Paulo Pires: “A moda para mim hoje em dia resume-se a abrir a Vogue”

Diz não ter muitas memórias de infância, que acredita serem uma construção sobre o que vamos ouvindo contar sobre as primeiros anos de vida. Também acredita que nunca chegou demasiado cedo a nada e que se a representação não se tivesse cruzado no seu caminho, bem poderia ter sido psicólogo, fotógrafo, escultor, músico ou qualquer…

Aos 50 anos, ninguém lhe tira a pinta de galã mas no seu mais recente papel como protagonista da nova série da RTP, Madre Paula, interpreta D. João V, o rei que até pode ser magnânimo mas que é, indubitavelmente, muito mais complexo do que isso.

Mesmo acreditando que as recordações são uma construção, terá certamente as suas. 

Uma das coisas mais remotas de que me lembro são uns caranguejos a andar no chão de casa, aquilo impressionou-me. Não sei se o meu pai tinha ido comprar caranguejos para fazer em casa. E depois lembro-me do dia 25 de Abril, tinha sete anos, e de estar na cozinha em casa dos meus pais a ouvir o ‘Grândola Vila Morena’ e a perceber que se estava a passar alguma coisa.

Isso tudo em Portalegre?

Sei que corre que nasci em Portalegre, mas eu nasci aqui ao lado, na Alfredo da Costa (risos).

De onde vem esse boato, então?

Os meus pais são de Portalegre e alguém um dia decidiu espalhar isso. Atenção que não tenho problema nenhum com Portalegre, acho uma cidade muito gira, mas nasci na Alfredo da Costa, muito mais banal do que nascer em Portalegre! Os meus pais casaram e vieram para Lisboa, a minha irmã, que é quatro anos mais velha, já nasceu cá. Depois vivemos muitos anos em Queluz.

Foi nessa zona que passou a infância, então?

Em Queluz cresci numa zona que se chamava Alto dos Moinhos, e existiam de facto moinhos que na altura já não funcionavam. Havia imenso espaço, uma coisa que veio a perder-se nesse tipo de subúrbio. Em Queluz vivia a 500 metros do campo, na verdade. Lembro-me de a minha irmã ir a uma vacaria comprar o leite com uma bilha de alumínio e eu ia brincar, jogar à bola, às escondidas e ao salva a bandeira, aquelas coisas que se fazem. Eram horas a fio a brincar na rua, nos terrenos cheios de erva. Lembro-me das tardes de calor na rua e de estarmos sentados porque não conseguíamos mais jogar à bola, tal era o calor.

Cresceu na cidade e no campo ao mesmo tempo.

A minha infância e adolescência foram passadas perto da cidade, mas não tinha um contacto diário com Lisboa. Estudei sempre na escola pública em Queluz, depois do nono ainda fiz um ano em Arte e Design no Liceu Nacional de Queluz e depois vim para uma escola em Lisboa porque mudei para Desporto. Mas sim, a minha infância foi muito passada na rua, não no sentido de ser uma coisa de abandono (risos). Na rua de viver as coisas, daquilo que não é por exemplo a vida das minhas filhas hoje, de brincar com aquele grupo de amigos.

Faziam muitos disparates? Tem aquelas histórias de partir a janela da vizinha?

Fazíamos disparates e chateavam-nos ora porque fazíamos barulho ora porque não éramos boa companhia para o filho de determinada pessoa, ora porque a bola caía num quintal e algum tinha que saltar para a ir buscar. Tínhamos um vizinho que rasgava a bola quando ela ia para lá, ficava furioso. E tocávamos às campainhas, tirávamos o ar dos pneus e dizíamos disparates quando as pessoas atendiam o intercomunicador. 

Apanhou muitos castigos ou nem por isso?

Fui escapando mais ou menos ileso. Sempre fui relativamente discreto nos meus disparates, fui conseguindo fazer as coisas assim sem os meus pais se aperceberem muito ou sem ter feito coisas verdadeiramente graves, na verdade.

Havia algum ritual de família, ir à Baixa por exemplo?

Não, mas lembro-me de quando vim a primeira vez sozinho de comboio ao Chiado com os meus amigos, esse tal grupo. Cada um trazia o dinheiro que os pais tinham dado para comprar um disco. E eu vim comprar acho que foi o Highway to Hell dos AC/DC., nos Armazéns do Chiado. 

Andava muito de comboio? A Linha de Sintra comemorou, este ano, 130 anos.

Diariamente, desde que me mudei da escola em Queluz para a Patrício Prazeres, ali ao pé de Santa Apolónia. Tinha que apanhar o comboio até ao Rossio que grande parte das vezes, quando chegava a Queluz, já vinha cheio, não se conseguia entrar. Então as pessoas tiravam o botão do ar, as portas em fole podiam abrir e as pessoas vinham penduradas tipo Índia.

Os problemas atuais com transportes são para meninos ao pé dessa descrição.

Vim imensas vezes pendurado nas escadas do comboio até S. Domingos de Benfica, por aí. Depois saíam umas pessoas e conseguia entrar. Uma vez deixei cair uma caneta e não a consegui apanhar, o aperto era tal que eu não me podia baixar. Era de facto incrível. 

Como define o seu contexto – veio de uma família conservadora, muito fechada, muito aberta?

Um equilíbrio entre uma família normal, conservadora e ao mesmo tempo com abertura. Fui batizado mas nunca tive qualquer contacto com a Igreja Católica. Os meus pais gostavam muito de dar passeios de carro. Lembro-me de fazermos viagens até França, eu gostava muito. E de ir para o Alentejo. A minha avó tinha um terreno grande que se chama uma courela, eu gostava de ir para lá. Isto numa aldeia perto de Portalegre chamada Alagoa. 

E passava lá os verões?

Passava o verão muito no Algarve, na zona da Praia Verde, e depois sempre uns tempos no Alentejo. O meu avô tinha imensos animais e um negócio de cortiça. Iam lá os camiões buscar cortiça e eu lembro-me de viajar em cima das pilhas de cortiça, que era uma coisa assustadora. Hoje em dia, quando vejo isso na estrada e digo à minha filha, ela diz: «Uau, ias lá cima?». Lembro-me de o meu avô ter uma mota e de eu ir, miúdo, agarrado a ele com um capacete que me ficava grande na cabeça. A minha irmã passava lá temporadas maiores, ficava lá com a minha avó. Nunca tive essa ligação tão forte, sempre estive mais perto dos meus pais.

Porque era rapaz?

Não sei, talvez. A figura da minha avó materna durante um tempo, quando era miúdo, assustava-me um pouco. Não porque ela fosse uma pessoa austera mas porque se vestia toda de preto. Nas primeiras memórias que tenho dela ela já estava de luto. Houve um tio que morreu, o meu avô que morreu e ela nunca tirou o preto. 

Outra característica muito profunda do Alentejo.

Viviam o luto de uma forma… uma prisão autêntica.

Voltemos à sua vida em Lisboa, para a altura em que seguiu Desporto. Quis ser treinador, jogador?

Não. Gostava muito de artes e quando estava em Arte e Design dizia, não muito a sério, que escultura era uma coisa que me interessava fazer. Ainda hoje gosto. Embora tenha pintado, já não o faço há imenso tempo. Mas era para mim, uma terapia quase, era o ato de estar a pintar que me sabia bem.

Era uma catarse.

Era. Sou uma pessoa criativa, modéstia à parte, gosto de tudo o que puxe pela minha imaginação sobretudo fotografia – essa sim é uma das minhas grandes paixões. Mas lá está, julgo que nunca seria um grande pintor.

E como aparece o desporto no meio disso tudo?

Não sou de todo uma pessoa que me feche num universo e que diga: «É só disto de que gosto, se não puder ser isto não quero ser mais nada na vida». Tenho muitas solicitações sob o ponto de vista do interesse sobre as coisas. Adoro música e tenho pena, de certa forma, de não ter sido músico. Na altura não queria ser desportista, mas fiz remo e acabei por começar a jogar voleibol. Pensei na altura em seguir psicologia mas encarava a possibilidade de fazer o ISEF, daí ter deixado um pouco em aberto. Passei por várias coisas que poderiam ter sido caminhos para mim e todos eles poderiam fazer sentido.

Gostava de ter outras vidas para ter oportunidade de seguir esses caminhos todos?

Gostava (risos). Gostava de ter sido músico, de ter tirado psicologia, que eu acho que é um curso que serve para todos os trabalhos e que devia ser quase um curso obrigatório. 

Nunca teve a sensação de que poderia não ser excecionalmente bom em todas as áreas por causa dessa dispersão?

Quem toca muitos instrumentos… Mas tenho vindo a dispersar-me cada vez menos e na altura não é que tenha dispersado…

Era uma força de expressão.

Eu sei, mas naquela altura estava, como muitos adolescentes, à procura de um caminho. E há aquelas pessoas que têm, não sei se é sorte se é falta dela, aquela coisa de saberem qual é exatamente o caminho deles ou delas. Eu não soube logo. E por isso é que a moda entra no momento em que tinha acabado de completar o serviço militar obrigatório. 

Foi logo à tropa assim que terminou o secundário?

Sim, estive lá 14 meses. Fiz a recruta em Sacavém e depois fui para o Instituto de Defesa Nacional (IDN) como ajudante do tenente-coronel Paula de Carvalho, uma pessoa absolutamente extraordinária que me impressionou logo no primeiro dia. Entrei no gabinete dele, dei-lhe o papel para me apresentar e o papel caiu. Antes que eu o apanhasse baixou-se para o apanhar e aquilo sensibilizou-me. Isto na tropa não acontece, não é o tenente-coronel que se baixa para apanhar o papel que deixei cair, sou eu que me baixo. Depois acumulei ainda a função de fotógrafo. Perguntaram-me se sabia carregar no botão, eu disse que sabia um pouco mais do que isso. Lembro-me de ir ao Regimento de Artilharia da Serra do Pilar, no Porto, e de o Cavaco Silva estar lá como primeiro-ministro.

Interessou-se por política nessa ou noutra fase da sua vida?

Não, não me interessava muito. Mas a minha orientação à esquerda sempre foi clara. Quando comecei a votar sempre votei de onde voto hoje para a esquerda, nunca de onde voto hoje para a direita (risos). 

Depois saiu da tropa diretamente para a moda. Qual foi a reação da sua família?

Não houve assim grande objeção. 

Já trabalhavam muitos homens na moda em Portugal quando começou?

Sim. Havia talvez um bocadinho o estigma de alguns modelos serem homossexuais. A questão que os meus pais puseram foi a mesma que me foi posta por todos os que me conheciam, que era o facto de a moda ser uma profissão efémera. Toda a gente dizia: ‘Então mas aí vais trabalhar até que idade?’. Trabalhar na moda foi um prazer por que me deu a possibilidade de viajar. Já devo ter dito isto imensas vezes, mas é verdade: é que trabalhar na moda é uma profissão em que podemos trabalhar em qualquer país, a nossa língua é universal. E eu, entre aspas, servi-me desse trabalho para viajar e conhecer países que queria conhecer. E fui ganhando muito mundo com isso.

Que idade tinha quando foi desafiado para ser modelo?

Nada na minha vida aconteceu muito cedo e acho que isso foi bom. Na altura, ir trabalhar na moda não me deslumbrou. Eu não queria ser modelo, nunca quis e nunca foi… Foi um trabalho por onde passei. Não nasci modelo, ninguém nasce nada, acho eu. 

Como isso aconteceu, ia a passar no Chiado e alguém o desafiou?

Mais acima, foi no Bairro Alto (risos), ao pé do (antigo) Papa Açorda, em frente a uma loja que o Mário Matos e a Eduarda Abbondanza tinham. Tinha uma namorada que deve estar com as orelhas a arder de tantas vezes que já contei isto (risos). Ela foi às compras e eu descrevo sempre esta imagem porque me lembro perfeitamente – ela era uma miúda cheia de estilo e até mesmo o tabaco que fumava era gitano, que era uma cena com uma caixa linda, um tabaco fortíssimo. Ela estava a fumar um cigarro cá fora e quando foi lá dentro estava o Pedro Felgueiras, que trabalhava com os donos da loja e convidou-me para fazer o desfile deles na FIL. Aceitei e acabei por ir à Central, à agência, que estava no início. Entrei e comecei a trabalhar. As coisas começam a correr bem e de repente e dão-me independência financeira. Deixei de precisar de pedir aos meus pais e de me angustiar.

Lembra-se do primeiro cachet que ganhou?

O primeiro dinheiro que ganhei foi a fotografar para o suplemento do jornal O Independente. O meu primeiro melhor cachet foi para o anúncio de um sumo.

O que fez com esse dinheiro?

Comprei um carro! Um Citroen Diane, da cor de uma lata de sardinhas, em que eu metia gasolina e ela saía por um buraco (risos). Se metesse mais do que, sei lá, do que seriam agora 15 euros começava a perder gasolina. Cheguei a viajar para a Zambujeira e tinha que levar um jerricã de gasolina dentro de um carro. 

Uma coisa muito segura!

Muito! A fumar cigarros com o jerricã lá atrás (risos). Uma vez em S. Martinho o capot, que era muito leve e tinha umas borrachinhas pretas ressequidas do sol, abriu-se e e dobrou-se todo. Tive que lhe bater com um pau para o pôr no sítio. E esse foi o primeiro carro que comprei.

Qual foi a produção mais maluca que fez?

Tive um trabalho que foi uma conquista na altura, foi ter feito um catálogo da Christian Dior em Londres e estavam centenas de pessoas no casting. Tinha o cabelo curto assim meio despenteado, o meu booker mandou-me pentear e ir ao casting. De facto ele tinha razão, fui passando até aos últimos três e acabei a fazer o catálogo. Tive de tudo um pouco, desde um desfile muita giro que fiz em Florença com o Gianfranco Ferré, em que ele próprio despejava garrafas em cima dos modelos antes de entrarem na passerelle com blusões de cabedal a escorrerem água, ou um desfile do Armand Basi, onde nos colocavam anéis nos dedos dos pés e aquilo magoava imenso a andar. Ou de estar no Japão, onde trabalhei mal, não era o meu mercado. A roupa não me servia, nos castings vestia casacos e encolhia-me a dizer que estava ótimo (risos). 

O mundo da moda nos anos 90 era aquele cliché do sexo, drogas e rock and roll?

Acho que essa imagem é mesmo um exagero. Confesso que passei sempre muito tranquilo ao lado das drogas. O sexo e rock and roll… (risos). Às vezes ouço cada história de outras profissões e penso: «caramba, ainda estão a falar da moda e da representação?».

Mas também não é um mito?

Não, existia e apercebias-te disso. Em Portugal não tanto mas em Milão, em mais do que em qualquer outro sítio, apercebi-me também das certas personagens que às vezes interferem. Os modelos normalmente não são as verdadeiras pessoas que estão na moda tipo ‘isto é a minha vida’. Quem está na moda dessa forma são normalmente os designers, os estilistas, os cabeleireiros, etc. Estão lá por carreira, ficam muitos mais anos. Depois havia os fashion victims que eram as pessoas mais ligadas às revistas e às vezes uns tipos com dinheiro que apareciam para e arranjavam uns esquemas para ficar com as miúdas, umas coisas assim.

Esta espécie de organização social ainda acontece? 

A moda para mim hoje em dia resume-se a abrir a Vogue. 

Era um homem que já tinha cuidado e gostava de se vestir bem ou isso chegou com a profissão?

Segundo os meus pais, sempre me vesti mal (risos). Continuei a ser eu porque a moda não me apanhou nos meus 15 anos. Apanhou-me nos 21, quando já tinha uma identidade, fosse ela qual fosse. Obviamente que me influenciou. Tive alguns cuidados mas nunca fui fundamentalista mesmo quando trabalhava como modelo. Vou com mais frequência hoje ao ginásio do que ia na altura. Na altura não tinha cuidados na alimentação, comia qualquer coisa, hoje tenho muito mais.

Mas é por si ou está a tentar educar as suas filhas para um estilo de vida mais saudável?

É por mim, tenho outra visão das coisas agora e estou mais informado, além de ter outra idade. 

O que mudou?

As coisas que entram em minha casa são de origem biológica. Não bebo leite, como alguns iogurtes mas muito poucos. Evito o trigo e coisas industriais, isto sempre com exceções. Gosto muito de comer mas de uma forma muito básica. Em termos de bebidas, quando comecei a trabalhar havia a moda da tequila, do gin que não era cagão como é hoje em dia. Enjoa um bocadinho esta moda, gostei de gin quando saía à noite e dizia: «Quero um Gordon’s tónico». Hoje as pessoas andam a passear aquela espécie de balde, tipo estatuto, não acho piada nenhuma. Só bebo água e vinho.

Como é que depois caiu no mundo da representação?

Tive uma primeira experiência com o José Álvaro de Morais, no Zéfiro, um filme em que fiz figuração. Fazia de Corto Maltese mas não falava. Para mim foi muito giro porque eu adoro o Corto Maltese. Mais tarde estava em Paris mas vim a Portugal, fiz uma entrevista, o Fonseca e Costa viu, quis conhecer-me e pôs-me à prova. O casting arrastou-se por dois ou três dias, aquilo nunca mais acabava e alguém me disse: «Não, já estas a ensaiar para o filme». 

Isso foi em que ano?

1995 ou 1996. As pessoas acham sempre que trabalhei 20 anos na moda, mas a minha carreira na moda foi muito mais pequena do que minha carreira como ator. Não gosto da palavra carreira, nem para uma nem para outra.

Por que não gosta?

Parece que é empolada. A minha fase da moda foi dos 21 anos… Sei lá, nem quero fazer coisas. Depois fiz então o filme Cinco Dias, Cinco Noites, com o Fonseca e Costa, fui protagonista com o Vítor Norte. Era baseado um livro do Álvaro Cunhal sob o pseudónimo de Manuel Tiago. Na altura fiz imensas entrevistas, o Álvaro Cunhal não gostava nada disso.

Alguma vez falou consigo sobre isso?

Sim, sim. O Vítor Norte depois até pediu para ele nos autografar o livro que era a base do filme, na estreia, e ele não o quis fazer à frente de ninguém. Depois quando saiu o Fronteiras enviaram-mo também autografado por ele. Mais tarde também fiz a série Até amanhã, Camaradas, também do Álvaro Cunhal. Isto para dizer que a seguir ao Cinco dias, Cinco Noites convidaram-me para fazer uma peça no Teatro Aberto onde me estreei com o Fernando Heitor em A minha noite com o Gil. Depois fiz outra peça no Teatro Nacional e só a seguir é que fiz televisão.

Aprendeu a ser ator sendo ator.

Sim. Aprendi com os melhores, comecei a trabalhar logo com belíssimos atores. No Cinco Dias, Cinco Noites ,havia uma equipa, desde o Fonseca e Costa ao diretor de fotografia, o Afonso Beato, um brasileiro que tinha acabado de fazer um filme de Almodôvar. O Vítor Norte tinha já não sei quantos filmes, o Miguel Guilherme, a Teresa Roby, a Ana Padrão…

Sentiu colo?

O que senti foi uma relação de igual para igual. Trataram-se sem qualquer preconceito, sem qualquer estranheza por eu estar ali, pelo menos no trato – não quer dizer que eles não pudessem pensar isso já que eu tinha aparecido ali sem qualquer formação como ator. 

É o que tenta fazer quando contracena com colegas muito mais jovens e inexperientes como era na altura?

Tento perceber a abertura. Cada pessoa tem o seu caminho, a mim não me faz confusão nenhuma que a pessoa saiba pouco e que faça mais uso da sua intuição e do instinto, que é o que acaba por acontecer quando não tem se uma técnica. A pessoa desgasta-se muito mais: quando ao ator está a trabalhar sem técnica está agarrado às emoções, vai tentar buscá-las aí.

Isso aconteceu-lhe?

Sim, fiquei cansadíssimo. Aliás, tive uns picos de tensão alta e deixei de beber café… Funcionava a café. Nunca mais, desde o Cinco dias, Cinco Noites, bebi café na vida. Bebo chá.

A técnica é essencial, acredita que as personagens já estão dentro do ator?

Cada ator tem o seu método. Lembro-me sempre daquela história célebre do Marathon Man em que um está sentado na cadeira a ler o jornal à espera da cena, o Laurence Olivier, e o Dustin Hoffmann está para ali a correr para quando começar a cena estar ofegante. Depois diz-se ação, o Laurence larga o jornal, começa a fazer a cena e é brilhante. E o Dustin pergunta-lhe: «How can you do this?». [Resposta do Lawrence]: «My friend, I just pretend». (risos) Acho que as personagens estão de certa forma um pouco dentro de nós. Penso que era o Orson Welles que dizia que de facto temos um leque de possibilidades e é um bocado ir buscar essa qualquer coisa em nós e construir com outra coisa qualquer. O que acho que acontece é que muitas vezes as personagens vão descobrir coisas em nós e vão potenciar inclusivamente lados negativos ou positivos que temos, às vezes há uma contaminação. 

E essa contaminação depois perde-se com o tempo?

Sim ou não. Por exemplo, durante algum tempo fiz uma personagem muito negativa em televisão, ainda por cima de dois gémeos, dois tipos terríveis e senti que eles estavam comigo, aquilo era uma carga pesada.

Tem ideia de quantas novelas já fez?

Não fiz assim tanto. A minha primeira novela foi no Brasil, só depois mais tarde comecei na TVI e devo ter feito umas dez, só que como tenho tido de há oito anos para cá um contrato com a TVI tenho feito mais novelas. São sempre o que chega a mais gente.

Não tem medo de ficar com o carimbo de menino das novelas?

Isso não é bom para ninguém, seja qual for o carimbo. Mas também depende da leitura que as pessoas façam das coisas. Em Portugal não há uma indústria de cinema que permita às pessoas serem independentes, é muito difícil as pessoas fazerem só cinema e teatro embora muitos atores tenham essa tentação. Também já a tive. Mas também gosto de me desafiar e o trabalho em televisão também é um desafio. Não é necessariamente um trabalho menor, é até um trabalho extremamente difícil, é uma coisa muito rápida. Tens que chegar lá todos os dias com uma peça e metê-la no puzzle. 

Acha que o público que vê novelas está mais exigente?

Quem faz é que  tem de ser mais exigente, nós portugueses às vezes jogamos em terrenos sempre seguros. A nível da novela penso que às vezes se podia arriscar mais e não ir tanto atrás do público, fazer ao contrário, pôr o público atrás da novela. O Brasil faz isso, lança coisas polémicas e quase modas, acho que está à frente das pessoas e isso acaba por ser mais estimulante. Foi isso que as séries fizeram. Há uns anos queria ver-se um bom produto e via-se cinema. Agora, toda a gente vê séries. 

E Portugal começa a agora a acompanhar essa tendência.

Sim. E partindo do princípio que é para um horário… Isso é outra coisa que condeno em Portugal: se é para ser formato novela, não gosto de novela a metro no sentido em que se faz novela, corta-se e põe-se no horário que se quer. Para mim as novelas têm que ter um horário fixo, porque os conteúdos têm a ver com o horário. Sou do tempo – isto parece uma frase de um velho mas a verdade é que já vivi o suficiente para ser do tempo – em que, inclusivamente, se pedia desculpa em televisão por ter havido um atraso (risos). Mas estou a falar de uma coisa passar àquela hora, gosto de haver a novela das 9, a das 10.

O carinho que recebe do público difere consoante os papéis que está a fazer?

As pessoas, principalmente as de mais idade, são por vezes influenciadas por essa carga negativa ou positiva das personagens. 

Já teve alguma situação caricata?

Houve coisas curiosas. Por exemplo numa personagem que fiz em televisão, na novela O Meu Amor. Foi a primeira novela que ganhou um Emmy e eu fazia um taxista. Fui abordado por muito mais homens do que normalmente sou, costumam ser mais mulheres.

E não só taxistas.

E não só taxistas. Depois, na novela Belmonte, em que fiz de padre, nunca fui tão assediado como nessa altura (risos). Qualquer outro galã que tenha feito não chegou aos calcanhares de padre. Fui mais abordado pelas mulheres do que em qualquer outra das vezes.

Como se lida com esse assédio?

De uma forma geral, com um sorriso na cara.

Acha que para as mulheres é mais desconfortável?

Numa ocasião ou noutra acho que sim, que pode ser mais. 

Ouvi dizer que não queria cortar o cabelo de D. João V quando acabaram as gravações da Madre Paula.

Demorou tanto tempo a crescer! (risos). Não era tudo cabelo meu mas tinha muito cabelo meu. Tive ali muito tempo em que consegui fazer outros trabalhos com o cabelo mais comprido, inclusivamente a última peça que fiz, Os Dias Realistas. Tive de usar rabo de cavalo. Ainda consegui fazer dois filmes e duas peças de teatro a acompanhar o crescimento do cabelo. 

Soube quanto tempo antes que ia protagonizar a série?

Com muita antecedência. Uns bons meses. 

Gosta de História?

Nem por isso. A minha irmã é professora de História, mas eu nunca fui o tipo de pessoa que sabia os reis de cor.

E falou com ela sobre D. João V?

Falei, cheguei a ligar-lhe inclusivamente a meio das gravações com dúvidas, sei lá, sobre a Guerra da Sucessão. Coisas que iam surgindo no texto e que me faziam pensar sobre qual seria a posição de Portugal. Mas hoje em dia temos o Google e li muito. Quando soube que ia fazer a série, dois dias depois fui a Mafra com a minha família visitar o convento e tive no quarto a ver a cama de D. João V.

Qual foi a perceção que trouxe dessa visita?

A primeira reação que tive foi ter a noção de que, em termos físicos, sou muito diferente de D. João V. Mas essa aproximação não era pretendida…

Até porque se fosse a Madre Paula teria buço.

E seria o dobro do que é a Joana. Mas a abordagem não foi por aí. Ali o que me impressionou foi o tamanho da obra em si, não lhe vou chamar um megalómano… 

Julgo que pode chamar. 

Ele esbanjou muito dinheiro mas também deixou obra, como o Aqueduto das Águas Livres. E era alguém que gostava de música, era um tipo erudito. Segundo consta, a rainha Maria Ana era super culta. 

Este papel tem uma grande carga sexual. Foi o mais difícil que fez nesse sentido até agora?

Não, nem acho que tenha sido de todo difícil por isso – a série não se resume à obsessão do sexo. Trata-se de um homem cheio de energia, sexual, mas também apaixonado. Para mim as grandes forças da série são a paixão pela Madre Paula e o confronto com o irmão. Essa rampa entre um homem que era um déspota e um homem apaixonado e que se esquecia do resto. Mesmo que um historiador diga que não era exatamente assim, a série era. A ficção não é um documentário. Eu próprio comecei a pesquisar coisas sobre D. João V, não me esqueci, mas depois parti para o guião da Patrícia Müller, que fez uma investigação e estudo maior do que o dos atores para construir esta trama. Deu-me gozo fazer deste homem que me pareceu querer ser justo quase sempre. É um homem que respeita imenso a figura da rainha enquanto rainha mas não a respeita como mulher. Depois tem outro traço: dizia-se que sofria de crises de melancolia que seriam hoje em dia depressões. Dantes havia, inclusivamente, algum culto do estado melancólico. Mas acho que ele tinha algum potencial depressivo e bipolar, mas isso agrada-me, gosto dessas dicotomias na personagem. 

Qual é a percentagem de importância de um texto no trabalho de um ator?

Muita, muita. Não consigo quantificar porque também depende de outros componentes, como a forma como é filmado.

Ficou chocado com algo que tenha descoberto sobre a sociedade do século XVIII?

Fiquei surpreendido com as visitas frequentes aos conventos, era um hábito. E também não sabia que havia freiras que nem sequer se vestiam de freiras e fiquei espantado com isso. Havia todo um submundo que desconhecia.  

Fez 50 anos este ano. O número é uma contingência do cartão do cidadão ou significa alguma coisa?

Ainda tenho bilhete de identidade (risos). Mais do que olhar para trás, olho para a frente. 

Lida bem com o envelhecimento?

Que remédio! Até hoje, tenho lidado bem. Mas temo como qualquer pessoa o futuro do envelhecimento. Espero continuar a viver com qualidade de vida, isso é mais importante do que as rugas.