunidade eram muitas vezes de identificação racial por parte da polícia, que os para na rua questionando-os simplesmente por causa da cor da pele.”

Para as associações ouvidas pelo i, a acusação do MP contra 18 agentes da esquadra de Alfragide pelos crimes de falsificação de documento agravado, denúncia caluniosa, injúria agravada, ofensa à integridade física qualificada, falsidade de testemunho, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e sequestro agravado, são um momento de viragem.

“É um caso histórico”, diz do caso Mamadou Ba, um dos dirigentes do SOS Racismo. “De tantos anos a termos um Estado cego, surdo e mudo no que diz respeito à atuação racista das forças de segurança, pela primeira vez temos uma acusação com esta dimensão.”

Para Ba, esta actuação é histórica porque “pela primeira vez temos uma esquadra inteira a ser arguida num processo de violência policial por causa da discriminação racial”.

Isto “ajuda a descontruir o mito da não existência de racismo nas instituições, nomeadamente no seio das forças de segurança”, acrescentou, acreditando que possa ser “um primeiro passo para o reconhecimento da existência do problema e de termos de construir respostas para o mesmo”.

Além de as pessoas poderem, finalmente, perceber “que podem aspirar à justiça, Mamadou Ba salienta que pode ser uma oportunidade para “a polícia fazer um exame de consciência”, olhar para dentro e tentar “encontrar soluções para combater “o flagelo do racismo no seu interior”.

O dirigente da SOS Racismo espera, igualmente, que este caso possa servir “para o poder político, olhar com mais responsabilidades e com compromisso mais firme no combate contra o racismo”.

“O que era importante fazer era uma alteração jurídica que criminalize a prática do racismo”, para que não seja apenas resolvido com coimas aquilo que deveria ser penal.

Lúcia Gomes, advogada de defesa dos seis jovens, sublinha que, até esta semana, os mesmos eram arguidos no processo em curso, que acabou por reunir os autos da polícia e as denúncias dos visados. Os jovens foram ilibados e os agentes foram acusados, tanto os diretamente envolvidos na detenção de Bruno Lopes como os que estiveram nas esquadras e agiram em conluio. Para a advogada, avançar-se na tipificação da violência policial por discriminação racial poderia ser uma proposta interessante, embora sublinhe que isso seria reconhecer que estes ilícitos existem. Nos EUA existe esse crime, na Europa não é prática. 

A advogada admite que não estava à espera deste desfecho porque já esteve envolvida noutros processos de violência policial e nenhum deles acabou em acusação contra os agentes. "Pela experiência que tenho tido, não esperava que fosse uma acusação tão certeira e tão corajosa. Toda a investigação foi absolutamente exemplar. Foram dois anos de investigação constante, recolha de prova, inquérito policial, reconhecimento dos suspeitos e recolha de todas as evidências. Acho que o inspetor e a unidade à frente do processo foram profundamente corajosos. São polícias que vão investigar polícias." 

Lúcia Gomes defendeu ainda só com melhor formação dos agentes e uma maior ligação com a comunidade se poderá melhorar a situação no bairro. "O mais importante é prevenir, assim estamos a correr atrás do prejuízo. Chegou a haver projetos em que os polícias estavam no bairro, jantavam com as famílias. Nestes casos tem de haver proximidade, comunicação entre os bairros e os policias e muita formação policial", sublinha a advogada, que dá o exemplo da violência doméstica como área em que o reforço da sensibilização dos agentes teve um impacto positivo. "Hoje em dia não há nenhum agente que não esteja sensibilizado para esta matéria e são estes agentes até que dão algum empoderamento às vitimas para que avancem com os processos que é coisa que às vezes no Ministério Público ainda não se vê. É um exemplo muito concreto de como a formação é essencial."

Clima de intimidação

Pelo menos em 2013 já tinha havido três queixas sobre intervenções policiais da esquadra do Corpo de Intervenção Rápida em Alfragide e das esquadras da PSP de Alfragide e Damaia. Em 2015, estes antecedentes foram questionados pelo PCP numa pergunta dirigida ao MAI, em que dava conta de os moradores afirmarem que "não há semana em que não se veja no bairro homens/mulheres de qualquer idade, deitados no chão, quase nús encostados à parede, numa imagem do mais degradante para o ser humano".

Lúcia Gomes admite que a conduta policial não se tem alterado. "O bairro continua a ser cercado de quando em vez. E quando digo cercado é porque quando os agentes fazem as rusgas bloqueiam todas as saídas do bairro com as carrinhas e as pessoas ficam ali presas, não só residentes mas quem lá esteja. Fazem regularmente estas visitas ao bairro, a qualquer hora", diz a advogada. "Há uma coisa que é preciso notar: o bairro tem uma vida com os hábitos culturais cabo-verdianos, as pessoas estão sempre abertas e as pessoas estão na rua, as crianças estão na rua a brincar. É frequente ver-se uma carrinha da brigada de intervenção rápida sair e haver agentes com shotgun a mandarem toda a gente para dentro de casa. Há uma normalização deste tipo de intervenção", continua, acrescentando ainda o facto de a maioria dos agentes agora indiciados pelos acontecimentos de fevereiro de 2015 terem continuado a fazer patrulhas.

Jakilson Pereira, da Associação Moinho da Juventude, que trabalha com alguns dos jovens agora declarados ofendidos pelo Ministério Público, contou ao i que o clima de intimidação se mantém. Ontem, a presença policial no bairro parecia até ser reforçada. "Não queremos ser exepção, queremos que a polícia intervenha quando tem de intervir mas com respeito", diz Jakilson, que chegou a ter quatro processos contra si também por desrespeito à autoridade. "Chega a haver casos de pessoas todas ligadas que estão em tribunal como arguidos enquanto os polícias não têm nenhum arranhão e não são acusados". Jakilson sublinha que este caso foi público, mas outros no passado não. Para haver mudança, defende que é preciso deixar de estigmatizar o bairro, uma vez que esse estigma acaba por perpetuar a violência e o racismo. "As crianças crescem a ver os pais serem detidos e ofendidos", lamenta.

Com o início das férias judiciais a 16 de julho, o caso deverá ir a julgamento no outono. Há ainda a hipótese de ser requerida a instrução, abrindo-se uma nova fase de investigação.