Alterações climáticas. O pior ainda está para vir

As previsões científicas admitem que os fenómenos extremos no clima vão tornar-se cada vez mais frequentes e que isso vai implicar profundas mudanças na nossa vida

O último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que reúne o contributo de cientistas de todo o mundo sobre o impacto do aquecimento global, foi publicado em 2014, e uma nova versão só é esperada em 2022. Entretanto têm saído novos estudos que alertam para ameaças concretas, para além daquilo a que se assiste no dia-a-dia. O i faz um ponto da situação pouco animador.

“O tempo está a mudar”, comenta-se sempre que há um fenómeno fora do comum, seja calor ou remoinhos de vento e granizo em pleno verão. Se uns dizem que a natureza sempre fez das suas, os dados oficiais vão desenhando um novo cenário, com incógnitas mas também com ameaças concretas.

Na semana passada, a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos EUA alertou que, até junho, este foi o segundo ano mais quente de que há registo, só superado por 2012. É o sexto ano com maior precipitação e já foram registados no país nove desastres naturais com prejuízos superiores a mil milhões de dólares, entre os quais tornados e cheias – o que só não é recorde porque em 2011 e 2016 foram dez. As previsões sugerem que os fenómenos extremos vão tornar-se mais frequentes e as alterações no clima poderão ditar mudanças não só nos estilos de vida, mas também no mapa-mundo que conhecemos.

Em Portugal, as últimas análises do Instituto Português do Mar e da Atmosfera dizem respeito à primavera e ao mês de junho. Segundo o IPMA, o país viveu a terceira primavera mais quente desde 1931, depois de 1997 e 2011. Segundo uma análise divulgada também na semana passada, a temperatura média nos meses de março, abril e maio foi de 15,64 °C, mais 2,04 °C que o valor normal. O tempo esteve “excecionalmente” quente em abril, diz o IPMA, que adianta que houve uma onda de calor de mais de 20 dias nos distritos de Bragança, Guarda e Castelo Branco, mas que afetou, embora por períodos inferiores, todo o território. Foi a “mais significativa” observada em abril desde 1941.

No final daquele mês, 96% do território estava em seca fraca a moderada. Em junho, o cenário tornou a agravar-se e, no final do mês, cerca de 80% do território estava em seca severa ou extrema. No dia 17 de junho, que ficará para a história como um dos mais trágicos no país com as 64 mortes registadas no fogo de Pedrógão Grande, metade das estações meteorológicas registaram temperaturas acima dos 40 °C, e nessa noite e seguintes também metade das estações registaram valores de temperatura mínima iguais ou superiores a 20 °C, “noites tropicais” que volta e meia começam a fazer parte do nosso calendário. Choveu apenas 30% daquilo que é o valor médio para este mês do ano.

O que pode estar para vir, fruto das alterações climáticas induzidas em parte pela poluição atmosférica, mas com a sua dose de fenómenos naturais, como parece ter sido o caso do icebergue gigantesco que se desprendeu esta semana no Polo Sul, não traça um cenário nada otimista. Ondas de calor como as de junho são dez vezes mais prováveis hoje em Portugal e Espanha à conta das mudanças do clima, alerta uma coligação internacional de cientistas. O último relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, que reúne o contributo de cientistas de todo o mundo sobre o impacto do aquecimento global, foi publicado em 2014, e uma nova versão só é esperada em 2022. O i recorda os avisos deixados neste documento e as conclusões dos últimos estudos.

 

Subida das temperaturas – e se junho for o verão normal do futuro?

Segundo o último relatório do IPCC, o aquecimento global é inequívoco. “As últimas três décadas têm tido sucessivamente temperaturas à superfície da Terra mais altas do que qualquer outra década desde 1850”, lê-se entre as conclusões destacadas do documento, que diz ainda que o período entre 1983 e 2013 reflete, possivelmente, os 30 anos mais quentes dos últimos 1400 anos. 2012 foi precisamente o último ano avaliado pelo relatório do IPCC, sendo entretanto 2016 declarado o ano mais quente de que há registo a nível global, depois de os recordes terem sido batidos em 2014 e 2015.

Em abril, investigadores da Universidade de Yale, nos EUA, apresentaram um novo modelo climático que sugere que, mais do que um abrandamento no aquecimento entre 1998 e 2013, terá sido o enfraquecimento do fenómeno El Niño – que está relacionado com variações na temperatura da água no oceano Pacífico, o que interfere com as correntes de vento – a ditar uma espécie de hiato. Nos últimos meses tem havido algumas projeções de que o El Niño deverá ter uma maior manifestação no próximo ano, o que poderá levar a novos recordes de temperatura à escala global.

A longo prazo, as previsões deixadas pelo IPCC em 2014 já não eram animadoras. No final do século, esta bíblia das alterações climáticas diz que o aumento de temperatura à superfície vai provavelmente aumentar 1,5 °C a 2 °C – o limiar que os países tentam que não seja ultrapassado. Até 2035, o aumento deverá ir até aos 0,7 °C. A região do Ártico vai aquecer mais depressa e, segundo os peritos, é certo que vai haver mais fenómenos de calor extremo do que de frio e, muito provavelmente, as ondas de calor serão mais frequentes e mais longas, continuando a haver vagas de frio ocasionais.

Há duas semanas surgiu um novo alerta, já com base nos recordes nas ondas de calor prolongadas vividas em junho, também em Portugal. A World Weather Attribution, um projeto que junta cientistas de Oxford, Holanda e Melbourne para estudar a ligação entre alterações climáticas e fenómenos extremos, fez uma análise às temperaturas registadas e concluiu que, em países como Portugal e Espanha, as alterações climáticas tornaram este tipo de ondas de calor dez vezes mais prováveis. Esta análise faz uma referência às 64 vítimas mortais do fogo de Pedrógão e diz que o fumo deste incêndio e do fogo de Espanha nos dias seguintes chegou a ser visto da estação de Jungfraujoch, nos Alpes suíços, a 3580 metros de altitude. Os investigadores deixam boas e más notícias. Com o atual clima, temperaturas com este desvio face ao normal em Portugal podem ser esperadas a cada 25 anos, o que coloca a probabilidade de haver temperaturas tão acima da média todos os anos na casa dos 4%. O problema é o que está para vir. “Como as emissões de gases com efeitos de estufa passadas e projetadas vão continuar a aumentar as temperaturas, a frequência de meses de verão como junho de 2017 deve aumentar nas próximas décadas e aquilo que hoje é um junho pouco habitual será um junho normal no final do século.”

Em 2003, estima-se que as ondas de calor na Europa tenham feito mais de 70 mil mortes. Em Portugal foram estimados perto de 2 mil óbitos em excesso como consequência do calor extremo. Este ano, ainda não há estimativas a nível europeu nem nacionais, mas os investigadores da WWA admitem que os planos de contingência implementados nos últimos anos pelos diferentes países podem ter contribuído para mitigar o impacto. A monitorização diária do Serviço Nacional de Saúde revela, ainda assim, que, no mês passado, o dia 19 registou o maior número de idas às urgências, com 19 844 pessoas a procurar os hospitais, quando a média foram 16 722 episódios por dia. Houve outros dois dias com um número elevado de urgências, 5 de junho e 12 de junho. Este mês, ainda só houve um dia em que o número de idas às urgências ultrapassou a barreira dos 16 mil.

 

As megassecas e a chuva intensa

As projeções do IPCC apontam para o aumento da duração dos períodos de seca, e Portugal, assim como o sul da Europa, está na zona de risco. Um estudo divulgado em maio pela Universidade de Newcastle apontou mesmo para que, até 2100, pode haver períodos de “megassecas” em que a precipitação abaixo da média e as condições secas dos terrenos se mantêm por dez ou mais anos. O pior cenário é uma seca de 15 anos em que “chove metade da média” do que é esperado, disse na altura à agência Lusa a autora do estudo, Selma Guerreiro. Perante este cenário, que não afeta apenas Portugal, uma das preocupações é a segurança alimentar. O fenómeno El Niño tende também a exacerbar os períodos de seca e, no ano passado, as Nações Unidas traçavam um retrato preocupante da situação que se vive nos países do Corno de África. No final de agosto havia 24 milhões de pessoas em níveis de insegurança alimentar considerados críticos, o dobro face ao ano anterior. Só na Etiópia eram 9,7 milhões de pessoas a precisar de ajuda alimentar e 420 mil crianças em estado de desnutrição severa. Mesmo em países com mais infraestruturas, o impacto das variações do clima nas colheitas é notório. Mas ao mesmo tempo que há fenómenos de seca prolongada, episódios de precipitação fora do normal causam, além de inundações, a preocupação com doenças transmitidas por vetores. O Corno de África tem sido mais uma vez objeto de preocupação, com surtos de cólera. Mas há outros indícios de que a subida de temperaturas poderá tornar algumas regiões mais propícias a mosquitos capazes de transmitir doenças que até aqui existiam sobretudo em climas tropicais, o que, associado a fenómenos de precipitação fora do comum, pode favorecer o aparecimento de novas ameaças de saúde pública.

 

Grandes incêndios

O alerta de que o aquecimento global aumenta o risco de haver condições para a ocorrência de mega incêndios já tinha sido feito pelo IPCC em 2014 mas, este ano, um novo estudo veio apontar na mesma direção. Segundo o trabalho publicado na revista científica “Ecology&Evolution”, do grupo Nature, é possível estimar um aumento entre 25% e 50% dos dias favoráveis à ocorrência de grandes fogos, em que as temperaturas elevadas e reduzida humidade podem fazer propagar as chamas a grande velocidade – um cenário idêntico ao que se viveu em Pedrógão. A equipa liderada por David Bowman, da Universidade da Tasmânia, reviu neste trabalho dados de 23 milhões de fogos florestais entre 2002 e 2013 e estima que as áreas mais afetadas venham a ser a costa leste da Austrália, onde os grandes fogos já são recorrentes, mas também países do Mediterrâneo como Portugal, Espanha, França e Turquia. Os incêndios com maior área ardida em Portugal registaram-se em 2003, nos concelhos de Nisa e Proença-a-Nova, também o ano da pior onda de calor. Segundo uma análise divulgada este mês pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, estima-se agora que tenham ardido 20 mil hectares em Pedrógão, valor que fica, assim abaixo, das projeções do sistema europeu EFFIS. O ICNF optou por separar todos os incêndios que começaram neste dia, mas adianta que em junho arderam cerca de 47 mil hectares de espaços florestais, o que representa aproximadamente 32 vezes mais do que a média do último decénio.

 

Ilhas e cidades costeiras debaixo de água Segundo o relatório do IPCC, o aumento do nível do mar desde a segunda metade do século xix ultrapassou o ritmo dos dois últimos milénios. Entre 1901 e 2010, o aumento médio foi de 19 centímetros, com uma subida de 1,7 milímetros por ano. Os peritos estimavam então que, entre 1993 e 2010, a subida tenha sido mais de duas vezes superior – um aumento de 3,2 mm/ano, taxa que deverá manter-se entre 2020 e 2050. Segundo o mesmo relatório, desde o início da década de 1970 que o degelo glaciar e a expansão térmica do oceano causada pelo aquecimento global explicam 75% da subida do nível do mar. Vários cenários apontam para uma mudança na configuração do mapa-mundo que conhecemos. Um estudo publicado em maio de 2016 concluiu que, nos últimos 70 anos, foram engolidos pelo mar cinco ilhéus das ilhas Salomão, no Pacífico, o último em 2011. E outras seis ilhas tinham 20% do seu território ameaçado. No início do ano, a National Oceanic and Atmospheric Administration alertou para que a ameaça parece estar a ser mais rápida do que se antevia, considerando plausível um aumento do nível das águas de 2,7 metros até 2100. Já esta semana, a Union of Concerned Scientists (UCS), uma organização não governamental norte-americana que junta cientistas preocupados com os problemas do planeta, publicou o relatório “When Rising Seas Hit Home”, que sugere que, já em 2035, 170 comunidades costeiras dos EUA vão sofrer “inundações crónicas” à conta da subida do nível do mar, expressão que usam para definir comunidades que sofrem cheias pelo menos 26 vezes ao ano ou a cada 15 dias. A maioria das cidades afetadas ficam nos estados de Louisiana e Maryland. No final do século serão 490 comunidades, sensivelmente 40% de toda a costa leste e sul do país. Os peritos calcularam que 50 grandes cidades estão em risco de perder 10% ou mais do seu território para as investidas constantes do mar, incluindo a Califórnia, Miami, Nova Iorque, Boston e São Francisco.

Em Portugal, os distritos de Aveiro, Lisboa e Setúbal têm sido apontados como os mais vulneráveis. Segundo as conclusões de um estudo em curso na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, noticiado pela TSF em março, até 2100, 35,8% da área de Aveiro é considerada extremamente vulnerável, em particular Gafanha da Nazaré, Murtosa e Albergaria-a-Velha. Em Lisboa, Vila Franca de Xira e Montijo merecem maior preocupação. A mesma análise sugere que as ilhas-barreira da ria Formosa podem vir a ser engolidas pelo mar. Nestas ilhas, algumas análises têm apontado que o maior perigo resulta da combinação da subida do nível do mar com um temporal que coincida com uma maré cheia viva, assinalou um trabalho publicado em 2009 na “Revista da Gestão Costeira Integrada”, assinado por Filipe Rafael Ceia, da Universidade de Coimbra.

 

A sexta extinção em massa?

Foi um dos alertas da última semana, embora esta seja uma discussão cíclica. Ao longo dos mais de 3 mil milhões de anos de existência de vida na Terra, primeiro microscópica, há registo de cinco grandes extinções, a primeira há mais de 400 milhões de anos e a última causada pelo impacto de um meteorito há 65 milhões de anos, que fechou o capítulo dos dinossauros no planeta. Um estudo publicado na segunda-feira na edição online da revista científica “Proceedings of the National Academy of Science” veio defender que a sexta extinção em massa está em curso. Os autores dizem que não só as espécies consideradas ameaçadas estão a desaparecer, mas todas as outras estão a diminuir de forma acelerada.

Os investigadores da Universidade Stanford, nos EUA, e da Universidad Nacional Autónoma do México falam de uma “aniquilação biológica” causada pela perda de habitat, sobre-exploração, espécies invasoras que comprometem os ecossistemas locais, poluição e as recentes perturbações climáticas. Após analisarem uma amostra de 27 mil espécies de animais vertebrados, concluíram que um terço estão em declínio. Em 177 espécies de mamíferos que estudaram a fundo, todas têm hoje uma ocupação territorial 30% inferior ao que acontecia no princípio do século passado, e quase metade ficaram confinadas a uma área que não vai além de 20% do espaço que ocupavam em 1900. No artigo dão exemplos de espécies que há duas décadas ou até menos tempo estavam seguras e hoje já não estão. Em 2016 já só havia 6 mil chitas e menos de 5 mil orangotangos de Bornéu e de Sumatra. A população de leões africanos reduziu-se em 43% desde 1993.

Os autores usam palavras fortes, mas já fizeram questão de enfatizar na imprensa que não estão a ser alarmistas. A par do desaparecimento dos animais está a verificar-se uma diminuição da flora do planeta, avisam. “A aniquilação biológica terá consequências ecológicas, económicas e sociais graves. No final, a humanidade pagará um preço muito elevado por ter dizimado a única forma de vida que conhecemos no universo.”

 

O degelo e o caso do iceberg à solta

Esta semana causou perplexidade um icebergue gigantesco que se desprendeu da Antártida, com uma área de 5,8 mil quilómetros quadrados – tamanho que dá para fazer várias comparações territoriais, do estado norte-americano de Delaware ao Algarve. Apesar do impacto da imagem, pelo menos um glaciólogo já veio a público explicar que o fenómeno não deverá ter qualquer impacto na subida do nível do mar nem parece ter relação com as alterações climáticas, sendo um fenómeno natural. No Twitter, Martin O’Leary brincou com esta tentação de fazer comparações, dizendo que é uma ínfima parte do País de Gales. Sobre as alterações climáticas, esclareceu que, com um aumento de temperatura de 4 °C (já o pior cenário), não é expetável que o mar suba dezenas de metros. Derreter todo o gelo da Terra daria uma subida de 60 metros, mas seria preciso um aquecimento de dezenas de graus, disse. Neste caso, tratou-de uma fenda na plataforma de gelo Larsen C que estava a ser vigiada há mais de dez anos e começou a ceder em fevereiro. O icebergue está também a ser monitorizado e é um dos dez maiores de sempre. Ciclos naturais à parte, a aceleração do degelo é uma realidade. De acordo com a análise do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU, o degelo aumentou nas últimas décadas em particular nos glaciares do Ártico e no verão. Entre 1993 e 2003, ele contribuiu em cerca de um terço para a subida do nível do mar registada. As últimas projeções sugerem que, este verão, o gelo no Ártico poderá bater os mínimos olímpicos de 2012 ou, pelo menos, voltar a igualar esse registo. A preocupação com o degelo não tem só a ver com haver mais água a circular, mas também com uma maior absorção da radiação solar, criando um círculo vicioso de mais aquecimento, quer no mar quer na temperatura atmosférica. O facto de o degelo de camadas de gelo permanentes chamadas permafrost libertar emissões de gases com efeito de estufa como CO2 e metano é outro foco de preocupação. Há ainda outra teoria mais assustadora: que neste gelo permanente podem estar adormecidas bactérias e vírus antigos que poderão tornar-se uma ameaça para a saúde pública . No ano passado, uma sucessão de casos de infeção por antrax de habitantes de uma comunidade na tundra siberiana foi associada a uma onda de calor que derreteu mais do que era costume a placa de gelo e terá deixado a descoberto uma rena que pode ter morrido desta doença, que nos últimos anos era mais associada ao bioterrorismo. Não tornou a haver notícias da “bactéria zombie”, como chegou a ser descrito este caso.